A tentação é muito forte: 300 é,
ali, no cinema, o pior filme já feito. Mas isso pode
ser
apenas uma representação e há muito mais a dizer e, além disso, é mais complexo
do que isso.
300 parte de um pressuposto determinante: a emulação da mídia original
como um bem a priori. Em nome de se re-produzir a
gramática típica de outro meio, de se estampar em tela de cinema elementos formais
de uma produção dotada de outras regras de composição, no caso os quadrinhos,
mas poderia ser o
videogame, a televisão, o relatório empresarial ou mesmo os gráficos de aceleradores
de partículas , toda
operação é (considerada) justificável. Mais que isso, e essa parece ser a
questão em torno do filme, toda operação seria suficiente. Por esse modelo, um
filme vindo dos quadrinhos só seria um filme se for um quadrinho, se mimetizar
elementos como as formas de desenho e movimento próprios do gibi. A mecânica
de
Zack Snyder é a especular.
A se pensar: uma forma possível para se projetar a montagem
de uma seqüência é imaginar que, nela, um dos planos é o clímax, ou seja, que
toda a ação da seqüência flui, antes, para ele e, depois, a partir dele. O
método de adaptação utilizado no filme de Snyder parece ser o desejo de um paroxismo
olímpico dessa abordagem: tomada a graphic novel original, usa-se os quadros
dela a serem reproduzidos “impecavelmente” na filmagem e na
pós-produção como esses planos-guia. A
operação que resta ao cineasta é a de preencher os espaços entre essas imagens.
Daí o jogo de palavras ser inevitável: 300 não tem uma
estética, tem uma estática. Seu
objetivo não é produzir a imagem em movimento, mas a imagem em paralisia. Toda
ação do filme é criada para o freeze,
para uma contemplação em si. O que não significa que o que esteja em jogo um
monadismo. Não, não é uma mecânica de
cada-plano-do-filme-contém-um-todo-conceitual. Cada plano do filme contém apenas
a si mesmo e sua contemplação, a partir de um duplo registro, primeiro, emulador,
e depois, olímpico.
Pois bem, a estática de 300: fica claro desde o primeiro segundo que o
objetivo ali é criar um
universo pictórico. E conceitual, ou seja, é claro que o que está em jogo naquele
filme é da ordem de uma fantasia, não é uma visão estabelecida a partir de uma
realização, mas de uma irrealização. 300 quer montar um mito e para isso
cria um espaço quase laboratorial: nada ali
poderá soar realista, porque o assunto são homens que fazem coisas
inacreditáveis etc. O pacto é aberto e confesso: não é um filme histórico e nem
um filme de ação crível. Antes disso, parte de uma abordagem, digamos,
operística. Mais até, parte de um approach mesmo carnavalesco, no sentido
em que seus elementos gráficos se constituem como alegorias, como um desfile
de referências a uma temática geral, mas sem sobrevivência
específica como estética.
Para cumprir um objetivo como esse, de criar um universo
próprio, fantasioso, entretanto, é essencial a criação de uma lógica interna
própria. Em 300, essa própria lógica é a estática. Claro, a primeira
palavra-chave do filme é, claro, a emulação da arte seqüencial. Mas esta é dada.
Tornou-se já um padrão industrial. Apenas é aqui levada a um limite apenas batido
por sua falta de sentido. Ou pelo excesso deles.
Sim, porque a clara obsessão de Snyder não é adaptar, fazer
um filme “a partir”. Ele quer re-vivificar a história em quadrinhos que leu.
Quer fazer com que se tenha no cinema a mesma experiência estética produzida
pela graphic novel. Isso já se coloca
como um problema: trata-se, então, menos de um cinema e mais de uma experiência
museológica. A pergunta que ele se faz não é como fazer fílmica uma história
que conheceu, é como fazer representificável um objeto produtor de sensações
específicas. E essa representificação é da ordem do hiper-estímulo, de um apelo às
possibilidades de obter os mesmos efeitos sensoriais. É algo como pensar: “Aquela
sinfonia deixou alguém surdo. Quero fazer o mesmo com uma pintura”.
A emulação do quadrinho como valor visual a priori
A segunda palavra-chave da estática é algo que talvez possamos chamar
de hiper-paleta. A opção
cromática em jogo no filme é uma das portas da criação de seu universo “operístico”.
Também uma operação da emulação, ou seja, para ensurdecer com uma sinfonia pintada,
ela vem diretamente do trabalho dado a Frank Miler (autor do texto e dos desenhos
da graphic novel) pela colorista Lynn Varley (ex-mulher e constante parceira
do artista). É um tributo, portanto. Mas para além desse elemento de
fidelização, a filtragem sépia utilizada ali promove um jogo
curioso. É algo como fazer um filme em preto-e-branco, mas sem seqüestrar as
cores. Tem a ver, claro, com o desejo de “fantasia”, de “exagero” da
mitificação. Mas é, ao mesmo tempo um jogo de performatismo. Que serve a um único
resultado: o destacamento.
Sim, porque o destaque é a operação dramatúrgica central de
Snyder. Sua ambiance tem que ser hiper. Tudo tem que ser hiper... Para
que os elementos individuais possam sobressair. O sépia do filme nos informa:
o
que importa é o sangue. Tudo mais é chão. Mesmo. Construções, vegetação, peles
humanas, animais, a maioria das roupas. Tudo mais fica diluído, fundido, em um
grande tom de terra. A única coisa que se destaca no plano no que diz respeito à cor é a
violência impressa nos fluidos derramados e... as capas dos espartanos. Sim,
porque as capas os identificam. Ele são aqueles que portam o sangue nas mãos.
Aqueles que, informa-nos o voice over, “nasceram para matar”.
A paleta serve para destacar o vermelho e planificar
tudo mais
O terceiro elemento chave é o hiper-realismo fantástico.
Aqui, o que está em jogo é mais uma forma de emulação, mas desta vez externa
aos quadrinhos. Curiosamente para um projeto criado para mimetizar uma obra de
arte seqüencial bastante gráfica, a arte do filme foi beber em um estilo de pintura/desenho
não praticado por Frank Miller. E, mais que isso, de um braço
muito específico dessa corrente. O hiper-realismo fantástico se constituiu como
uma corrente new age do hiper-realismo, que utiliza as ferramentas de
total figuratividade do estilo
para pintar objetos “irreais” (seres mitológicos, monstros, cenas impossíveis
etc). Nesse sentido, nem são as cenas de batalha as que mais sofrem com o estilismo
de capa de livro espírita da direção de arte, são os momentos
domésticos. Um exemplo radical: a aparição do oráculo, uma mulher de beleza
etérea a ser contemplada pelos Ephors. Sua aparição é um culto à uma simetria
vazia e um coreografismo objetal absoluto. É new age para ser místico
e para ser místico em si, visualmente
místico. Não há coerência com uma noção de mística interna ao filme, mas com
um
certo misticismo gráfico produzido fora, no hiper-realismo. Há exemplos desse
tipo de “inventividade” em toda produção hiper-realista fantástica, como por
exemplo no trabalho do pintor H.R. Giger, que foi utilizado como ponto de partida
da estética da série Alien. Mas no uso de Snyder, essa
operação cria uma lógica inversiva. É quase como se ele tivesse criado um universo
que parece desenhado para que, assim, pudesse parecer tão bem desenhado que fosse
próximo do real (experiência estética produzida pelo hiper-realismo). Mas, nele,
esse “tão bem desenhado” tem que passar, ao mesmo tempo, por uma regramento de
performance. Tem que ficar clara a interferência “do
artista”, daí a opção pela estética new
age.
O oráculo, expressão do hiper-realismo
fantástico e new age do filme
A cena de sexo entre Leônidas e a rainha Gorgo é, também
ela, uma emulação hiper-realista. Seu mix de tonalidade azul - o azul é o
negativo noturno do sépia na paleta - destacadora dos corpos e de estética de
cinema pornô light conduz para mais uma seqüência em
si. O argumento é que há amor verdadeiro entre os dois, o que diferenciará a
relação das impuras da política que os cerca. Mas a semiologia do filme apenas
informa aquilo que seu próprio discurso interno já traz na origem: tudo em
Esparta é performance, é disputa olímpica. Inclusive o amor dos dois.
O que conduz para o uso que o filme faz das velocidades. Escrevi sobre o uso
da câmera lenta no cinema de Mel Gibson na crítica de Apocalypto.
O uso dela
por Zack Snyder será totalmente diferente do de Gibson. A comparação não é necessária.
Mas aparece aqui por conta da abertura de possibilidades com o cinema
de ação. Gibson procede a uma mecânica das intensividades e das extensividades.
Suas velocidades mudam para que se ampliem os efeitos do martírio. Porque seus
personagens sofrem. No cinema de artes marciais, a câmera lenta é utilizada como
elemento de contemplação coreográfica: é para que os movimentos sejam desnudados,
para que o movimento (em si) seja decomposto, como que numa
metáfora mesma da operação que permite o cinema existir, mas, sobretudo como
uma metáfora dos vários sentidos de cada elemento de um golpe.
Em 300, a câmera
opera uma intensividade e uma contemplação, mas de forma totalmente diferente.
E totalmente ilógica. Primeiro porque os personagens de Snyder não sofrem. Fazem
sofrer. Assim, o que está em jogo poderia ser apenas a observação voyeur da
tortura. Sim, a câmera lenta poderia ser uma forma de fazer o olhar se demorar
num corte de perna. E isso de
fato ocorre. Mas algo marca o slow motion de Snyder: imediatamente após
a ação, a retomada da velocidade não é rumo à normal, mas à uma velocidade acelerada.
Não é para que o movimento diga mais,
que ele altera a velocidade. É para alterá-la. Os movimentos de Snyder são chamarizes,
são apelos por atenção, gritam: olhe, olhe para cá! Três seqüências
são emblemáticas desse mecanismo (ou ausência de): a primeira é a de Leônidas
a
escalar a montanha para encontrar os Ephors.
A segunda é a da rainha Gorgo indo encontrar-se com um dos conselheiros e caminhando
com seu filho por uma espécie de estábulo. A terceira é aquela em
que a câmera acompanha uma luta lateralmente, com os soldados correndo. Em cada
um delas, a câmera fica lenta ou acelerada apenas para mudar de velocidade. Não
tem nenhum valor simbólico intrínseco.
E isso é ainda mais intenso porque Snyder monta suas câmeras lentas lentamente.
O empino do cavalo do persa ao chegar ao palácio de Leônidas e as quedas dos
persas tanto no fosso quanto no precipício são alongadas para
além do ritmo do filme. Tudo para que sejam marcantes, para que sejam em si.
O prolongamento das ações na câmera
lenta é um efeito deslocado do ritmo
Mas em um universo em que tudo é em si, nada é. E é disso
que se serve 300 para sua simbologia.
Sim, 300 pode ser
pensado como uma metáfora geopolítica. Sim, pode-se estar falando de americanos
e iranianos. Sim, ele pode operar como discurso de eugenia. Tudo isso pode brotar
de uma metaforização do filme. O que parece mais importante aqui,
entretanto, é pensar porque tudo isso é possível. Isso porque, observado de
perto, 300 é sobretudo um filme sobre a marra. Tudo que acontece em sua
narrativa é uma disputa de virilidade,
inclusive da parte da única mulher que ganha voz em sua trama. Mas nada do que
acontece dentro do filme importa muito. Ele é movido pelo puro fetiche de
apresentação performática. Daí quase tudo poder significar qualquer coisa.
Nesse sentido, por mais bizarro que possa parecer, a
comparação adequada a ser feita com 300 está em Cartas de Iwo Jima.
Assim
como o general Kuribayashi da obra de Clint Eastwood, Leônidas sabe que perderá a
batalha a que se dirige. Ele sabe que a única maneira de vencer um exército
gigantesco é com... um exército gigantesco. Kuribayashi atua para que haja sobrevida,
ou seja, para que a vida que lhe resta e a seus homens seja plena em
sua condição de guerreiros. Leônidas, não. Ele sabe que sua morte se reverterá na
vitória. Ele tem a certeza disso estampada em cada fala, em cada movimento, em
cada ação. Por isso leva seus 300 à morte com ele. Para que outros tantos mil
se levantem diante do exemplo. É por isso que ele não mata Xerxes, apenas o fere,
para mostrar que ele sangra, que não é um deus. Para mostrar aos seus e
ao próprio monarca persa. E aos espartanos.
O que conduz para o discurso do voice over do filme. Já apontei acima,
mas não é mal repetir: os
espartanos “nasceram para matar”. Operação ímpar essa de discursismo mítico:
os
espartanos não nasceram para matar. Foram selecionados para tal. Eles executam
bebês incapazes de se tornar grandes guerreiros no futuro. O sobrevivente a que
temos acesso, Ephialtes, é o limite do anti-guerreiro espartano: deformado, limitado,
incapaz (pelo menos aos olhos do plano de Leônidas, que praticamente
o convida à traição). O espartano preterido, aliás, é chave para a operação
simbólica mais curiosa do filme. Os persas são, por generosidade imperial, acolhedores
de toda sorte de diferença. Por isso mesmo, eles são apresentados como uma multiplicidade
incômoda, incoerente com a estética de simetrias
espartana. Vemos freaks a desfilar na
tenda de Xerxes, vemos “bestas mitológicas” a desfilar em suas hostes. Do outro
lado, (re)produzidos por seleção eugenista, os espartanos são simétricos e
olímpicos e não permitem a imperfeição. Ao mesmo tempo, são “livres”, diferentemente
dos persas, que são escravos da mistificação imposta por seu imperador. Como
parece óbvio, nenhuma das duas lógicas se sustenta. Porque são
retóricas de si para si mesmas. Mas o filme as quer compor e operacionalizar
para construir o heroísmo espartano (seus protagonistas, claro).
A árvore de corpos
300 é um filme assustador. Pelo que faz e pelo que pode fazer pelo cinema
de ação.
Gênero dedicado a um culto da ação em si, com esse filme o action movie se
torna tributário de um culto do em si na ação. E a
se julgar pela tendência da indústria americana a transformar em gênero um filme
de sucesso - o próprio 300 provém de uma linhagem que cruza Gladiador, O
Senhor dos Anéis e Tróia, ou, mais radicalmente, Alexandre,
que, aliás,
tem um plano de empino de cavalo praticamente idêntico ao que citei acima
em 300, além de recorrer ao mesmo tipo de "impressionismo" de
Snyder, como ao usar filtro vermelho para a cena em que o monarca é ferido.
Ou
seja, os filmes de grandes batalhas ancestrais
com grandes líderes
discursistas - o que ele pode impor ao
gênero por ser um desafio até para a crítica. Cedamos, no entanto, à mecânica
do “em si”: 300 dá medo por ele
próprio. Por, entre várias coisas, a falta de censura em se criar um plano
como o da árvore lotada de corpos dependurados. Mas não porque ele seja violento.
A violência física é parte do jogo e será um elemento importante a ser pensado
- veja-se, por exemplo, o uso que um Tarantino faz dela. E sim por ela ser de
uma simetria apenas
masturbatória, absolutamente centrada em si própria. Sem referência outra senão
seu umbigo.
Alexandre Werneck
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