RG: Mas, ao mesmo tempo,
eu realmente gostaria de focar o final da nossa discussão
nos quatro filme que foram mais elogiados, mais admirados,
por uma parte considerável da revista. E, curiosamente,
não são filmes que fazem unanimidade dentro
da revista. Ao contrário do ano passado, por
exemplo, em que o O Signo do Caos dominava, pois
mesmo as pessoas que gostavam pouco ainda gostavam um
bocado. Esse ano, isso não acontece. Desde O
Céu de Suely, que logo no começo,
na primeira exibição para imprensa, já
tem comentários em relação ao um
certo sentimentalismo forçado, a um trabalho
de montagem que seria repetitivo e formulaico. A Eu
Me Lembro, que tem uma adesão muito forte
de alguns redatores, e não muito da parte de
outros. O que é muito curioso. Que esse ano tenhamos
quatro filmes defendidos em grupo, defendidos em bloco,
e ao mesmo tempo nenhum desses fez unanimidade ao ponto
de colocá-lo em uma posição, ou
nos dez melhores, ou, no caso do O Céu de
Suely, que entrou nos dez melhores de fato, mas,
tendo entrado, só entrou nas últimas posições.
Os filmes aos quais eu me refiro são Crime
Delicado, Eu Me Lembro, O Ano em Que Meus
Pais Saíram de Férias e O Céu
de Suely. Como é que a gente começa?
RM: Começa fazendo um adendo que o único
que não gosta de O Céu de Suely
é o Rodrigo!
DC: Tati gosta com ressalvas.
RG: É um filme que eu gosto, mas com ressalvas
fortes. Acho que, acima de tudo, e eu já escrevi
isso no diário do Festival do Rio, mas em alguns
aspectos de montagem que me parece ligeiramente forçado,
forçando determinadas situações.
E, acima de tudo, um certo tique, que se repete e que
é uma recorrência de um cinema de autor
do mundo contemporâneo, que essa idéia
de cortar uma cena no meio, numa tensão dramática,
e jogar para uma situação mais calma.
Ou ao contrario, sair de uma situação
calma e você corta direto para uma ação
que já está transcorrendo, você
monta antes da cena acabar completamente, ou começa
a seqüência depois da seqüência
já ter começado de verdade.
DC: Além de um silêncio de expectativa,
ou, enfim...
RG: Isso, na verdade, não me incomoda
tanto não, mas eu admito que o filme parece demais
com certos cacoetes do cinema contemporâneo.
RM: Mas o que eu acho curioso na montagem de
O Céu de Suely é que ao mesmo tempo
que tem essas interrupções sejam do brusco
pro mais calmo ou vice-versa, e você coloca isso
como cacoete ou um vicio de um determinado cinema contemporâneo,
mas o contrário também, se o filme vai
se colocar nessa esfera, se ele tivesse os planos estendidos,
ou com determinado tempo específico, não
seria esse também um cacoete de um determinado
cinema contemporâneo.
DC: É, essa coisa de implicar com o cacoete
é quando você não se associa totalmente,
por que a construção do filme, eu acho
que sustenta isso, na verdade.
LCOJr: Cara, eu acho o seguinte: pra além
de qualquer ressalva que se possa fazer, pra além
de um ou outro procedimento estético que a gente
possa, de fato, aqui debater. A gente poderia debater
alguns minutos sobre a questão da montagem do
filme, da estruturação interna dos planos
do filme. Bom, acho que eu sou, possivelmente, o maior
entusiasta do filme na revista. A questão é:
acho que O Céu de Suely, para além
de qualquer apreciação mais analítica
que a gente possa fazer agora, a posição
que ele marca no cinema brasileiro, pra mim, e claro
que isso vem também em um somatório com
o que o Madame Satã já havia mostrado
em relação ao cinema do Karim Aïnouz,
eu acho que é um momento, um ponto muito especial
do cenário brasileiro, que é quando você
tem um filme que existe, que acontece e cujo núcleo
pulsante é simplesmente a sensibilidade de um
diretor e é a maneira como um filme se constrói,
sabe? O que ele tematiza, todas as questões,
a estratégia do filme de se vender, eu acho que
todas as questões que, obviamente, estão
implicadas no filme – fatores sociais, políticos,
em suma. É impressionante como tudo isso gravita
em torno de um certo modo de fazer o cinema, que é
quando você tem a possibilidade disso, você
vê mesmo a crítica mais rasa que defende
o filme, você tem a possibilidade um filme que
é defendido, que é gostado, que é
apreciado e que é exaltado, cujo lugar no cinema
brasileiro é assegurado, simplesmente por uma
certa estética que o cara tem, por uma maneira
de ele trabalhar os planos, de ele jogar com as referências
dele de cinema, dele, enfim, um fazer cinematográfico
propriamente dito, uma mise en scène,
uma sensibilidade que ele trabalha, que ele desenvolve
ali, que ele depura, no filme, e isso significa não
só a possibilidade do filme estar ali acontecendo
e estar tendo uma repercussão que eu acho até
que foi boa, principalmente no momento em que ele chegou
e tal. E o filme, sabe, meio que, tudo que for acontecer,
tudo que for decorrer, toda performance do filme no
circuito, eu acho que é meio que é uma
decorrência disso assim, o filme já está
ali na própria construção dele.
Isso é muito interessante, é um filme
que você não vai buscar a explicação
dele fora assim: "não pô, o filme fez sucesso
ou o filme teve um repercussão, afinal ele pega
o tema da migração". Não, você
não vê isso, assim, esse não é
o polarizador do debate. Não é isso que
é o fator determinante, que é o fator
crucial do filme. O fator crucial do filme está
na experiência que ele proporciona, na experiência
que eu falo é no sentido estético, no
sentido sensorial.
DC: Sob esse aspecto, ele está totalmente
antenado com o que um certo tipo de espectador espera
de um cinema contemporâneo, quer dizer, um cinema
de imersão, um cinema de momento, um cinema de
associação com o personagem. Acho que
é importante também ter esse lado de incômodo
pra alguns, enfim, a gente voltando aquela velha questão
se o cinema retrata a realidade, ou se ele é
sempre uma grande mentira. A gente tem que lembrar que,
enfim, isso é, sim, um discurso pensado dele,
que por mais que ele mesmo tente quebrar, é óbvio
que esse mecanismo de procurar certo caminhos conhecidos,
certos cacoetes, isso é natural e vai ser natural
em qualquer forma. A não ser que seja um filme
único, e que depois se faça outro, mas
na verdade é óbvio que esse filme é
muito semelhante, sim, ao Madame Satã e
provavelmente será semelhante aos outros filmes
que o Karim vier a fazer, porque ele tem liberdade pra
fazer como quer. E, sob esse aspecto, eu acho que ele
sabe muito bem...
RG: Liberdade relativa, porque ele teve negociações
com a companhia produtora e com o corte final, na verdade.
DC: Me parece que mesmo dentro desses mecanismos,
esses daí, eles dependem de um aval de autor
pra se inserir onde esse filme se insere e ele sabe
inserir esse filme nesse esquema....
LCOJr: É um filme, sem dúvida alguma...
Ele ocupa um nicho de world cinema, de um cinema
pra circular festivais internacionais.
RG: Como de certa forma o filme do Marcelo Gomes
no ano passado [Cinema, Aspirinas e Urubus, nde].
LCOJr: Sem dúvida. Ele vem, coincidentemente,
na mesma época do ano, pós-festival, pós-mostra...
DC: Mas acho que o filme do Karim está
mais a frente, ele domina mais ainda essa linguagem....
LCOJr: Sim, também acho, mas o que eu
quero destacar aqui é o seguinte: a adesão
ao filme está diretamente relacionada a realmente
uma experiência que está ali, na projeção
do filme. Isso, de cara, no cinema brasileiro, isso
já ganha um aspecto positivo.
RG: Mas você não acha que Crime
Delicado e Eu Me Lembro não
fazem parte disso também não?
TM: Na verdade, eu acho que esse caso da sensibilidade,
pra mim, estão nos 4 filmes que o Ruy citou.
DC: O Ano em que Meus Pais... com certeza.
BB: Acho que O Ano... tem outras justificativas
pro sucesso a não ser a da estética e
a da linguagem, mas também está.
LCOJr: É. O Ano... pra mim traz
uma sensibilidade, sem dúvida. É um filme
feito de maneira muito delicada e, de fato, é
um filme também muito imersivo, mas eu já
acho que tem uma outra questão, um dado histórico,
de ditadura...
RG: Mas, ao mesmo tempo, o filme sabe trapacear
no bom sentido com a questão do filme histórico.
Porque o tempo inteiro o ponto de vista é o ponto
de vista da criança: o ângulo da câmera
nunca consegue ver tudo porque quando você é
criança você não tem toda aquela
dimensão. Então, se a própria visibilidade
do filme equivale um pouco a visibilidade da criança,
a visão que você tem das coisas que podem
acontecer é uma visão parcial, se você
se sente de certa forma tão impedido de agir
como aquela criança, você sai daquela coisa
de filme histórico e entre em uma percepção
íntima daquela história.
LCOJr: Mas eu sinto isso na segunda metade do
filme, ironicamente, a partir do ponto em que o garoto
perderia a inocência, que é em uma cena
que, por sinal, eu gosto muito, em que ele vê
a polícia descer a porrada nos estudantes. Supostamente,
é a cena em que o ator perde a inocência,
sei lá, tomaria uma dimensão do que está
acontecendo. No entanto, é o momento em que eu
consigo ver o filme dessa forma que você está
falando. Na primeira metade pra mim, eu acho sinceramente
um plano que faz uma panorâmica do carro para
o arame farpado com variação de foco não
é um plano de criança. É um plano
de um adulto que já sabe exatamente o que está
se passando ali, sabe que aquela viagem ali é
uma viagem cheia de farpas. Uma viagem, na verdade,
que esconde um processo histórico muito espinhoso.
Existem vários planos. A primeira meia-hora do
filme me incomoda bastante do ponto de vista exatamente
dessa construção do plano que joga com
a movimentação de câmera, com a
profundidade de campo e com a variação
focal justamente para construir esse tipo de enunciado.
RG: Ele trabalha com foco e grão o tempo
inteiro.
LCOJr: E com enunciados muito claros envolvidos
nele. Tem horas que você não acha um plano
que seja só um plano, não seja um enunciado.
DC: Mas você acha que o último plano
de O Céu de Suely também não
é isso? Se dissociando do mundo dela e tendo
o olhar dele...
LCOJr: Não estou dizendo que O Céu
de Suely é um filme de pura modulação
sensorial... Claro que não.
LL: Acho que O Céu de Suely tem
essa coisa de certos planos, como por exemplo o último
plano, terem esse enunciado, mas o que chama atenção
no plano é menos o enunciado do que a sensação
que você tem.
LCOJr: O Céu de Suely, tanto em
crítica quanto em público, se vê
assim, quem gostou do filme ele vai te dar uma descrição
de sentimentos, entendeu? Ele não vai te descrever
assim: "Pô, o filme é extraordinário
porque ele conta a história de uma menina do
Ceará, que está querendo se vender, pra
poder... é um filme que trata a imigração"...
TM: Grande parte da crítica recebeu o
filme assim....
DC: Mas críticas discutindo o enredo do
filme sempre vão ter.
LL: Eu tenho uma idéia que o filme trata
a mulher do Ceará de uma forma diferente dos
outros filmes tratam.
LCOJr: Acho que o filme chama atenção
pela sensibilidade muito específica, muito particular
que ele tem que não é um sensibilidade
clichê por assim dizer.
RG: Inclusive, existiram algumas críticas
que teceram senões como "Ah não, o filme
se foca tanto no personagem que esquece o roteiro",
coisas que basicamente é de alguém que
não entendeu o filme.
DC: Peraí gente, se é pra falar
isso aí, o Madame Satã o
Celso Sabadin disse "Pra que fazer um filme sobre um
cara que é homossexual, violento e ladrão?".
Quer dizer, tem gente que não entende o filme
e escreve umas coisas... Isso é uma coisa que
acontece.
RG: Vamos passar, a raspa do tacho a gente deixa
pra depois.
RM: Não, mas eu concordo inteiramente
com Jr. quando ele fala que O Céu de Suely
é o único que tem uma relação
diferente dos outros três, discordando um pouco
da Tati, porque eu acho que ele é o único
que o envolvimento talvez seja menos com a própria
Hermila, ou com qualquer coisa que esteja construída
dentro do filme, mas seja muito mais uma coisa que o
filme desperta, o que vai ser menos a sua identificação
com o garoto do O Ano... ou com o próprio
personagem do Eu Me Lembro, acho que com esses
filmes você vai estar repensando o que o próprio
filme está te apresentando ali, daquela trajetória
daquele garoto ou da visão do Navarro sobre aquele
garoto...
RG: Eu não sei se você está
descrevendo algo objetivo a respeito dos filmes ou se
é simplesmente a impressão subjetiva de
uma emoção que você teve no O
Céu de Suely que você não teve
nos outros, porque esse tipo de emoção
que você está descrevendo eu tive tranqüilamente
com Crime Delicado ou Eu Me Lembro.
DC: Crime Delicado não tem nenhuma
imersão, pra mim, o Crime Delicado é
um filme tese.
LL: Mais que um filme de tese, todo o elogio
do Crime Delicado vai tratar da questão
estética, porque é uma questão
que...
EG: Que é o tema do filme também,
o filme discute isso, discute estética, discute
criação.
LL: A forma é rígida. Ele chama
atenção para aquilo que ele está
fazendo. Ele chama atenção pro fato dos
planos fixos, para o preto-e-branco e o colorido.
DC: Mas esse filme aí não tem como
fugir do enredo. O filme chama atenção
para o fato de que o crítico pira porque lida
com o belo imperfeito. Ele não consegue lidar
com o belo imperfeito que é a mulher, bonita
sem uma perna. E o artista trabalha com isso de um forma
que ele não consegue explicar. Quer dizer, é
um filme sobre arquétipos. O Ruy escreveu isso
maravilhosamente bem na crítica dele. É
um filme que, enfim, existem questões, existem
sentimentos? Existem. Mas esses sentimentos não
estão criando personagens, de fato. E eu acho
isso muito interessante no filme, acho que ele vai por
um caminho que é bem diferente dos de hoje em
dia.
RG: É um filme inteiramente consciente
disso, a ponto de que não existe um equilíbrio,
uma harmonia nas partes do filme. O filme faz questão
de se quebrar e de reconstruir a cada seqüência.
LCOJr: Eu diria que ele leva a mutilação
pra própria forma dele.
DC: Tentar compreender essa falha, né?
A falha é uma questão do filme.
LCOJr: Os espaços do filme tão
todos eles amputados, você tem, seja nas cenas
de bar , ou no próprio quarto dela, você
tem um enquadramento, você só filma uma
parte do espaço. O filme joga com a exclusão
de pontos do cenário, de pontos de linha, do
que você está vendo. É difícil
entrar na primeira metade do filme, se você for
pensar nessa coisa de entrar como alguém que
está habitando o espaço do filme.
DC: O único momento de emoção
é o cara pintando a mulher, né? É
quando ele volta pro flashback do cara pintando a mulher
em uma transa.
LCOJr: O que eu acho maneiro dentro da obra do
Beto Brant, que é um cara que já se firmou
como um autor do cinema brasileiro. Eu acho interessante
que ele saia de um filme que, sei lá, se havia
um estilo Brant se delineando você ia pensar em
câmera na mão, uma certa vertigem da composição
narrativa, uns mergulhos em vertigens: você tem
tanto no Os Matadores, como no Ação
entre Amigos e em O Invasor, aquela coisa
de que o filme vai acabar na queda do personagem
e a própria mise en scène dele
parecia um pouco fazer esses movimentos, sei lá,
tinha uma certa velocidade, uma agilidade e uma movimentação
e tal e, de repente, o cara faz um filme com uma câmera
parada, com outro ritmo, outra duração.
É uma duração inédita para
o Beto Brant. Acho muito bom isso, acho muito saudável
dentro de um cara que no Cinema da Retomada se firmou
como um... mostrou um projeto autoral. Mostra inquietação
da criação dele.
LL: Mas, só voltando o ponto, que eu tava
falando sobre O Céu de Suely e o Crime
Delicado. Sim, os dois filmes têm um enredo
e o enredo pode ser importante, e também são
elogiados pela crítica de maneira geral, e é
difícil elogiar os dois filmes sem pensar na
forma com o que ele está tratando esse enredo.
Nas críticas mais rasas normalmente existe uma
certa vontade de entender a forma que ele está
tratando aquele enredo. Só que no Crime Delicado
essa forma, digamos, puramente estética no
sentido de pensar – aí, sim, se discutiria o
corte, se discutiria o preto e branco, se discutiria
o plano fixo – e, em O Céu de Suely é
uma forma muito mais sensorial de se trabalhar, por
isso que o Junior começou o comentário
dele dizendo "ah, o ponto de corte do filme não
é questão importante para O Céu
de Suely". Eu acho interessante pensar como nesses
dois filmes a crítica trabalha esse ponto, mas
que esse ponto é trabalhado, ou deve ser trabalhado,
de duas formas diferentes. Essa estética busca
duas coisas diferentes.
TM: É, mas eu não sei se eu concordo
sobre O Céu de Suely porque eu acho que
a sensibilidade dele, ela é de alguma forma um
tema e uma proposta do filme.
DC: É, ela é construída.
TM: Eu acho que ela está muito aparente
como esqueleto, como estrutura do filme, essa proposta
de retratar uma sensibilidade e, pra mim, é exatamente
o que quebra a sensibilidade, porque eu acho inclusive
que isso está relacionado com a questão
da montagem que o Ruy falou, não só por
ser um tique de montagem, mas porque eu acho que ele
corta a evolução da cena que ele próprio
cria.
DC: É, na verdade você queria ter
sido enganada pelo filme. Você acha que o filme
não te engana.
TM: Não, não é isso....
LL: É um filme que cai quando a estrutura
é aparente
TM: Não acho que seja uma estrutura aparente
propositadamente, essa que é a questão.
Não acho que é uma ironia.
DC: Mas não tem que ser uma ironia. Qual
é o problema da estrutura ser aparente sem ser
uma ironia.
TM: Porque eu não acho que ela seja aparente
forçadamente, não acho que isso seja um
efeito intencional do filme.
LCOJr: A minha questão é a seguinte,
talvez ela esteja escapando. Tem até um texto
do Adrian Martin que foi publicado na Paisà e
que é bem legal, que ele fala de como um filme
pode conduzir um espectador ou algo assim. Filmes contemporâneos
que estabelecem novas formas de condução
de uma narrativa, o teu ponto de ancoragem ao filme,
ele não precisa ser um personagem, um tema, um
mistério, um dado de trama, de enredo. No Elefante
você vai ter um conceito, a construção
de um certo lugar e de um certo tempo, um jogo, o próprio
dispositivo como sendo aquilo que te conduz pela narrativa.
Ou então no caso de um filme em que a própria
estrutura é derivada do video-game, do seu modo
participativo com o filme, deter aquele espaço
em que as coisas ocorrem em simultaneidade você
meio que fica escolhendo com quem jogar, como você
faria no video-game, com que personagem ou com que situação
jogar, em suma. Em O Ano Que Meus Pais... o que
conduz você ali? É um ponto de vista narrativo,
um ponto de vista dramático até de um
certo sentido clássico de construção.
É uma adesão, é um processo identitário
e adesivo, totalmente tradicional e nenhum demérito
nisso. O que eu quis dizer em relação
a O Céu de Suely é que se você
tiver que achar quem te ancora ao filme. Não
é a Hermila como personagem.
RG: É uma intensidade-Hermila que ao mesmo
tempo é a própria forma do filme.
LCOJr: É uma intensidade que é
uma interação, digamos, da sensibilidade
de quem filme com o material que está ali. O
espaço, a luz, entendeu? Essa a minha grande
questão de O Céu de Suely. Eu acho,
sim, algo digno de nota. Um filme, no cenário
brasileiro, em que você sempre tenta buscar fora
de tudo isso que eu falei, a sua motivação
de acompanhar aquele filme e depois de sair tocado pelo
aquele filme, como em O Céu de Suely isso
pra mim foi, claramente, até o senso comum conseguiu
chegar ao filme dessa forma.
RG: Eu Me Lembro, por exemplo, eu sinto
a mesma coisa. Eu vejo na maneira extremamente fragmentada
com o que o Edgar Navarro vai cortando uma situação
com outra, não dá nem pra dizer que são
elipses, porque a princípio ele pode evocar coisas
que podem ter acontecido antes ou depois. O filme envolve
uma relação entre seqüências
tão alógicas. É o funcionamento
da memória. E ao mesmo tempo, como ele consegue
elencar isso com um rebeldia, parece que as seqüências
deram um golpe e existem anarquicamente umas em relação
as outras. E ao mesmo tempo, do ponto de vista dos próprios
acontecimentos, do próprio conteúdo da
memória evocada, se percebe ao mesmo tempo um
certo dado de uma figura de exceção que
carrega em si todo um lado, ao mesmo tempo, majestoso;
é um anjo do mal-comportamento. O anjo que vai
lá acabar com o coro dos contentes. Por ao mesmo
tempo uma desobediência que é ao mesmo
tempo uma graça. E daí vem um humor que
é tão anárquico quanto as seqüências
umas em relação as outras. Nesse sentido
eu também vejo uma homologia entre forma, sensibilidade
e conteúdo. Da mesma forma como tem uma intensidade-Hermila
que povoa a forma e a maneira com a qual a gente apreende
e se relaciona com O Céu de Suely, eu
vejo a mesma coisa com Eu Me Lembro. Ele consegue
uma proeza, ao mesmo tempo, é claro que ele tem
uma referência central em torno do Fellini, "Eu
me Lembro" é o que significa Amarcord no dialeto
de Rimini etc. E que ele vai trabalhar, curiosamente,
um imaginário muito mais próximo do Buñuel,
com uma mistura de um anti-clericalismo, uma sexualidade
e ao mesmo tempo de um trabalho que eu acho extremamente
poderoso sobre um tempo da história do Brasil,
mas sem precisar recorrer àquelas âncoras
sempre repetidas, ou mesmo quando usa essas âncoras
fazê-las numa chave íntima e não
em uma chave da grande história. Eu acho que
o filme só desvia um pouco desse momento quando
aparece um amigo subversivo que entrou pra ditadura
e, mesmo assim, ele tem uma maneira inteligentíssima
de sair disso que é fazendo com que tudo isso
culmine em um ataque de nervos do personagem.
EG: Isso é uma coisa que incomoda um pouco
em O Ano em Que Meus Pais..., que o personagem
do Caio Blat, por exemplo, é uma âncora
o tempo todo, é a marca da história.
RG: A Copa do Mundo é uma âncora
cronológica também.
EG: Mas é mais um painel do que é
uma pontuação como é o Caio Blat
e isso é uma coisa que me incomoda que é
uma coisa bem de Anos Rebeldes, a função
dele, o diálogo que ele fala, entendeu? Tem uma
coisa parecida no filme do Cacá Diegues, que
um personagem, para situar, fala: "a ditadura está
com seus dias contados!". Fala uma frase feita.
DC: Em relação ao Eu Me Lembro,
que talvez seja o OVNI do ano que o Navarro traz. O
que eu acho interessante é que a gente está
falando de imersão, mas ele demanda, por ser
esse filme memorialista, mais do que qualquer outro,
isso daí pra mim sinaliza muito claramente, a
gente tava falando tanto O Céu de Suely quanto
O Ano... até mesmo o Crime Delicado,
todos esses estão sempre em futuro próximo,
é a coisa do "o que vai acontecer", tudo bem,
O Céu de Suely não se preocupa
tanto com o enredo, mas você quer saber o que
vai acontecer com ela. No Eu Me Lembro não
interessa o que vai acontecer, só o que está
acontecendo. O que aconteceu e como ele ocorre. O pitoresco,
o gracioso, é o discurso da identificação,
de fato, com as falhas do personagem, com os desejos
dele que é o grande ganho do filme.
RG: Eu acho que o Eu Me Lembro tem momentos
não tão bons quanto outros, o Crime
Delicado acho que da mesma forma . O Céu
de Suely é um filme muito mais harmônico,
muito mais equilibrado, muito mais coeso, mas ao mesmo
tempo é um filme que dados alguns minutos eu
sei como ele vai funcionar. O que me encanta no Crime
Delicado, Eu Me Lembro e em certa medida
no outro filme que faz parte da nossa experiência
como revista esse ano que é o Serra da Desordem
do Andrea Tonacci, a gente percebe que tem um filme
se fazendo e a nossa percepção vai se
moldando ao passou que filme se constrói, de
fato a serem filme que são verdadeiros mistérios
e filmes que colocam uma questão estética
para além de filmes filiados a uma determinada
estética que a gente gosta mais, para além
de filmes que estão em um determinado momento
do cinema puxando uma determinada estética. Acho
que O Céu de Suely é certamente
o filme brasileiro que mais está antenado com
uma série de questões estéticas
que estão acontecendo no Japão, na Coréia,
na China, em Taiwan....
DC: Assim como O Ano... também
está antenado com o que um certo público
quer.
RG: Isso não é um demérito
de O Céu de Suely nem é um mérito,
a princípio. Pra gente tentar entender o filme
de uma forma interessante é interessante estar
familiarizado com uma parte do cinema contemporâneo.
É curioso que, aparentemente, os críticos
mais oficiais não estão nada familiarizados,
porque insistiram em citar o Wim Wenders como a grande
influência de O Céu de Suely, o
que significa que a crítica brasileira está
atrasada pelo menos 20 anos. Mas, sim, Jia Zhang-Ke,
Hou Hsiao-Hsien, Claire Denis... Claire Denis vale dizer,
que bom, o Karim na entrevista pra gente ele falou que
queria fazer Madame Satã com a Agnès
Godard, que era a diretora de fotografia da Claire Denis,
porque ele queria a relação que câmera
tem com o personagem, pois o personagem é que
decide o movimento da câmera e não ao contrário.
DC: Sob certos aspectos, parece até com
o Vendredi Soir.
LCOJr: Uma coisinha ou outra.
RG: Bom, se tem um filme que tem uma referência
mais clara seria Millennium Mambo. Uma intensidade
do filme que ao mesmo tempo é uma sensibilidade
e que é um personagem, acho que no cinema recente
só se cristalizou de um forma mais clara em Millennium
Mambo. A gente não traz isso pra falar que
o Karim é um cara sem criatividade, que ele só
copiou, mas ao mesmo tempo eu acho que uma filiação
não quer dizer automaticamente um eximir-se de
uma possível repetição de fórmulas,
ou de um passe livre que ele ganha só por estar
antenado com o que se faz de melhor no cinema contemporâneo.
É um filme soberbo, em diversos aspectos, é
um filme que eu tinha esperanças maiores, ainda
assim é um filme que me emociona enormemente,
eu vi duas vezes em menos de uma semana. É um
filme que quando revisto as qualidades crescem muito,
mas um esquematismo fica mais claro também. Como
espectador eu consigo conviver com esses dois aspectos,
como crítico nem tanto. É um filme que
eu defendo com unhas e dentes, mas ao mesmo tempo me
parece menos encantador do que esses três filmes
que eu mencionei.
DC: Eu que o que salta os olhos em O Céu
de Suely também é que a gente falou
sobre montagem e câmera, mas a grande relação
que o Karim faz e que é a grande diferenciação
dele no cinema brasileiro é que ele joga tudo
isso em função dos atores. Os atores constroem
os personagens, os atores constroem a câmera e
a montagem. Isso acontece com o Lázaro e acontece
com a Hermila. Eles são praticamente co-autores
do filme.
LCOJr: Existe uma simbiose determinante entre
ele e os atores principais. É uma relação
diretor-ator única, especial mesmo. Eu acho que
a energia do filme, que é uma palavra define
essa minha questão sobre o que é o must
de O Céu de Suely, não vai só
do trabalho de seguir o ator.
DC: Não, mas é o motor, o guia
central. O resto vai funcionar a partir daí.
LCOJr: Acho que aí entra as próprias
ressalvas feitas aqui, em relação ao uma
certa movimentação de câmera que
explora o espaço e explora a luz já muito
influenciado pelas coisas que ele vê de cinema
e tal. Acho que aquele plano lindíssimo da moto
que começa na beira da estrada e termina em um
pôr-do-sol, sei lá, diria que é
um plano que o que a atriz tinha pra fazer ali não
sei se isso foi mais forte do que um certo gosto por
uma construção.
Parte 1: Estrutura,
documentários
Parte 2: Globofilmes,
cinema e televisão, Brasília 18%
e
O Maior Amor do Mundo, A Concepção.
Parte 3: O Veneno
da Madrugada, Árido Movie e
estréias em longa-metragem.
Parte 4: O teatro e
o parasitismo,
novamente documentários.
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