CINEMA FALADO, PARTE 5
Os quatro filmes preferidos

RG: Mas, ao mesmo tempo, eu realmente gostaria de focar o final da nossa discussão nos quatro filme que foram mais elogiados, mais admirados, por uma parte considerável da revista. E, curiosamente, não são filmes que fazem unanimidade dentro da revista. Ao contrário do ano passado, por exemplo, em que o O Signo do Caos dominava, pois mesmo as pessoas que gostavam pouco ainda gostavam um bocado. Esse ano, isso não acontece. Desde O Céu de Suely, que logo no começo, na primeira exibição para imprensa, já tem comentários em relação ao um certo sentimentalismo forçado, a um trabalho de montagem que seria repetitivo e formulaico. A Eu Me Lembro, que tem uma adesão muito forte de alguns redatores, e não muito da parte de outros. O que é muito curioso. Que esse ano tenhamos quatro filmes defendidos em grupo, defendidos em bloco, e ao mesmo tempo nenhum desses fez unanimidade ao ponto de colocá-lo em uma posição, ou nos dez melhores, ou, no caso do O Céu de Suely, que entrou nos dez melhores de fato, mas, tendo entrado, só entrou nas últimas posições. Os filmes aos quais eu me refiro são Crime Delicado, Eu Me Lembro, O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias e O Céu de Suely. Como é que a gente começa?

RM: Começa fazendo um adendo que o único que não gosta de O Céu de Suely é o Rodrigo!

DC: Tati gosta com ressalvas.

RG: É um filme que eu gosto, mas com ressalvas fortes. Acho que, acima de tudo, e eu já escrevi isso no diário do Festival do Rio, mas em alguns aspectos de montagem que me parece ligeiramente forçado, forçando determinadas situações. E, acima de tudo, um certo tique, que se repete e que é uma recorrência de um cinema de autor do mundo contemporâneo, que essa idéia de cortar uma cena no meio, numa tensão dramática, e jogar para uma situação mais calma. Ou ao contrario, sair de uma situação calma e você corta direto para uma ação que já está transcorrendo, você monta antes da cena acabar completamente, ou começa a seqüência depois da seqüência já ter começado de verdade.

DC: Além de um silêncio de expectativa, ou, enfim...

RG: Isso, na verdade, não me incomoda tanto não, mas eu admito que o filme parece demais com certos cacoetes do cinema contemporâneo.

RM: Mas o que eu acho curioso na montagem de O Céu de Suely é que ao mesmo tempo que tem essas interrupções sejam do brusco pro mais calmo ou vice-versa, e você coloca isso como cacoete ou um vicio de um determinado cinema contemporâneo, mas o contrário também, se o filme vai se colocar nessa esfera, se ele tivesse os planos estendidos, ou com determinado tempo específico, não seria esse também um cacoete de um determinado cinema contemporâneo.

DC: É, essa coisa de implicar com o cacoete é quando você não se associa totalmente, por que a construção do filme, eu acho que sustenta isso, na verdade.

LCOJr: Cara, eu acho o seguinte: pra além de qualquer ressalva que se possa fazer, pra além de um ou outro procedimento estético que a gente possa, de fato, aqui debater. A gente poderia debater alguns minutos sobre a questão da montagem do filme, da estruturação interna dos planos do filme. Bom, acho que eu sou, possivelmente, o maior entusiasta do filme na revista. A questão é: acho que O Céu de Suely, para além de qualquer apreciação mais analítica que a gente possa fazer agora, a posição que ele marca no cinema brasileiro, pra mim, e claro que isso vem também em um somatório com o que o Madame Satã já havia mostrado em relação ao cinema do Karim Aïnouz, eu acho que é um momento, um ponto muito especial do cenário brasileiro, que é quando você tem um filme que existe, que acontece e cujo núcleo pulsante é simplesmente a sensibilidade de um diretor e é a maneira como um filme se constrói, sabe? O que ele tematiza, todas as questões, a estratégia do filme de se vender, eu acho que todas as questões que, obviamente, estão implicadas no filme – fatores sociais, políticos, em suma. É impressionante como tudo isso gravita em torno de um certo modo de fazer o cinema, que é quando você tem a possibilidade disso, você vê mesmo a crítica mais rasa que defende o filme, você tem a possibilidade um filme que é defendido, que é gostado, que é apreciado e que é exaltado, cujo lugar no cinema brasileiro é assegurado, simplesmente por uma certa estética que o cara tem, por uma maneira de ele trabalhar os planos, de ele jogar com as referências dele de cinema, dele, enfim, um fazer cinematográfico propriamente dito, uma mise en scène, uma sensibilidade que ele trabalha, que ele desenvolve ali, que ele depura, no filme, e isso significa não só a possibilidade do filme estar ali acontecendo e estar tendo uma repercussão que eu acho até que foi boa, principalmente no momento em que ele chegou e tal. E o filme, sabe, meio que, tudo que for acontecer, tudo que for decorrer, toda performance do filme no circuito, eu acho que é meio que é uma decorrência disso assim, o filme já está ali na própria construção dele. Isso é muito interessante, é um filme que você não vai buscar a explicação dele fora assim: "não pô, o filme fez sucesso ou o filme teve um repercussão, afinal ele pega o tema da migração". Não, você não vê isso, assim, esse não é o polarizador do debate. Não é isso que é o fator determinante, que é o fator crucial do filme. O fator crucial do filme está na experiência que ele proporciona, na experiência que eu falo é no sentido estético, no sentido sensorial.

DC: Sob esse aspecto, ele está totalmente antenado com o que um certo tipo de espectador espera de um cinema contemporâneo, quer dizer, um cinema de imersão, um cinema de momento, um cinema de associação com o personagem. Acho que é importante também ter esse lado de incômodo pra alguns, enfim, a gente voltando aquela velha questão se o cinema retrata a realidade, ou se ele é sempre uma grande mentira. A gente tem que lembrar que, enfim, isso é, sim, um discurso pensado dele, que por mais que ele mesmo tente quebrar, é óbvio que esse mecanismo de procurar certo caminhos conhecidos, certos cacoetes, isso é natural e vai ser natural em qualquer forma. A não ser que seja um filme único, e que depois se faça outro, mas na verdade é óbvio que esse filme é muito semelhante, sim, ao Madame Satã e provavelmente será semelhante aos outros filmes que o Karim vier a fazer, porque ele tem liberdade pra fazer como quer. E, sob esse aspecto, eu acho que ele sabe muito bem...

RG: Liberdade relativa, porque ele teve negociações com a companhia produtora e com o corte final, na verdade.

DC: Me parece que mesmo dentro desses mecanismos, esses daí, eles dependem de um aval de autor pra se inserir onde esse filme se insere e ele sabe inserir esse filme nesse esquema....

LCOJr: É um filme, sem dúvida alguma... Ele ocupa um nicho de world cinema, de um cinema pra circular festivais internacionais.

RG: Como de certa forma o filme do Marcelo Gomes no ano passado [Cinema, Aspirinas e Urubus, nde].

LCOJr: Sem dúvida. Ele vem, coincidentemente, na mesma época do ano, pós-festival, pós-mostra...

DC: Mas acho que o filme do Karim está mais a frente, ele domina mais ainda essa linguagem....

LCOJr: Sim, também acho, mas o que eu quero destacar aqui é o seguinte: a adesão ao filme está diretamente relacionada a realmente uma experiência que está ali, na projeção do filme. Isso, de cara, no cinema brasileiro, isso já ganha um aspecto positivo.

RG: Mas você não acha que Crime Delicado e Eu Me Lembro não fazem parte disso também não?

TM: Na verdade, eu acho que esse caso da sensibilidade, pra mim, estão nos 4 filmes que o Ruy citou.

DC: O Ano em que Meus Pais... com certeza.

BB: Acho que O Ano... tem outras justificativas pro sucesso a não ser a da estética e a da linguagem, mas também está.

LCOJr: É. O Ano... pra mim traz uma sensibilidade, sem dúvida. É um filme feito de maneira muito delicada e, de fato, é um filme também muito imersivo, mas eu já acho que tem uma outra questão, um dado histórico, de ditadura...

RG: Mas, ao mesmo tempo, o filme sabe trapacear no bom sentido com a questão do filme histórico. Porque o tempo inteiro o ponto de vista é o ponto de vista da criança: o ângulo da câmera nunca consegue ver tudo porque quando você é criança você não tem toda aquela dimensão. Então, se a própria visibilidade do filme equivale um pouco a visibilidade da criança, a visão que você tem das coisas que podem acontecer é uma visão parcial, se você se sente de certa forma tão impedido de agir como aquela criança, você sai daquela coisa de filme histórico e entre em uma percepção íntima daquela história.

LCOJr: Mas eu sinto isso na segunda metade do filme, ironicamente, a partir do ponto em que o garoto perderia a inocência, que é em uma cena que, por sinal, eu gosto muito, em que ele vê a polícia descer a porrada nos estudantes. Supostamente, é a cena em que o ator perde a inocência, sei lá, tomaria uma dimensão do que está acontecendo. No entanto, é o momento em que eu consigo ver o filme dessa forma que você está falando. Na primeira metade pra mim, eu acho sinceramente um plano que faz uma panorâmica do carro para o arame farpado com variação de foco não é um plano de criança. É um plano de um adulto que já sabe exatamente o que está se passando ali, sabe que aquela viagem ali é uma viagem cheia de farpas. Uma viagem, na verdade, que esconde um processo histórico muito espinhoso. Existem vários planos. A primeira meia-hora do filme me incomoda bastante do ponto de vista exatamente dessa construção do plano que joga com a movimentação de câmera, com a profundidade de campo e com a variação focal justamente para construir esse tipo de enunciado.

RG: Ele trabalha com foco e grão o tempo inteiro.

LCOJr: E com enunciados muito claros envolvidos nele. Tem horas que você não acha um plano que seja só um plano, não seja um enunciado.

DC: Mas você acha que o último plano de O Céu de Suely também não é isso? Se dissociando do mundo dela e tendo o olhar dele...

LCOJr: Não estou dizendo que O Céu de Suely é um filme de pura modulação sensorial... Claro que não.

LL: Acho que O Céu de Suely tem essa coisa de certos planos, como por exemplo o último plano, terem esse enunciado, mas o que chama atenção no plano é menos o enunciado do que a sensação que você tem.

LCOJr: O Céu de Suely, tanto em crítica quanto em público, se vê assim, quem gostou do filme ele vai te dar uma descrição de sentimentos, entendeu? Ele não vai te descrever assim: "Pô, o filme é extraordinário porque ele conta a história de uma menina do Ceará, que está querendo se vender, pra poder... é um filme que trata a imigração"...

TM: Grande parte da crítica recebeu o filme assim....

DC: Mas críticas discutindo o enredo do filme sempre vão ter.

LL: Eu tenho uma idéia que o filme trata a mulher do Ceará de uma forma diferente dos outros filmes tratam.

LCOJr: Acho que o filme chama atenção pela sensibilidade muito específica, muito particular que ele tem que não é um sensibilidade clichê por assim dizer.

RG: Inclusive, existiram algumas críticas que teceram senões como "Ah não, o filme se foca tanto no personagem que esquece o roteiro", coisas que basicamente é de alguém que não entendeu o filme.

DC: Peraí gente, se é pra falar isso aí, o Madame Satã o Celso Sabadin disse "Pra que fazer um filme sobre um cara que é homossexual, violento e ladrão?". Quer dizer, tem gente que não entende o filme e escreve umas coisas... Isso é uma coisa que acontece.

RG: Vamos passar, a raspa do tacho a gente deixa pra depois.

RM: Não, mas eu concordo inteiramente com Jr. quando ele fala que O Céu de Suely é o único que tem uma relação diferente dos outros três, discordando um pouco da Tati, porque eu acho que ele é o único que o envolvimento talvez seja menos com a própria Hermila, ou com qualquer coisa que esteja construída dentro do filme, mas seja muito mais uma coisa que o filme desperta, o que vai ser menos a sua identificação com o garoto do O Ano... ou com o próprio personagem do Eu Me Lembro, acho que com esses filmes você vai estar repensando o que o próprio filme está te apresentando ali, daquela trajetória daquele garoto ou da visão do Navarro sobre aquele garoto...

RG: Eu não sei se você está descrevendo algo objetivo a respeito dos filmes ou se é simplesmente a impressão subjetiva de uma emoção que você teve no O Céu de Suely que você não teve nos outros, porque esse tipo de emoção que você está descrevendo eu tive tranqüilamente com Crime Delicado ou Eu Me Lembro.

DC: Crime Delicado não tem nenhuma imersão, pra mim, o Crime Delicado é um filme tese.

LL: Mais que um filme de tese, todo o elogio do Crime Delicado vai tratar da questão estética, porque é uma questão que...

EG: Que é o tema do filme também, o filme discute isso, discute estética, discute criação.

LL: A forma é rígida. Ele chama atenção para aquilo que ele está fazendo. Ele chama atenção pro fato dos planos fixos, para o preto-e-branco e o colorido.

DC: Mas esse filme aí não tem como fugir do enredo. O filme chama atenção para o fato de que o crítico pira porque lida com o belo imperfeito. Ele não consegue lidar com o belo imperfeito que é a mulher, bonita sem uma perna. E o artista trabalha com isso de um forma que ele não consegue explicar. Quer dizer, é um filme sobre arquétipos. O Ruy escreveu isso maravilhosamente bem na crítica dele. É um filme que, enfim, existem questões, existem sentimentos? Existem. Mas esses sentimentos não estão criando personagens, de fato. E eu acho isso muito interessante no filme, acho que ele vai por um caminho que é bem diferente dos de hoje em dia.

RG: É um filme inteiramente consciente disso, a ponto de que não existe um equilíbrio, uma harmonia nas partes do filme. O filme faz questão de se quebrar e de reconstruir a cada seqüência.

LCOJr: Eu diria que ele leva a mutilação pra própria forma dele.

DC: Tentar compreender essa falha, né? A falha é uma questão do filme.

LCOJr: Os espaços do filme tão todos eles amputados, você tem, seja nas cenas de bar , ou no próprio quarto dela, você tem um enquadramento, você só filma uma parte do espaço. O filme joga com a exclusão de pontos do cenário, de pontos de linha, do que você está vendo. É difícil entrar na primeira metade do filme, se você for pensar nessa coisa de entrar como alguém que está habitando o espaço do filme.

DC: O único momento de emoção é o cara pintando a mulher, né? É quando ele volta pro flashback do cara pintando a mulher em uma transa.

LCOJr: O que eu acho maneiro dentro da obra do Beto Brant, que é um cara que já se firmou como um autor do cinema brasileiro. Eu acho interessante que ele saia de um filme que, sei lá, se havia um estilo Brant se delineando você ia pensar em câmera na mão, uma certa vertigem da composição narrativa, uns mergulhos em vertigens: você tem tanto no Os Matadores, como no Ação entre Amigos e em O Invasor, aquela coisa de que o filme vai acabar na queda do personagem e a própria mise en scène dele parecia um pouco fazer esses movimentos, sei lá, tinha uma certa velocidade, uma agilidade e uma movimentação e tal e, de repente, o cara faz um filme com uma câmera parada, com outro ritmo, outra duração. É uma duração inédita para o Beto Brant. Acho muito bom isso, acho muito saudável dentro de um cara que no Cinema da Retomada se firmou como um... mostrou um projeto autoral. Mostra inquietação da criação dele.

LL: Mas, só voltando o ponto, que eu tava falando sobre O Céu de Suely e o Crime Delicado. Sim, os dois filmes têm um enredo e o enredo pode ser importante, e também são elogiados pela crítica de maneira geral, e é difícil elogiar os dois filmes sem pensar na forma com o que ele está tratando esse enredo. Nas críticas mais rasas normalmente existe uma certa vontade de entender a forma que ele está tratando aquele enredo. Só que no Crime Delicado essa forma, digamos, puramente estética no sentido de pensar – aí, sim, se discutiria o corte, se discutiria o preto e branco, se discutiria o plano fixo – e, em O Céu de Suely é uma forma muito mais sensorial de se trabalhar, por isso que o Junior começou o comentário dele dizendo "ah, o ponto de corte do filme não é questão importante para O Céu de Suely". Eu acho interessante pensar como nesses dois filmes a crítica trabalha esse ponto, mas que esse ponto é trabalhado, ou deve ser trabalhado, de duas formas diferentes. Essa estética busca duas coisas diferentes.

TM: É, mas eu não sei se eu concordo sobre O Céu de Suely porque eu acho que a sensibilidade dele, ela é de alguma forma um tema e uma proposta do filme.

DC: É, ela é construída.

TM: Eu acho que ela está muito aparente como esqueleto, como estrutura do filme, essa proposta de retratar uma sensibilidade e, pra mim, é exatamente o que quebra a sensibilidade, porque eu acho inclusive que isso está relacionado com a questão da montagem que o Ruy falou, não só por ser um tique de montagem, mas porque eu acho que ele corta a evolução da cena que ele próprio cria.

DC: É, na verdade você queria ter sido enganada pelo filme. Você acha que o filme não te engana.

TM: Não, não é isso....

LL: É um filme que cai quando a estrutura é aparente

TM: Não acho que seja uma estrutura aparente propositadamente, essa que é a questão. Não acho que é uma ironia.

DC: Mas não tem que ser uma ironia. Qual é o problema da estrutura ser aparente sem ser uma ironia.

TM: Porque eu não acho que ela seja aparente forçadamente, não acho que isso seja um efeito intencional do filme.

LCOJr: A minha questão é a seguinte, talvez ela esteja escapando. Tem até um texto do Adrian Martin que foi publicado na Paisà e que é bem legal, que ele fala de como um filme pode conduzir um espectador ou algo assim. Filmes contemporâneos que estabelecem novas formas de condução de uma narrativa, o teu ponto de ancoragem ao filme, ele não precisa ser um personagem, um tema, um mistério, um dado de trama, de enredo. No Elefante você vai ter um conceito, a construção de um certo lugar e de um certo tempo, um jogo, o próprio dispositivo como sendo aquilo que te conduz pela narrativa. Ou então no caso de um filme em que a própria estrutura é derivada do video-game, do seu modo participativo com o filme, deter aquele espaço em que as coisas ocorrem em simultaneidade você meio que fica escolhendo com quem jogar, como você faria no video-game, com que personagem ou com que situação jogar, em suma. Em O Ano Que Meus Pais... o que conduz você ali? É um ponto de vista narrativo, um ponto de vista dramático até de um certo sentido clássico de construção. É uma adesão, é um processo identitário e adesivo, totalmente tradicional e nenhum demérito nisso. O que eu quis dizer em relação a O Céu de Suely é que se você tiver que achar quem te ancora ao filme. Não é a Hermila como personagem.

RG: É uma intensidade-Hermila que ao mesmo tempo é a própria forma do filme.

LCOJr: É uma intensidade que é uma interação, digamos, da sensibilidade de quem filme com o material que está ali. O espaço, a luz, entendeu? Essa a minha grande questão de O Céu de Suely. Eu acho, sim, algo digno de nota. Um filme, no cenário brasileiro, em que você sempre tenta buscar fora de tudo isso que eu falei, a sua motivação de acompanhar aquele filme e depois de sair tocado pelo aquele filme, como em O Céu de Suely isso pra mim foi, claramente, até o senso comum conseguiu chegar ao filme dessa forma.

RG: Eu Me Lembro, por exemplo, eu sinto a mesma coisa. Eu vejo na maneira extremamente fragmentada com o que o Edgar Navarro vai cortando uma situação com outra, não dá nem pra dizer que são elipses, porque a princípio ele pode evocar coisas que podem ter acontecido antes ou depois. O filme envolve uma relação entre seqüências tão alógicas. É o funcionamento da memória. E ao mesmo tempo, como ele consegue elencar isso com um rebeldia, parece que as seqüências deram um golpe e existem anarquicamente umas em relação as outras. E ao mesmo tempo, do ponto de vista dos próprios acontecimentos, do próprio conteúdo da memória evocada, se percebe ao mesmo tempo um certo dado de uma figura de exceção que carrega em si todo um lado, ao mesmo tempo, majestoso; é um anjo do mal-comportamento. O anjo que vai lá acabar com o coro dos contentes. Por ao mesmo tempo uma desobediência que é ao mesmo tempo uma graça. E daí vem um humor que é tão anárquico quanto as seqüências umas em relação as outras. Nesse sentido eu também vejo uma homologia entre forma, sensibilidade e conteúdo. Da mesma forma como tem uma intensidade-Hermila que povoa a forma e a maneira com a qual a gente apreende e se relaciona com O Céu de Suely, eu vejo a mesma coisa com Eu Me Lembro. Ele consegue uma proeza, ao mesmo tempo, é claro que ele tem uma referência central em torno do Fellini, "Eu me Lembro" é o que significa Amarcord no dialeto de Rimini etc. E que ele vai trabalhar, curiosamente, um imaginário muito mais próximo do Buñuel, com uma mistura de um anti-clericalismo, uma sexualidade e ao mesmo tempo de um trabalho que eu acho extremamente poderoso sobre um tempo da história do Brasil, mas sem precisar recorrer àquelas âncoras sempre repetidas, ou mesmo quando usa essas âncoras fazê-las numa chave íntima e não em uma chave da grande história. Eu acho que o filme só desvia um pouco desse momento quando aparece um amigo subversivo que entrou pra ditadura e, mesmo assim, ele tem uma maneira inteligentíssima de sair disso que é fazendo com que tudo isso culmine em um ataque de nervos do personagem.

EG: Isso é uma coisa que incomoda um pouco em O Ano em Que Meus Pais..., que o personagem do Caio Blat, por exemplo, é uma âncora o tempo todo, é a marca da história.

RG: A Copa do Mundo é uma âncora cronológica também.

EG: Mas é mais um painel do que é uma pontuação como é o Caio Blat e isso é uma coisa que me incomoda que é uma coisa bem de Anos Rebeldes, a função dele, o diálogo que ele fala, entendeu? Tem uma coisa parecida no filme do Cacá Diegues, que um personagem, para situar, fala: "a ditadura está com seus dias contados!". Fala uma frase feita.

DC: Em relação ao Eu Me Lembro, que talvez seja o OVNI do ano que o Navarro traz. O que eu acho interessante é que a gente está falando de imersão, mas ele demanda, por ser esse filme memorialista, mais do que qualquer outro, isso daí pra mim sinaliza muito claramente, a gente tava falando tanto O Céu de Suely quanto O Ano... até mesmo o Crime Delicado, todos esses estão sempre em futuro próximo, é a coisa do "o que vai acontecer", tudo bem, O Céu de Suely não se preocupa tanto com o enredo, mas você quer saber o que vai acontecer com ela. No Eu Me Lembro não interessa o que vai acontecer, só o que está acontecendo. O que aconteceu e como ele ocorre. O pitoresco, o gracioso, é o discurso da identificação, de fato, com as falhas do personagem, com os desejos dele que é o grande ganho do filme.

RG: Eu acho que o Eu Me Lembro tem momentos não tão bons quanto outros, o Crime Delicado acho que da mesma forma . O Céu de Suely é um filme muito mais harmônico, muito mais equilibrado, muito mais coeso, mas ao mesmo tempo é um filme que dados alguns minutos eu sei como ele vai funcionar. O que me encanta no Crime Delicado, Eu Me Lembro e em certa medida no outro filme que faz parte da nossa experiência como revista esse ano que é o Serra da Desordem do Andrea Tonacci, a gente percebe que tem um filme se fazendo e a nossa percepção vai se moldando ao passou que filme se constrói, de fato a serem filme que são verdadeiros mistérios e filmes que colocam uma questão estética para além de filmes filiados a uma determinada estética que a gente gosta mais, para além de filmes que estão em um determinado momento do cinema puxando uma determinada estética. Acho que O Céu de Suely é certamente o filme brasileiro que mais está antenado com uma série de questões estéticas que estão acontecendo no Japão, na Coréia, na China, em Taiwan....

DC: Assim como O Ano... também está antenado com o que um certo público quer.

RG: Isso não é um demérito de O Céu de Suely nem é um mérito, a princípio. Pra gente tentar entender o filme de uma forma interessante é interessante estar familiarizado com uma parte do cinema contemporâneo. É curioso que, aparentemente, os críticos mais oficiais não estão nada familiarizados, porque insistiram em citar o Wim Wenders como a grande influência de O Céu de Suely, o que significa que a crítica brasileira está atrasada pelo menos 20 anos. Mas, sim, Jia Zhang-Ke, Hou Hsiao-Hsien, Claire Denis... Claire Denis vale dizer, que bom, o Karim na entrevista pra gente ele falou que queria fazer Madame Satã com a Agnès Godard, que era a diretora de fotografia da Claire Denis, porque ele queria a relação que câmera tem com o personagem, pois o personagem é que decide o movimento da câmera e não ao contrário.

DC: Sob certos aspectos, parece até com o Vendredi Soir.

LCOJr: Uma coisinha ou outra.

RG: Bom, se tem um filme que tem uma referência mais clara seria Millennium Mambo. Uma intensidade do filme que ao mesmo tempo é uma sensibilidade e que é um personagem, acho que no cinema recente só se cristalizou de um forma mais clara em Millennium Mambo. A gente não traz isso pra falar que o Karim é um cara sem criatividade, que ele só copiou, mas ao mesmo tempo eu acho que uma filiação não quer dizer automaticamente um eximir-se de uma possível repetição de fórmulas, ou de um passe livre que ele ganha só por estar antenado com o que se faz de melhor no cinema contemporâneo. É um filme soberbo, em diversos aspectos, é um filme que eu tinha esperanças maiores, ainda assim é um filme que me emociona enormemente, eu vi duas vezes em menos de uma semana. É um filme que quando revisto as qualidades crescem muito, mas um esquematismo fica mais claro também. Como espectador eu consigo conviver com esses dois aspectos, como crítico nem tanto. É um filme que eu defendo com unhas e dentes, mas ao mesmo tempo me parece menos encantador do que esses três filmes que eu mencionei.

DC: Eu que o que salta os olhos em O Céu de Suely também é que a gente falou sobre montagem e câmera, mas a grande relação que o Karim faz e que é a grande diferenciação dele no cinema brasileiro é que ele joga tudo isso em função dos atores. Os atores constroem os personagens, os atores constroem a câmera e a montagem. Isso acontece com o Lázaro e acontece com a Hermila. Eles são praticamente co-autores do filme.

LCOJr: Existe uma simbiose determinante entre ele e os atores principais. É uma relação diretor-ator única, especial mesmo. Eu acho que a energia do filme, que é uma palavra define essa minha questão sobre o que é o must de O Céu de Suely, não vai só do trabalho de seguir o ator.

DC: Não, mas é o motor, o guia central. O resto vai funcionar a partir daí.

LCOJr: Acho que aí entra as próprias ressalvas feitas aqui, em relação ao uma certa movimentação de câmera que explora o espaço e explora a luz já muito influenciado pelas coisas que ele vê de cinema e tal. Acho que aquele plano lindíssimo da moto que começa na beira da estrada e termina em um pôr-do-sol, sei lá, diria que é um plano que o que a atriz tinha pra fazer ali não sei se isso foi mais forte do que um certo gosto por uma construção.

Parte 1: Estrutura, documentários

Parte 2: Globofilmes, cinema e televisão, Brasília 18% e
O Maior Amor do Mundo, A Concepção
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Parte 3: O Veneno da Madrugada, Árido Movie e
estréias em longa-metragem
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Parte 4: O teatro e o parasitismo,
novamente documentários
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O Céu de Suely, de Karim Aïnouz


O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias,
de Cao Hamburger


Crime Delicado, de Beto Brant


Eu Me Lembro, de Edgard Navarro