Atualmente
com 82 anos, Sidney Lumet é um cineasta que nos
últimos tempos, não vem apresentado trabalhos
interessantes, muito provavelmente mais pelas limitações
do mercado cinematográfico americano em si do
que pela sua competência própria. Nome
de importantes trabalhos, em especial durante os anos
70 e 80, desde Q & A (1990), apenas um filme
assinado por ele alcançou repercussão:
Sombras da Lei (1997). Nestes, como em muitos
títulos importantes de sua obra – Serpico
(1973), Príncipe da Cidade (1981),
O Veredito (1982) – vemos personagens que, conforme
já fora destacado anteriormente em artigo
de Sergio Alpendre para Contracampo, se confrontam "com
os dilemas morais a que eles têm que se debater
para ficarem em paz com suas consciências".
Nesses filmes em especial os protagonistas marcam um
embate contra uma espécie de corrupção
endêmica, presente nos escalões onde deveria
haver a promoção/manutenção
da lei (polícia, sistema judiciário).
Não raro as ações descambam para
um ambiente de tribunal – terreno onde Lumet se sente
bem à vontade desde a sua estréia com
Doze Homens e uma Sentença (1958) – e,
mesmo que quando o filme se conclui não haja
um restabelecimento da ordem ou justiça, ainda
temos personagens positivos, que de alguma forma, representam
resquícios de honestidade numa sociedade falida.
Pois bem, surgem então algumas expectativas para
esse trabalho mais recente de Lumet, Find Me Guilty.
Mas essas nasceriam até um ponto limitadas, justificando-se
principalmente pelo retorno de um cineasta, que a princípio
poderia ser considerado como "fora de forma",
a um terreno que conhece como a palma da mão,
encenando uma história verídica, como
fizera diversas vezes no passado. Daí a surpresa
ao vermos no novo filme um intenso arroubo de vitalidade,
trabalho de cinema totalmente independente, que subverte
não somente alguns paradigmas da obra de Lumet,
como os citados no parágrafo anterior, mas também
todo um conceito de "heroísmo e manutenção
da ordem", no qual o cinema americano tradicional
sempre se viu fortemente imbuído. A começar
pela escolha do protagonista, Jackie DiNorscio, um mafioso
que nunca deixa de ser apresentado como criminoso e
a quem não se procura escamotear os delitos que
cometera no passado. Justamente o oposto do herói
"Lumetiano" clássico, tradicionalmente
situado do lado da lei, como o detetive Frank Serpico
ou o advogado Frank Galvin. Há também
que se destacar a audácia, partindo de um diretor
que sempre optou por trabalhar com atores virtuosos
e consagrados – Al Pacino, Paul Newman, para ficar somente
nos últimos dois exemplos - , da escalação
de Vin Diesel, astro de ação de filmes
pouco valorizados. Pois bem, Lumet extrai uma atuação
luminosa de Diesel, explorando ao máximo suas
limitações e um surpreendente histrionismo.
Voltando ao filme em si, os primeiros minutos de Find
Me Guilty sugerem uma incursão no universo
do seriado Família Soprano, inclusive
pela presença de nomes do elenco de apoio desse
último. Vemos Jackie DiNorscio apresentado como
um gangster corpulento e paternal, membro da máfia
de New Jersey (Alguém lembrou de Tony Soprano?).
Mas o que Lumet faz questão de destacar desde
a primeira seqüência, na qual Jackie é
baleado na cama por um primo drogado, é o senso
de honra e fidelidade que o protagonista não
abre mão de preservar. Com uma narrativa inicialmente
fragmentada e elíptica, vemos Jackie fazer seus
negócios ilegais e ser preso numa armadilha.
Nisso fica logo demarcada a personalidade de Jackie
com seu carisma e caráter irreverente.
Com a proximidade do julgamento, o filme muda de tom.
Este começa a se estabelecer de forma gradual
quando Jackie é levado ao escritório do
promotor (Linus Roache) que ao tentar seduzir o criminoso
para um acordo, tenta intimidá-lo com um comportamento
digno do mafioso mais frio e impiedoso. Isso retrata
uma linha que ficará bem clara ao longo do filme.
Ao contrário da obra clássica de Lumet
na qual, mesmo num universo essencialmente corrupto,
haveria espaço para algum senso de justiça
ou idealismo, aqui ele parece ter desaparecido completamente,
caracterizando a afirmação de uma falência
generalizada do sistema. Meliantes, advogados, promotores,
são tudo farinha do mesmo saco e quando presentes
no mesmo ambiente não há como diferencia-los,
seja por sua aparência, mas principalmente por
suas atitudes. E isso irá acentuar-se de forma
cada vez mais intensa ao longo do filme.
Find Me Guilty assume sua forma marcante e definitiva
ao ingressarmos no tribunal para um julgamento que logo
saberemos ser não somente de Jackie, mas também
de todos os membros de sua famiglia, cada um
com seu defensor próprio. Lumet começa
a impor um tom farsesco, que destaca o ridículo
por trás de todo o ritual da justiça.
Advogados se apresentam até que Jackie resolve
fazer sua própria defesa. Com seu discurso que
mais parece a performance de um comediante stand-up,
na qual não faltam inclusive piadas sujas, vemos
definitivamente a caracterização do tribunal
como um espetáculo que beira o grotesco. Lembrando
que o filme abre com uma cartela que comunica que a
quase totalidade de seus diálogos foi extraída
dos autos do processo, aumenta-se sobremaneira a intensidade
dessa retratação do quase-absurdo. O que
sempre foi visto na obra de Lumet como espaço
para possível imposição de alguma
ordem torna-se aqui um circo situado na inerência
de um ridículo, denunciado de forma cada vez
mais extrema a cada vez que Jackie assume a palavra
no tribunal. Essa ritualização do ridículo
só se acentua à medida que cada nova cena
é introduzida pelo dia que contou desde o início
do julgamento, números que passam a crescer de
forma cada vez mais absurda, já que ele se estendeu
por quase 2 anos.
Depois de entrar no tribunal, o filme dele raramente
voltará a sair e é nessa encenação
do julgamento que vemos Lumet retomar com uma vitalidade
impressionante para um octagenário todo seu domínio
do artesanato cinematográfico e renovar todo
um universo o qual poderia supor-se anteriormente bem
delineado e estabelecido. Se nos filmes anteriores do
cineasta o tribunal é sempre encenado com uma
marcante sobriedade em momentos de dramaticidade intensa,
em Find Me Guilty vemos, como foi dito anteriormente,
um circo, retratado de forma nunca menos que debochada.
Desse tom cômico, sempre eficiente, diversas vezes
brilhante, vemos outra grata surpresa: Lumet superar
sua tradicional mão pesada para um gênero
no qual suas incursões sempre deixaram algo a
desejar - vide Bye Bye Braverman (1968) ou Garbo
Fala (1984.). Se desde o início da carreira
Lumet sempre demonstrou domínio na exploração
de espaços exíguos – Doze Homens e
Uma Sentença passa-se integralmente ao redor
de uma mesa – vemos aqui uma busca em novos ângulos,valorizando
posicionamentos de câmera e imposição
de uma montagem que acentuam o decadente espetáculo
da pretensa "justiça". Mais um mérito
para Lumet, que consegue retratar o circo da justiça
trabalhando um julgamento simplesmente e filmando-o
como tal, trazendo à lembrança a versão
filmada de Chicago (2002), que, para retratar
o mesmo circo, trabalha com toda a complexa estrutura
do musical para fazê-lo sem chegar sequer perto
da mesma força, do mesmo impacto de Find Me
Guilty.
Durante sua meia-hora final, Find Me Guilty assume
um caráter de subversão bem próximo
da anarquia. O filme não deixa pedra sobre pedra
sobre algumas das mais caras instituições
americanas. Todo filme de tribunal atinge seu clímax
em um interrogatório no qual se revela algo essencial
para o processo e em um discurso que poderíamos
dizer "edificante", sempre ressaltando boas
intenções em um terreno que não
raro descamba para a pieguice. Aqui temos, quando Jackie
interroga o primo que o havia baleado no início
do filme, uma ironização máxima
dessa aparente dramaticidade, num interrogatório
que só faz valorizar a honra e a fidelidade vindas
de um criminoso que não retém crise de
consciência por suas atividades. Ela tem seus
méritos demarcados ainda mais ao se fazer um
paralelo com a fortíssima cena de O Veredito
na qual Paul Newman interroga a testemunha vivida
por Lindsay Crouse. Toda essa ironia se preserva nos
discursos feitos por Jackie, em especial naquele onde
convence seus companheiros a não aceitar o acordo
proposto pela promotoria e que inclui uma das maiores
pérolas de diálogo grosseiro da história
do cinema.
Mas nada supera a coragem de se retratar de forma gloriosa,
quase catártica, a absolvição de
um bando de mafiosos perigosos, por um júri declaradamente
de saco cheio. A seqüência da saída
do tribunal é igualmente inspirada e debochada
e antecipa brilhantemente a conclusão de um filme
que beira um niilismo ao sugerir que, dentro do atual
estado das coisas na sociedade americana, o último
bastião da preservação dos valores
tradicionais da honra e da família estariam justamente
nos criminosos. E quando Jackie retorna a cadeia – se
seus companheiros saem, ele volta, pois já havia
sido condenado por outros delitos – temos não
um mártir, mas um anti-herói no sentido
mais clássico. Vemos aí nessa já
destacada subversão inerente ao projeto de Find
Me Guilty aquela que talvez seja a principal razão
nos EUA para uma má vontade generalizada para
com o filme, seu lançamento limitado e seu conseqüente
e retumbante fracasso de bilheteria. A verdade é
que Find Me Guilty é um filme tremendamente
corajoso, iconoclasta e que, infelizmente, parece não
interessar a ninguém.
Gilberto Silva Jr.
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