O MOSAICO MORAL DE SIDNEY LUMET
Serpico, O Príncipe da Cidade, Q&A – Sem Justiça, Sem Lei, Sombras da Lei

Quatro filmes, quatro protagonistas: Frank Serpico em Serpico, Danny Ciello em O Príncipe da Cidade, Francis Reilly em Q & A e Sean Casey em Sombras da Lei formam a aclamada tetralogia sobre a corrupção no Departamento de Polícia de Nova York. A classificação "policial", no entanto, é conceitualmente equivocada. Lumet trabalha numa chave muito próxima ao que cada um de nós conhece como ambiente de trabalho. Seus filmes são dramas, porque envolvem os personagens com os dilemas morais a que eles têm que se debater para ficarem em paz com suas consciências. Mais do que qualquer classificação que só agrada aos donos de locadoras, interessa a Lumet o quanto se perde em cada uma das escolhas feitas pelos protagonistas. São quatro, como já vimos, mas na verdade são um só: um homem que usa de sua posição, alta ou não, dentro do sistema policial de Nova York para tentar desamarrar o forte esquema corrupto que se montou. Poucas balas, poucas perseguições. Muitas dúvidas e conversas. Assim vivem os protagonistas desses filmes. Todos são reencarnações do mesmo Frank Serpico vivido por Al Pacino, até chegar ao mais acabado herói lumetiano: o Sean Casey feito por Andy Garcia em Sombras do Mal.

Com a oportunidade de se rever cronologicamente os quatro filmes, nota-se o quanto há de aprendizado na maneira como Lumet trata cada um. Aprendizado do diretor, em como tratar a história, em como envolver o espectador. Nesse sentido, obviamente Sombras da Lei é o filme que menos deixa arestas. Lumet reduz tudo ao que ele mais quer: o dilema moral de um homem diante de seus caminhos. Em Sombras da Lei, ao contrário dos demais, o dilema nasce da encruzilhada das situações, não da fraqueza do protagonista. Apenas com dois terços de filme, Sean Casey sente que pode prejudicar o seu pai se for a fundo na honestidade. Sente que há muito mais do que gostaria por trás de cada ação daquele que havia sido um exemplo de bom policial para ele. Seu final será, sobretudo, incompleto e frustrante, pela incapacidade de seguir adiante em sua cruzada anti-corrupção. Por isso seu discurso final encerra brilhantemente a tetralogia. Quando não há mais como se manter dentro de uma coerência honesta consigo mesmo, resta ser enérgico, e cobrar dedicação de seus subordinados. Restam os olhos lacrimejados de Andy Garcia.

Nota-se também a evolução do herói lumetiano. Frank Serpico é ingênuo. Acha que pode limpar o sistema policial sendo honesto. Briga com quem está a sua volta, é incompreendido, luta como se fosse um poderoso delegado, mas é apenas um patrulheiro de rua (mesmo quando é promovido a detetive). Danny é um detetive de certo respeito, mas que não consegue dormir por crises de consciência. Aprendeu que deve privilegiar os parceiros, mas não sabe que, quando resolve implodir a corrupção reinante, vai prejudicá-los, mesmo que não queira. Francis Reilly é assistente do promotor. Tem poder o suficiente para enfrentar os corruptos. Mas sente que seu pai, um respeitado e falecido policial, poderia ter seu nome manchado se tudo viesse à tona. Sean Casey chega a ser eleito Promotor de Justiça, mas mesmo assim sente-se incapaz de ir ao fundo do problema. E se ele não pode, ninguém mais pode. A série termina em tom mais pessimista do que começara. Para Lumet, a engrenagem não pode ser detida. Não haveria polícia, não haveria justiça.

Mas Lumet, como já dito, preocupa-se muito mais com o interior de seus personagens. Em como seus heróis continuarão vivendo depois do fracasso de seus ideais. Nesse sentido, os quatro filmes vão adquirindo ares cada vez mais sombrios. De um abandonado Frank Serpico, exilado com seu cachorro, a um cético Sean Casey, cuja pequena nódoa no currículo parece ter aberto um enorme buraco em sua consciência, a ponto de ele não ver mais futuro algum em uma busca por honestidade no combate ao crime. De Danny Ciello sem saber onde enfiar a cara por ter sido desprezado em público por um pupilo a um Francis Reilly catatônico e desesperançado por ter descoberto que o próprio pai fazia parte do esquema que ele tentava desmontar.

Filmes desiguais. Serpico é mais pretensamente poético, mas é limitado por um personagem que parece viver em outro mundo. Lumet dirige o filme com segurança, e o protagonista chama atenção por ser muito hippie, num mundo onde os hippies já não tinham o mesmo espaço. Mas é um ser sem a menor ambigüidade, o que torna mais difícil nossa adesão à sua causa. O Principe da Cidade é o melhor deles, apesar de seus excessos. Pesam contra aqueles dizeres, tirados do caso real (que imprimem um traço documental ao filme, ao mesmo tempo em que procuram a poesia a qualquer custo), alem de uma certa ingenuidade do protagonista (resquícios de sua encarnação como Frank Serpico). Mas é o que tem o melhor trabalho de câmera, e o mais bem enquadrado de todos. Lembra o Lumet inicial de Doze Homens e uma Sentença, onde o quadro era pensado de acordo com a influência que cada personagem exercia no outro.

Q & A é o mais irregular, e o menos satisfatório. Tem um caso amoroso patético, com uma atriz sofrível (Jenny Lumet, filha do diretor), e um ator que não engrandece seu personagem (Timothy Hutton, o ator por trás de Francis Reilly). Nick Nolte exagera no estilo brutamontes, mas quando evita o "overacting", como na cena em que ameaça Reilly pela primeira vez, está ótimo. Alguns diálogos parecem existir só pra confundir, artifício muito bem usado no cinema noir, e terminam por causar certo enfado, em parte por termos um vilão muito mais interessante do que o herói (mesmo com os exageros de Nolte), o que não acontece nos outros filmes.

Sombras da Lei é um filme que merece revisão, já que é o menos citado dos quatro. Além de ser o que melhor dá conta do que Lumet queria, é muito bem resolvido na direção. Com um ritmo que lhe confere agilidade e capacidade de contemplação. De um começo cheio de elipses sobre a vida de Sean Casey, para a quase fatídica batida no quarto em que estava o traficante, momento em que o andamento torna-se mais lento, é um filme que sabe muito bem em que terreno pisa e como lidar com todas as situações já vistas nos outros filmes: medo de escuta por microfones escondidos, policiais que se suicidam, pressões internas para que tudo fique como está, lutas pelo poder dentro da repartição, doação de drogas em troca de informações, a presença ameaçadora de uma corregedoria (Internal Affairs). Lumet trabalha muito bem com essas informações, evitando uma incômoda sensação de déjà-vu.

O que torna ainda mais rica a experiência de rever a série é que, assim como seus protagonistas, também Lumet aperfeiçoou seu ponto de vista, aprimorou seu método em direção a uma economia de informação que fez muito bem aos filmes. Percebe-se o quanto os erros de Q & A foram necessários para Sombras da Lei. E o quanto O Principe da Cidade tem de resposta a Serpico. Dois protagonistas de origem italiana, nos dois primeiros filmes, deram lugar a dois de origem irlandesa, nos filmes seguintes. Um italiano que não consegue se relacionar com as mulheres (Serpico), em parte por sua obsessão incontida pela honestidade a qualquer custo, um irlandês que pode perder a mulher de sua vida por não saber lidar com seus próprios preconceitos (Q & A). Outro italiano que tem a mulher sempre a seu lado, mesmo nas escolhas erradas, mesmo quando, contrariando a vontade dela, segue num jogo perigoso e que pode descambar na traição (O Príncipe da Cidade), outro irlandês (Sombras da Lei) que conhece a mulher da sua vida, que segue a seu lado confiante e tolerante, apesar de trabalhar para um antigo rival (advogado de defesa, destinado a proteger criminosos). Evolução dos personagens como resultado do estudo do tema. Obstinação do diretor em aperfeiçoar as idéias de um de seus filmes mais famosos (Serpico).

Frank Serpico não tem parceiros, não faz amizades porque desde o início vai contra o esquema de corrupção dos policiais. Danny Ciello cria uma irmandade entre os policiais, principalmente com seu parceiro Gus Levy (judeu, como Lumet, e o mais forte como defensor de seus princípios de camaradagem), mas trai essa irmandade, por ingenuidade, por não perceber, apesar de todas as evidências, onde daria sua vontade de cooperar com o temido "Internal Affairs". Francis Reilly parece não ter amigos, a não ser um velho policial que agora trabalha na corregedoria, e que lhe explica os meandros da justiça e dos trâmites policiais. Seu pai morreu, e a pessoa mais sensata e passível de lhe ofertar uma sincera amizade é o poderoso traficante vivido por Armand Assante, dono temporário do coração de sua eterna amada. Quando não tinha forças para reconquistá-la, combatia a corrupção policial. Quando se viu sem forças para combater a corrupção policial, correu de novo para a mulher de sua vida, beneficiado pela morte do traficante.

Sean Casey é o único seguro de si dos quatro heróis. O único que consegue chegar à Promotoria. Seus amigos são da velha guarda, o pai e o parceiro do pai. Ambos com seus podres. Recebe os melhores conselhos daquele que, em tese, é seu rival, o advogado de defesa Sam Vigoda, interpretado por Richard Dreyfuss. Cartas embaralhadas, vemos, afinal, o que pretendia Lumet aflorar perfeitamente no fecho da série. Como nossas escolhas afetarão nossas relações com as pessoas. E como a perseguição de um ideal pode custar amizades e paixões. O Sean Casey de Andy Garcia é o que mais próximo chegou da equação perfeita, e por isso mesmo, é o que mais dá a sensação de morte na praia. Talvez a imagem símbolo dessa série de filmes seja a de Sam Vigoda e Sean Casey conversando pela segunda vez na sauna. Ali cai a ficha de Casey, de sua situação, de sua posição sempre ínfima frente à grande corporação policial. Ele finalmente aprende que a maior parte das coisas residem nos tons cinzentos entre o preto e o branco.


Sérgio Alpendre

SERPICO (Serpico), EUA, 1973
(VHS: LK-Tel)

O PRÍNCIPE DA CIDADE (Prince of the City), EUA, 1981
(VHS: Warner)

Q & A – SEM JUSTIÇA, SEM LEI (Q & A), EUA, 1990
(VHS: Flashstar, DVD: Fox)

SOMBRAS DA LEI (Night Falls on Manhattan), EUA, 1996
(VHS: Europa Carat)

 

 





Sombras da Lei de Sidney Lumet (1996)