MUDANÇA DE SGANZERLA

Folheando as páginas do roteiro de O Bandido da Luz Vermelha, sentimos uma familiaridade muito grande com a história contada, com a narração à maneira dos programas policiais de rádio. De fato, e sobretudo no plano das imagens, o roteiro – bastante mais minucioso e preparado do que se imagina – está inteiro lá, nas passagens de cena, na seqüência de imagens que mostra os "anos de aprendizagem" do Luz, na apresentação do delegado Cabeção e nas exatas palavras do casal de locutores que comentam os acontecimentos da pulsante cidade-noir em que é transformada São Paulo no filme. Mas algo que vemos no filme não se encontra inteiramente reproduzido no filme. E nem é tanto na dinâmica dos cortes selvagens de Sylvio Renoldi, nem na curta duração dos plano e nas passagens rápidas de uma cena para outra. Experimente assistir a O Bandido da Luz Vermelha sem volume e você vai ter uma experiência muito mais parecida com o que se experimenta lendo o roteiro. É no estágio da edição de som que o primeiro longa-metragem de Rogério Sganzerla alcança a maior parte da virulência e do dinamismo pelo qual é conhecido, tanto nas explosões e rajadas de metralhadora ou nos offs de Paulo Villaça, não previstos no roteiro ("Fui talhado para a cadeira elétrica", espécie de "introdução" ao personagem, não pertence ao roteiro, ao passo que "O terceiro mundo vai explodir; quem estiver de sapato não sobra, não pode sobrar" é apenas colocado na boca de um anônimo que é levado pela rádio-patrulha). Desde o começo, será pelas opções de retrabalho após a filmagem e pelas opções, freqüentemente disjuntivas, de montagem que o artista Rogërio Sganzerla se destacará e fará progredir sua arte. O Bandido da Luz Vermelha, com seu tamanho poder de devastação do cenário por demais correto do cinema narrativo (principalmente o brasileiro, mas não somente), é ainda um filme de estrutura fechada, bem amarrada, coerente e lapidado. As tramas da descontinuidade e da disjunção, depois desse filme, levariam seu cinema a um grau de liberdade e experimentação com o incompleto, o impreciso, o aberto, que não permitiriam volta. A carreira de Sganzerla faz uma seta, e não há volta atrás.

Antes de O Bandido da Luz Vermelha, dois curtas-metragens estabeleceriam o trato com a montagem: tanto como montador de Olho por Olho (e, em menor medida, O Pedestre) como diretor do curta-metragem Documentário, é com as possibilidades disjuntivas do jump cut que Sganzerla faz seu manifesto cinematográfico. De fato, no artigo/capítulo "O herói fechado"1, ele estabelece o "antagonismo existente entre cinema clássico e cinema moderno". Ao tratamento moderno ele atribui aquilo que a montagem e a edição de som farão em seus primeiros filmes: complexo, múltiplo, clareza relativa, descontínuo e ilógico (em contraste com linear, unitário, clareza absoluta, contínuo e lógico, respectivamente). Essas cinco características modernas, de certa forma, serão para Sganzerla a maneira de se inscrever diferencialmente na história do cinema, levando todas a seu máximo de radicalidade. Esses cinco lemas, é importante notar, todos caminham num sentido ou de disjunção total (descontínuo, ilógico) ou, no mínimo, de associações não óbvias, contrárias ou improváveis. E, a partir de A Mulher de Todos, esse programa será aplicado à quase totalidade de elementos expressivos em jogo a cada filme, freqüentemente dedicando-se mais à radicalidade da disjunção. Cinemascope e câmera na mão (Copacabana mon amour), Luiz Gonzaga e masturbação com garrafa ou planos seqüência e descontinuidade lógica entre os planos (Sem Essa, Aranha), ligação de episódios esparsos pela única explicação geográfica "Ilha dos prazeres" (A Mulher de Todos: o casal do "Pede uma cuba" faria uma associação complexa – significando, talvez, "São Paulo no balneário" – ou uma relação ilógica total co os protagonistas?).

Em todo caso, Rogério Sganzerla vai fazer todo o esforço do mundo para que seus filmes não rimem, que a estrutura não se feche sobre si – talvez para melhor se abrir para o mundo –, buscando acima de tudo uma arte imperfeita e incompleta – valores que certamente são os buscados pelo cinema moderno, ou pelo menos pela parte de radicalização dessa linhagem ao redor do mundo à qual pertencem Godard, Oshima, Pasolini, Skolimowski no final dos anos 60. Se a rima é um elemento da obra que estrutura não só relações de assonância mas também de ritmo (ela existe no fecho do verso, no tempo forte do ritmo, e tem a função de demarcar o fim de um verso e o começo de um outro), Sganzerla vai preferir a paronomásia, a rima arrítmica, como efeito de comparação de idéias, de planos, de comportamentos. Assim, em A Mulher de Todos, todos os homens podem circular ao redor de Ângela Carne e Osso, mas isso não fará com que possamos travar nossa experiência do filme comparando as características distintas de seus pretendentes (bitolado/não-bitolado, rico/pobre, vampiro, toureiro, autor de gibis, empresário etc.) – o que seria a forma de composição clássica oposicional –, embora elas estejam lá: o filme não colocará esses elementos ali onde poderíamos fazer a comparação (rima/paronomásia). É mais uma menção discreta. A montagem de Sganzerla não funciona nem de forma linear, mas tampouco sob forma dialética: a oposição e o choque também participam de um princípio de "clareza absoluta" que ordena as oposições. Ele prefere a "primitiva" e simples adição (e isso, e aquilo, e aquilo outro) ou o choque não-relacional, violência alógica, ao bem armado da composição predefinida dos cinemas clássicos e dialéticos confundidos e aqui superados.

A partir de A Mulher de Todos, a parte se desprende do todo. Os blocos se bicam, lapidarmente arestados, pontudos. E o percurso a caminhar é íngreme, e exige saídas radicais. À doçura confrontativa do segundo longa-metragem, a quebra oficial com qualquer possibilidade de cooptação para as alas do cinema novo (e o aparecimento, ao mesmo tempo, da famosa entrevista em O Pasquim que deflagrou tudo não é simplesmente ocasionalmente localizado no tempo), Sganzerla proporá em seus filmes da Belair seus três projetos mais abertos ao acaso, à experimentação do ator, à gratuidade dos movimentos, à provocação pura e simples (os atores com o guardinha em Copacabana mon amour), em filmes que a produção ligeira e o imprevisível do "cenário" (a descida do morro em Sem Essa, Aranha) – em breve, o elemento irracional, o insconsciente – poderia determinar marcas estéticas tanto quanto o fotógrafo, os atores, os montadores, etc. Seja a televisão e a "locução" compartilhada por atores e equipe em Carnaval na Lama, seja as paisagens de Copacabana e os atores em Copacabana mon amour ou o espaço contínuo do plano-seqüência que une antidialeticamente vários possívels opostos em Sem Essa, Aranha, há uma busca pela intervenção ativa do acaso, um elogio do happening, da arte se fazendo em tempo real a partir dos acidentes e das respostas improváveis dos elementos "não-equipe" do filme, ou mesmo entre elementos da equipe, ator com ator ou ator com fotógrafo (um esbarrão em Sem Essa, Aranha). É como se tudo participasse de uma estrita lógica da descontinuidade lógica (da arte, do mundo) e de uma contigüidade casual (as possíveis associações, não lógicas, mas de aproximação).

Depois do exílio na Inglaterra e da aventura no Saara que rendeu Fora do Baralho (dado como perdido ou, na melhor das hipóteses, incompleto), o desejo de descontínuo tomará formas distintas, mas sempre aproximadas de um primitivo, como se o gesto moderno por excelência fosse fazer o mundo retornar a uma ordenação prévia em que o "tratamento clássico" do mundo – epifenômeno que no mundo das artes corresponderia à, ou seria resultado da ultraformalização capitalista da sociedade de consumo e do utilitarismo de uma nova relação do mundo contemporâneo com o mundo ao redor – desse lugar a uma civilização que pudesse criar associações mais livres (e aí é impossível não pensar no elogio que fez Décio Pignatari do paratático contra o sintático). Assim, nasce em Sganzerla um impulso de escavar a história, de retornar à terra como um espaço ainda virgem, inexplorado, de um lado, e às manifestações de culto religioso que tem uma relação mais mágica e ritualística de excessos com a divindade, de outro. Assim, seu curta-metragem sobre Villegaignon (Viagem e Descrição do Rio Guanabara por Ocasião da França Antárctica, 1976) e o projeto sobre Américo Vespúcio, inacabado (América), no primeiro caso, e Umbanda no Brasil, cujas filmagens datam de 1977, no segundo. Não é por acaso que O Abismo, seu único longa-metragem entre os filmes da Belair e Nem Tudo É Verdade, funciona entre arqueólogos, manuscritos perdidos, extra-terrestres, médiuns, casarões vazios, águas batendo nas pedras. O que há de comum entre todos esses elementos? O simples fato de poderem se opor, não dialeticamente – mas por sua própria presença, pelo simples fato de existirem – às formalizações de uma sociedade por demais racionalizada.

Se o roteiro do filme – talvez aquele que passou por mais tratamentos de todos os seus longas – narra uma história de maneira bastante digerível, a montagem do filme trata de estilhaçar toda a lógica e parece aprisionar cada personagem em seu ambiente: Edison Machado em sua bateria, Jorge Loredo nas pedras, Norma Bengell no casarão ou em seu carro, Mojjica e Wilson Grey no observatório astronômico, Jimi Hendrix "falando" consigo mesmo, além do próprio Sganzerla como personagem, todos são "empacados" pela montagem. A função disjuntiva da montagem assume um poderio total, e o fazer dos homens torna-se tão (in)articulado quanto o saber da natureza, e as pistas de decifração – páginas de livros, planos de montanhas, inscrições rupestres ou estranhos sinais em páginas de caderno – se tornam infrutíferas, porque no fundo não há nada a descobrir. Manifesto transverso para um novo nascimento do mundo – nas mãos, quem sabe, do extra-terrestre Zé Bonitinho –, O Abismo aposta apenas nos diálogos para seduzir o espectador, enquanto abala qualquer lógica narrativa através das ilhas não-comunicantes que a montagem cria.

Uma experiência destas não pode ser repetida a esmo. Assim, ao longo da década de 80 Sganzerla vai fazer sua obra circular por dois eixos estabelecidos na segunda metade dos anos 70. O primeiro começa com Mudança de Hendrix, e vai focar na vida e na arte de alguns diamantes brutos, intocados pela corrupção da sociedade, todos gênios precoces que tiveram fim trágico: Hendrix, Noel Rosa, Orson Welles. O outro interesse é a paisagem do Rio de Janeiro, iniciada com Viagem e Descrição... e retomada nos filmes sobre Noel Rosa e Welles, inteiramente centrados na relação com o Rio de Janeiro (sobretudo Linguagem de Welles e Isto É Noel, ambos aparentemente hipnotizados pela belle époque carioca que termina com o fim da Praça Onze). Pedras preciosas não talhadas, a geografia e os gênios povoarão o pólo das positividades presentes nos filmes de Sganzerla. É a única possível fonte de apologia. Ao contrário, a terra natal (Irani) ou a terra eleita para habitar (A Cidade do Salvador) aparecem como a fonte da exploração ou dos desmandos, em todo caso de uma oficialidade vazia (que será articulada, em outros filmes, no poder dos censores nos filmes de Orson Welles, na cartolagem em Perigo Negro ou no carnaval institucionalizado da Sapucaí em Isto É Noel, em que "o samba" não percebe que seu ídolo está morrendo) que faz de tudo para atrapalhar a vida da autêntica liberdade da vida expressa na terra e nos melhores membros da raça, os artistas. Nesse momento, a sociedade racionalizada a superar é aqui equacionada e identificada com as máfias e as organizações corruptas. Se Plirtz sobreviveu, como Ângela Carne e Osso pode continuar existindo? Se o mundo é dos boçais, como atesta Mojica em O Abismo, como podem os visionários fazer nascer suas visões? Metáfora mais do que óbvia da própria carreira sabotada de cineasta de Sganzerla2, o que nos importa nisso é que a própria relação entre artista e mundo opera pela impossibilidade da "montagem", num sentido amplo, ou seja, pela impossibilidade de acomodação ou de associação. A disjunção não é apenas formal: ela está no cerne e media a relação do artista com o mundo através de sua obra, por dentro (fazendo a disjunção operar no próprio filme) e por fora (em seu consumo, ou seja, sua relação tortuosa com o público da Belair para cá).

Toda a estética da disjunção vai ser colocada em crise com Tudo É Brasil, um filme que naturalmente vai lidar com o controverso (afinal, é um filme sobre o naufrágio do projeto It's All True de Orson Welles no Rio de Janeiro em 1942) mas que é acima de tudo sobre um casamento bem-sucedido entre Welles e o Rio de Janeiro, estrelando Carmen Miranda, Dorival Caymmi, Ary Barroso e sobretudo João Gilberto. Temos aqui um raro caso de Rogério Sganzerla em chave lírica, tomando um plano que sobrevoa Copacabana lentamente e adicionando na banda sonora a canção "Adeus América" cantada por João Gilberto, que diz na letra "O samba mandou me chamar". O poeta da disjunção trata aqui de reunir signos distantes da maneira mais rica e bela: através das palavras de Haroldo Barbosa, Sganzerla faz João Gilberto chamar Orson Welles para o Brasil, não por uma estratégia americana da política da boa-vizinhança, mas por aquilo que é o mais popular e o mais nosso, intocado pela burocracia do poder: o samba. Curiosamente, é também um filme feito inteiramente na mesa de montagem, com nenhum plano filmado especialmente para o filme, com um table-top contínuo que prescreve movimentos laterais, zoom in, zoom out, aberturas e fechamentos de íris em fotografias, desenhos, stock-shots – isso quando não é tudo isso junto. Curioso que, com as imagens "dos outros" (entre aspas porque qualquer imagem apropriada por Sganzerla em seus filmes adquire uma ressonância tão própria que questionar procedência é quase inútil; daí o famoso imbroglio de ter ou não filmado na ilha de Wight, etc.), ele possa dar uma ligeira freada nos efeitos devastadores da disjunção para fazer o Rio respirar um pouquinho com Orson Welles filmando e João Gilberto cantando. Depois das férias, o barquinho naufraga, o carnaval termina, as forças do poder destróem o gênio e a disjunção mais uma vez toma o poder.

É ela que estará com plenos poderes em O Signo do Caos, espécie de radicalização de O Abismo, espécie de lado-B de Tudo É Brasil (porque foca nos censores e exclui o artista). No filme, não só o corte opera a disjunção como também agride, por sua gratuidade, por sua virulência. Vários blocos heterogêneos que dificilmente encontram sua ligação (ou não encontram absolutamente), vários personagens prisioneiros mais uma vez do plano, interpretando sempre a mesma cena, num banquete reiterativo saudando o caos. O caos, no filme, não é a desordem que faz com que os ignorantes censores queimem a obra de arte que desconhecem – ou que, conhecendo bem, temem e invejam –, mas a liberdade de associação das imagens do filme que nunca vemos (by Welles) e também a liberdade das imagens que aprisionam, essas sim filmadas pelo próprio Sganzerla. Preto-e-branco/cor ou muito granulado/pouco granulado, cada segmento do filme parece ser incongruente com o seguinte, retomando e radicalizando os planos e a montagem de O Abismo (cuja remontagem quase completa é também quase um outro O Signo do Caos) e fazendo uma espécie de ode final à descontinuidade como trama moderna por excelência do cinema. Em O Signo do Caos, os espaços não se conjugam, e mesmo os cortes que supõem um espaço homogêneo (cortes dentro da mesma cena, na mesma locação) têm seu raccord o mais saltado possível. Como se nem o espaço homogêno conjugasse consigo mesmo. Cada plano tende a ser uma seqüência por si só, como se estivesse dissociado da cena. As locações parecem não se misturar muito bem: ora a primeira seqüência em que o galpão não parece pertencer ao mesmo espaço do saguão que dá para o mar (na primeira, e logna, seqüência do filme), ora é a festinha à beira do deque que faz com que os personagens se isolem mesmo estando próximos.

Como O Abismo, como O Bandido da Luz Vermelha, como em quase todos os seus filmes, é apenas pelos diálogos galhardos, malandros, elegantes que Sganzerla cria laços de simpatia com seu espectador. Naturalmente, um possível artigo a ser escrito dirá sobre os dotes de frasista de Sganzerla, nos diálogos de seus filmes, nas entrevistas ou em seu extenso catálogo de artigos e escritos esparsos. Um artista que bebe da poesia urbana e marota de Noel Rosa e de outros artistas da belle époque carioca e de um polemismo bem nacional (que envolve, em certos aspectos, até a marotice da política ironizada já em O Bandido da Luz Vermelha, com seus bordões impagáveis e suas tiradas humorosamente boçais). Mas, no que diz respeito ao plano, aquilo que é comumente chamado de unidade mínima de significação, a relação que Rogério Sganzerla trava em sua obra, a forma de escrever cinema através da filmagem de planos e sua montagem, é quase sempre de intensificar a disjunção como elemento de modernidade cinematográfica, acreditar no poder da descontinuidade como um fator desestabilizante da relação cômoda entre filme e espectador, fazendo do filme um elemento dinâmico, selvagem, confrontador. Artista em eterna mudança que sempre foi, Sganzerla fez a descontinuidade significar muitas coisas através de sua carreira. Mas desde o momento inicial, a cada corte, brotava o germe desse artista que desde o começo quis fazer de seus planos e da montagem de seus planos a prova de mudança de estatuto do cinema, a chegada de uma nova idade – o cinema moderno – que não levaria mais o seu espectador pela mão, e sim lhe proporia uma experiência em que ele precisasse realmente se jogar para extrair alguma coisa da relação, e, assim, a partir da disjunção, restabelecer um elo essencial e fazer desaparecer a relação sujeito-objeto do espetáculo cinematográfico. Talvez seja isso "tirar o cinema da sala de brinquedos".

Ruy Gardnier

1. O projeto "Noção de cinema moderno", retomado várias vezes ao longo dos anos, com diferentes versões, e lançado de forma bastante diferente sob o título Por um cinema sem limite (Azougue, 2001). Entre os inúmeros capítulos deixados de fora, está "O herói fechado", reproduzido nesta mesma edição.

2. Uma relação da carreira de Sganzerla com seus personagens eleitos, seus "heróis", pode ser encontrada em "As mil mácaras de Dr. Rogério, cineasta" e, mais detidamente, na crítica de Perigo Negro por Daniel Caetano.