O
Autor e seu Filme:
Rogério Sganzerla jogava no ataque, fosse
em seus filmes ou em suas análises. Mas Sganzerla,
por atacante, também tinha a necessidade de se
defender, certo ou errado. Perigo Negro é
isso, - ou melhor, parece ser isso (já que vale
o que parece). Se encontramos aqui seus temas principais
(o gênio tolhido no Brasil-mundo de brilho mitológico
perdido em meio à mediocridade dos endinheirados,
que encobrem a beleza da verdadeira criatividade popular
ou pessoal), tudo isso se desenrola como
uma versão de sua própria história.
Num filme dedicado a Oswald, numa narrativa dedicada
a um jogador de futebol genial e fracassado, é
nesse espaço em que Sganzerla vai tornar mais
claro que fala de si (fugiria desta questão,
de certa forma, no seu Tudo É Brasil,
para retomá-la com mais força no Signo
do Caos, reencontrando aí todas as discussões
que lhe interessaram em seus filmes).
* * *
O
Personagem e o Mundo:
Perigo Negro foi um grande jogador. Nunca jogou
um futebol comum, e certamente esse foi um dos motivos
para não ter conhecido o sucesso financeiro e
o carinho das multidões. Perigo Negro foi um
gigantesco talento fracassado, mas ninguém que
viu o que fez há de negar seus grandes momentos,
suas jogadas brilhantes e inesquecíveis, seu
jeito de jogar único, ao mesmo tempo elegante
e torto. Seu futebol era objetivo, poderiam perguntar
alguns? Era sim, com certeza, sejam lá quais
fossem os tais objetivos. O que vale, no fim das contas,
é o espetáculo? A memória que fica
dos dribles? Ou os gols feitos?
Perigo Negro é aquele que poderia ter sido o
maior, se as coisas não tivessem dado errado.
Uma série de contusões, e toda essa sujeira
da cartolagem... bem, essa sempre foi a crença
de Perigo, mas ele não era tão santo.
Na hora do jogo, era gênio como ninguém,
mas fora dos gramados sabe-se bem que arrumou muita
confusão. Nunca foi a uma Copa, quanto mais vencer
uma. É difícil lidar com isso e com a
fama de ‘bichado'. Mas isso depende muito da
pessoa em questão. De Garrincha ninguém
ria na fase da decadência, Pelé teve que
conviver com polêmicas bobas nas épocas
das copas, Zico e depois Romário tiveram os problemas
que tiveram também em fases de copas – do Galinho
de Quintino, eu me lembro também de quando foi
chamado de ‘bichado' pela torcida tricolor no
Maracanã (1986?) - e o jogo terminou com uma
vitória do Mengo por quatro a um.
Enfim, esse não foi o caso de Perigo Negro –
ele nunca aceitou o hiato que teve na carreira após
seu início brilhante. E, com todas as dificuldades
que se tem no meio dessa máfia futebolística
(que é realmente terrível, ninguém
há de negar), Perigo Negro pareceu não
conseguir se recuperar da expectativa que todos, a começar
por ele próprio, tinham de si. Tornou-se figura
amargurada e recalcada pelo destino que ele mesmo escolheu
para si, jogador genial de um futebol que ficou perdido
no passado de um país que decai sem ter chegado
ao auge, como disse o outro. O futebol mudou, e Perigo
Negro, que já tinha dificuldade em lidar com
as regras e juízes mais, digamos, brandos do
passado não saberia lidar com esses juízes
‘sorteados' que infestam os campos do país.
Já não suportava a burrice da cartolagem
da época, como lidaria então com esse
falso ‘profissionalismo' que tentam nos
enganar que existe? Isso para não falarmos das
brigas que teve com todos aqueles comentaristas medíocres
das mesas redondas de domingo à noite. O que
diria ele hoje, quando a mediocridade dos comentaristas
é mais evidente que nunca – como pudemos lidar
com o gênio explosivo de Perigo Negro hoje, senão
com a vã exaltação ao passado de
um futuro perdido?
Mas vale a pena lembrar: quem olhou com atenção
viu sua genialidade nos dribles e jogadas das últimas
partidas que fez. Jogava como ninguém. Sabia
disso, e se orgulhava até o ponto em que cabe
o orgulho no figurino do recalque.
Que importa, no final das contas, essa pequena questão
das multidões? E quem se importa com o figurino
do fracasso que Perigo Negro vestiu? Quem viu as partidas
do Perigo Negro não esquece. Não ganhou
taças, não jogou tudo aquilo que queria,
brigou com a cartolagem, foi figura amargurada, mas
e daí? Seu jeito de jogar definiu o resultado
dos campeonatos, encantou quem assistiu, influenciou
alguns dos maiores craques atuais da região.
Quem não viu, que trate de ver – os filmes estão
aí pra isso.
* * *
O Filme:
Sim, as atuações dos atores são
admiráveis (mesmo que Helena Ignez não
tenha mais o físico do papel, ou que as cenas
de futebol jogado inexistam). Mas seus personagens deixam
tudo bem claro para quem quiser enxergar.
Não há como escapar do Perigo Negro
sem ver sua amargura. No filme em homenagem ao modernista
Oswald, o ultra-modernista Sgan reencontra o clássico.
O único jeito de se livrar da modernidade é
percebendo que ela já é clássica,
e Sganzerla quer ir adiante. É simples em sua
narrativa (aí incluindo montagem, é claro)
como nunca foi ou voltaria a ser.
Por outro lado, é também sua mais forte
tentativa de trazer um sentimento trágico à
sua dramaturgia do recalque.
Daniel
Caetano
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