PERIGO NEGRO
Brasil, 1991
O Autor e seu Filme:
Rogério Sganzerla jogava no ataque, fosse em seus filmes ou em suas análises. Mas Sganzerla, por atacante, também tinha a necessidade de se defender, certo ou errado. Perigo Negro é isso, - ou melhor, parece ser isso (já que vale o que parece). Se encontramos aqui seus temas principais (o gênio tolhido no Brasil-mundo de brilho mitológico perdido em meio à mediocridade dos endinheirados, que encobrem a beleza da verdadeira criatividade popular ou pessoal), tudo isso se desenrola como uma versão de sua própria história. Num filme dedicado a Oswald, numa narrativa dedicada a um jogador de futebol genial e fracassado, é nesse espaço em que Sganzerla vai tornar mais claro que fala de si (fugiria desta questão, de certa forma, no seu Tudo É Brasil, para retomá-la com mais força no Signo do Caos, reencontrando aí todas as discussões que lhe interessaram em seus filmes).

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O Personagem e o Mundo:
Perigo Negro foi um grande jogador. Nunca jogou um futebol comum, e certamente esse foi um dos motivos para não ter conhecido o sucesso financeiro e o carinho das multidões. Perigo Negro foi um gigantesco talento fracassado, mas ninguém que viu o que fez há de negar seus grandes momentos, suas jogadas brilhantes e inesquecíveis, seu jeito de jogar único, ao mesmo tempo elegante e torto. Seu futebol era objetivo, poderiam perguntar alguns? Era sim, com certeza, sejam lá quais fossem os tais objetivos. O que vale, no fim das contas, é o espetáculo? A memória que fica dos dribles? Ou os gols feitos?
Perigo Negro é aquele que poderia ter sido o maior, se as coisas não tivessem dado errado. Uma série de contusões, e toda essa sujeira da cartolagem... bem, essa sempre foi a crença de Perigo, mas ele não era tão santo. Na hora do jogo, era gênio como ninguém, mas fora dos gramados sabe-se bem que arrumou muita confusão. Nunca foi a uma Copa, quanto mais vencer uma. É difícil lidar com isso e com a fama de ‘bichado'. Mas isso depende muito da pessoa em questão. De Garrincha ninguém ria na fase da decadência, Pelé teve que conviver com polêmicas bobas nas épocas das copas, Zico e depois Romário tiveram os problemas que tiveram também em fases de copas – do Galinho de Quintino, eu me lembro também de quando foi chamado de ‘bichado' pela torcida tricolor no Maracanã (1986?) - e o jogo terminou com uma vitória do Mengo por quatro a um.
Enfim, esse não foi o caso de Perigo Negro – ele nunca aceitou o hiato que teve na carreira após seu início brilhante. E, com todas as dificuldades que se tem no meio dessa máfia futebolística (que é realmente terrível, ninguém há de negar), Perigo Negro pareceu não conseguir se recuperar da expectativa que todos, a começar por ele próprio, tinham de si. Tornou-se figura amargurada e recalcada pelo destino que ele mesmo escolheu para si, jogador genial de um futebol que ficou perdido no passado de um país que decai sem ter chegado ao auge, como disse o outro. O futebol mudou, e Perigo Negro, que já tinha dificuldade em lidar com as regras e juízes mais, digamos, brandos do passado não saberia lidar com esses juízes ‘sorteados' que infestam os campos do país. Já não suportava a burrice da cartolagem da época, como lidaria então com esse falso ‘profissionalismo' que tentam nos enganar que existe? Isso para não falarmos das brigas que teve com todos aqueles comentaristas medíocres das mesas redondas de domingo à noite. O que diria ele hoje, quando a mediocridade dos comentaristas é mais evidente que nunca – como pudemos lidar com o gênio explosivo de Perigo Negro hoje, senão com a vã exaltação ao passado de um futuro perdido?
Mas vale a pena lembrar: quem olhou com atenção viu sua genialidade nos dribles e jogadas das últimas partidas que fez. Jogava como ninguém. Sabia disso, e se orgulhava até o ponto em que cabe o orgulho no figurino do recalque.
Que importa, no final das contas, essa pequena questão das multidões? E quem se importa com o figurino do fracasso que Perigo Negro vestiu? Quem viu as partidas do Perigo Negro não esquece. Não ganhou taças, não jogou tudo aquilo que queria, brigou com a cartolagem, foi figura amargurada, mas e daí? Seu jeito de jogar definiu o resultado dos campeonatos, encantou quem assistiu, influenciou alguns dos maiores craques atuais da região. Quem não viu, que trate de ver – os filmes estão aí pra isso.

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O Filme:
Sim, as atuações dos atores são admiráveis (mesmo que Helena Ignez não tenha mais o físico do papel, ou que as cenas de futebol jogado inexistam). Mas seus personagens deixam tudo bem claro para quem quiser enxergar.
Não há como escapar do Perigo Negro sem ver sua amargura. No filme em homenagem ao modernista Oswald, o ultra-modernista Sgan reencontra o clássico. O único jeito de se livrar da modernidade é percebendo que ela já é clássica, e Sganzerla quer ir adiante. É simples em sua narrativa (aí incluindo montagem, é claro) como nunca foi ou voltaria a ser.
Por outro lado, é também sua mais forte tentativa de trazer um sentimento trágico à sua dramaturgia do recalque.


Daniel Caetano