DAVID CRONENBERG
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Cronenberg nas filmagens de Crash

Desde o início de sua carreira até hoje, David Cronenberg só filmou uma única coisa: as transformações do pathos. Seu interesse parece estar unicamente voltado para as mudanças que o corpo sofre quando submetido a determinados procedimentos, mentais ou físicos. O corpo como terreno de experimentações, como submetido aos efeitos do tempo, dos vícios e das pulsões. Mais que em qualquer outro cineasta contemporâneo, Cronenberg reúne definitivamente o que não era para ser separado: corpo e alma são um único ser, entregue sem piedade à mudança imposta pela  duração.

Fazer um corpo no cinema, tarefa difícil. Como na literatura, o corpo humano só pode existir no cinema se torcido, deslocado, situado no tempo e no devir. Um corpo, para aparecer, deve ser colocado em relação com aquilo que não é ele, para só então poder mostrar sua real existência, já devidamente modificado. Nos filmes de Cronenberg, um corpo sempre está submetido a um fora que interfere nele, que faz o papel do tempo modificador, que transforma finalmente o corpo em matéria cinematográfica, num bocado de carne que sofre.

Esse fora é o lugar do vício. O corpo se apega as coisas, e se apega sistematicamente. É próprio dele submeter-se cegamente às injunções da realidade externa, do "mundo das coisas". Aquilo que está fora do corpo molda o corpo, redefine-o a partir das experiências que um tem com outro. Jamais uma operação de solipsismo, onde um espírito, em sua interioridade, agiria sobre um mundo passivo; jamais também um mundo predestinado, onde o corpo seria joguete, simples atualização de uma situação já dada. Corpo e vício operam uma ação entre-dois. O vício é sempre mais forte, mas simplesmente porque o homem é mortal.

Não há propriamente pessimismo nos filmes de Cronenberg. O que há são as regras de um programa: o corpo está imerso num mundo; logo, está sujeito às variações; essas variações incitam o corpo a ultrapassar os seus limites, rompê-los, levá-los até seu ponto máximo para depois finalmente padecer. O padecer jamais é índice de um final infeliz, mas simplesmente a etapa final de um processo, de um programa de experimentação que o corpo desenvolve com aquilo que lhe é exterior.

Daí surgir uma coisa como um personagem cronenberguiano — vítima das situações, mas eternamente curioso para saber qual será o próximo passo a que o pathos vai conduzi-lo. Os personagens de Cronenberg têm todos uma placidez no olhar, uma curiosidade associada sempre a uma espera pela próxima etapa. Jeremy Irons, James Woods e James Spader talvez sejam os melhores exemplos do trabalho de Cronenberg: atores que têm um modo de interpretar muito diverso, mas que no mundo cronenberguiano estão muito parecidos, com a mesma frieza, contenção de gestos e o olhar afundado, como se estivessem olhando nunca para a frente, mas para trás ou para além do horizonte.

A obra de Cronenberg num momento muda de tom. A partir de Gêmeos — Mórbida Semelhança, todo o horror do vício e do pathos, as principais transformações que ocorrem não mais se dão na tela, à frente do espectador. Depois de Gêmeos, mesmo que haja muita transformação física e figuras esquisitas (os mugwumps de Naked Lunch, por exemplo), é antes uma inquietação mental que fustiga os personagens e faz seguir o relato. Nessa nova fase, o gosto pelo grotesco, pela gosma, pela deformação corporal é submetida à intensidade intelectual ou, antes, caminha de mãos dadas com ela. Com Gêmeos, a obra de Cronenberg atinge a maturidade e todas as suas características dilapidadas. O estilo se purifica; a encenação e as propostas dão um passo para o classicismo enquanto o sentido dos filmes passa a apresentar significações mais intensivas, como um literato que, para subverter a literatura, prefere utilizar a escrita mais límpida e direta.

Um movimento de câmara resume bem o trabalho de David Cronenberg: um lento traveling lateral diante de uma batida de carro, em Crash. Toda a placidez misturada com beleza que vemos nos personagens aí aparece com a câmara, olhando inutilmente para o ocorrido, movimentando-se sem pressa e deixando-se nutrir pelo que está em volta. O corpo como laboratório, o desejo como único juiz, o tempo como sentença: poucas vezes o cinema pôde ver autor tão libertário como Cronenberg. Cinema e vida como experimentação e mudança (ou mutações): poucas vezes tão profundo também...

Ruy Gardnier

1968    Stereo
1970    Crimes of the Future
1975    Shivers (Calafrios)
1977    Rabid (Enraivecida na Fúria do Sexo)
1979    The Brood (Os Filhos do Medo)
1979    The Fast Company
1981    Scanners (Scanners – Sua Mente Pode Destruir)
1982    Videodrome (Videodrome – A Síndrome do Vídeo)
1983    The Dead Zone (A Hora da Zona Morta)
1986    The Fly (A Mosca)
1988    Dead Ringers (Gêmeos – Mórbida Semelhança)
1991    The Naked Lunch (Mistérios e Paixões)
1993    M. Butterfly (M. Butterfly)
1996    Crash (Crash – Estranhos Prazeres)
1999    eXistenZ