Crash Estranhos Prazeres (Crash),
de David Cronenberg (EUA, 1996)
Elias Koteas em Crash
Ruy GardnierCrash foi um filme muito pouco visto, mas principalmente muito mal visto. Tudo que já se falou dele não resvala na mediocridade, antes chafurda nela. Falou-se que era um filme publicitário, que era soft-porn para pseudodepravados ou tentativa de chocar donas de casa do meio-oeste americano. É claro que, sob esse pressuposto, Crash não tem nada a acrescentar a quem assim o vê. Mas agora é hora de parar de tomar as nossas primeiras impressões, tão costumeiramente errôneas, e observarmos o que é apresentado na tela.
O primeiro diálogo se repete, da mesma forma, no final. James Spader pergunta à esposa: Você conseguiu? Ao que ela responde que não, e ele responde: Quem sabe da próxima vez. Da primeira vez, a cena nos deixa claro que o assunto é um orgasmo; da segunda vez, esse assunto é tangenciado, mas o que realmente faz questão no momento é a morte. Longe de fazer aí qualquer aproximação psicanalítica entre sexo e pulsão de morte, ou o orgasmo como "petit-mort", devemos nos aproximar mais do universo de desejos de David Cronenberg para percebermos que, na verdade, a morte é um tema recorrente em seus filmes e o orgasmo só está associado com a morte porque o tema do filme é o desenfreio sexual.
Se observarmos com atenção, todos os filmes de Cronenberg utilizam uma oposição simples, Amor X Morte ou Amor X Vício ou ainda Amor X Tempo. Obviamente, tempo, vício e morte apresentam uma rede semântica muito aproximada, desenvolvida à exaustão para quem quiser ver seus filmes continuamente. A oposição a eles, como já dissemos, é o amor. Cronenberg aproveita o clichê do grande cinema ("nos filmes tem sempre que tem algum enlaçamento amoroso") para transformar esse clichê numa assinatura grande manobra de todos os grandes autores que trabalharam o gênero, de Hitchcock e Lang a Carpenter. Há sempre um personagem que representa o contraponto ao vício e à morte. Em A Mosca, provavelmente seu filme mais apaixonado, a vítima do vício pede para morrer para que não possa machucar sua amada. Em Rabid, um quase-suicídio é compensado pela presença (mesmo que telefônica) da pessoa amada.
Mas em Crash algo é aprofundado. O tema de Cronenberg em Crash, como em Videodrome, é o sexo e os seus fetiches. O sexo, entretanto, nunca vem em um, mas em dois. Por isso são de longe seus filmes mais complexos, provavelmente as duas obras-primas. Os casais representados por James Spader e Deborah Unger num, e James Woods e Debbie Harry noutro, são movidos por algo mais que o amor. Ou melhor, misturam ao amor a procura mútua por alguma coisa que só pode ser encontrada sozinha, ou que definitivamente não pode ser encontrada.
Resulta que Crash é um filme frio, metálico como o fetiche pelos carros que os personagens principais desenvolvem (o carro tem outra função nom filme, mais aproximada à do romance de Ballard, a de isolar os indivíduos, de substituir o calor humano pela frieza da máquina, mas se enveredarmos por esse lado não paramos...). O sexo jamais é envolvente ou emocionante. Se há algum calor, é apenas aquele white heat, que causa, entretanto, uma sofreguidão maior que o simples frio. O tema desenvolvido por Howard Shore uma guitarra tocando notas metálicas dá o tom da maioria das cenas. Os parceiros sexuais jamais se olham nos olhos na hora do coito, o sexo é filmado em Crash como uma pavorosa síndrome de abstinência. Mas não há horror no filme: os personagens são filmados na maior ternura, na maior identificação possível às figuras que vemos na tela. O fetiche que os personagens têm é o mesmo fetiche que o espectador que vê o filme tem pela tela e pelo que está diante dela. O personagem não é um outro, um não-eu, e sim um outro-eu, um alter-ego. É uma outra possibilidade do eu que se aventura pelos caminhos do vício. À medida que os personagens enveredam pelos programas do vício, nós vamos juntos com eles. Não podemos nos negar de antemão, o fluxo estaria rompido. Mas uma vez que nos deixamos levar, Crash nos envolve e nos destrói: destrói porque poucos filmes até hoje colocam o ser humano como tão pouco, como tão cindidos e tão incapazes de controlarem seu destino.
Há, porém, um lado amável no filme: é o amor que se revela nos momentos em que Spader e Unger estão em alguma intimidade. Nesse momento eles podem olhar um para o outro e o tema tocado por Shore é diferente, cordas que tocam finalmente um tema com calor humano. O amor é a casa do homem, é o único lugar em que ele está seguro e ileso, o lugar onde a solidariedade é possível, onde o contato é possível. Crash pode ser encarado como um filme sobre a incomunicabilidade (e já foi feito paralelo entre ele e A Noite, de Antonioni). Mas Cronenberg de alguma forma inverte a equação da incomunicabilidade: seus heróis não são burgueses e a infelicidade não é inexorável. Seus personagens são antes heróis-limite, figuras da experimentação, e só tombam por um excesso de mundo, um excesso de linguagem, um excesso de experiências. Nos filmes de Cronenberg não há tédio, não há ausência; há, sim, muito mundo, muito sentido.