Gêmeos – Mórbida Semelhança (Dead Ringers),
de David Cronenberg (EUA, 1988)

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Dois Jeremy Irons em Gêmeos

Paridade

Um estranho equilíbrio estava estabelecido entre os irmãos Mantle. Um pacto feito a sua revelia, dentro do berço amniótico onde foram gestados (berço esse que será mais tarde o terreno de suas grandes realizações profissionais).

São gêmeos. E essa face suave da exceção genética é usada por Cronemberg para representar aqueles que, com toda propriedade, se tornam especialistas do excepcional, da terceira via, enfim, desbravadores de territórios não mapeados pela Doxa (dentre estes, especificamente um: essa gruta misteriosa e atávica de onde todos surgimos e que, apesar de muito "tateada" - que belo eufemismo para as intervenções cirúrgicas! - ainda encerra segredos: o útero).
O precoce interesse de Beverly e Elliot pelos assuntos da carne será o fio de Ariadne que os conduzirá de um brilhante (e por isso mesmo conflitante com o cânone acadêmico) desempenho universitário à uma laureada carreira de ginecologistas especializados em infertilidade feminina. Nela, o primeiro (pesquisador, inventor, cauteloso, tímido) e o segundo (negociante, menos estudioso, irreverente, sedutor) se complementam ponto a ponto (Bev desenvolvendo sofisticadas técnicas e instrumentos cirúrgicos, Elly cuidando dos assuntos administrativos e comerciais).

Mas o germe de sua dissociação já estava lá, no perverso jogo narcísico orquestrado por Elly, que compartilhava com Bev as clientes que seduzia.

Dissociação

Nessa troca perversa, a sólida distinção que os perfilava e distribuia em funções complementares se rarefazia perigosamente, por força de perigosos jogos de espelho, onde um procurava imitar pormenorizadamente as características do outro. Magistral o desempenho de Jeremy Irons, que interpreta não dois, mas quatro papéis distintos e meticulosamente cauculados (Bev, Elly, Elly/Bev, Bev/Elly), gerenciando os maneirismos de cada um com precisão formidável!

Para dar início ao drama que fará ruir a carreira de nossos quase-heróis, um corte preciso, num CLARO NÍVEL: Beverly se apaixona por uma cliente sua, atriz, que possui útero trifurcado. Ela será o pivô do processo de dissociação no qual ele irá procurar, ao invés de se fazer passar por Elliot (prática perversa e infantilizante), desenvolver a partir de si mesmo e em si mesmo os diferendos que até então davam contorno a sua identidade. Tão capital quanto a paixão que Bev nutre pela atriz, será esse esforço de dissociação, essa busca de "inteireza" e não-complementaridade, na qual sua sensualidade se desenvolveria com fisionomia própria, ao invés de permanecer um arremedo do donjuanismo do irmão.

Nas cópulas com Claire (perversas, criativas, afirmadoras) se realiza a descoberta de um mundo sensual até então desconhecido para ele. Mas ele não soube gerenciá-las (sobretudo aquelas feitas com drogas - butazamina em destaque - especialmente prescritas por Elly).

Crise

E aqui entramos naquele que é plenamente um dos eixos conteudísticos da obra de Cronemberg.

Porque não seria meramente o caso de apontar o uso de drogas entre médicos, ou qualquer outra bobagem "pedagógica" inferível (que funcionasse como assombração moralizante) sobre a narrativa.
Trata-se mais uma vez de observar os efeitos que uma tal empresa (esse esforço dissociativo de Bev) realizam sobre um corpo. A beleza desse corte. O enrugamento de uma identidade e a floração de outra (notem que Beverly sobrevive no final!).

Há também, implícita nas viagens lisérgicas de Bev, uma lúcida análise sobre as especificidades e conexões do mundo cientifico e do mundo artístico (a "colaboração" dele com o escultor Anders Wolleck, criando "instrumentos" cirúrgicos para mulheres mutantes é emblemática: repare o barroquismo das peças por ele desenhadas).

Cronenberg nos mostra que sua noção de limites "naturais" (as margens que perfazem imanências) não se confunde de forma alguma com as escleroses da Doxa (o mito sempre limitador, sempre reacionário, de uma Natureza "morta", reificada) justo porque nasce de uma consequente e experimentada conversação com a Arte e seus programas de expansão da sensibilidade.

Por isso, mesmo quando afirma claramente as margens que separam um território (o da ciência) do outro (o da arte), o faz com a lucidez necessária, com a consciência exata daquilo que de fato as reune.
Sabe diferir o jogo logopaico do esforço epistêmico e conhece os momentos em que o exame dos corpos os requisita. É então, no derradeiro esforço de realinhar sua parceiria com Bev, que Elly dá os passos que faltavam pra que a dissociação se completasse.

Restará ainda um Mantle. Completo ? Atualizado..

Marlos Salustiano