Videodrome — A Síndrome do Vídeo (Videodrome),
de David Cronenberg (EUA, 1982)

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James Woods é engolido pela tela em Videodrome

Videodrome é o filme mais rebuscado, mais cáustico e excessivo de Cronenberg. O enredo rocambulesco e todas as implicações que o filme traz fazem de Videodrome a obra-prima de juventude de seu autor. James Woods é o diretor de um canal de filmes pornôs, a Civic TV, e dá de encontro com um tipo de filme em que o que se vê na tela (estupros, torturas, agressões) não é encenação, tudo realmente acontece (o que hoje é caracterizado como snuff movie, mas na época não tinha nome). Como que hipnotizado por essas imagens, Max Renn vai ao encontro de Nikki Brand, uma famosa apresentadora de rádio para saber mais sobre elas. Os dois acabam desenvolvendo uma relação de amor e de fascinação por esses vídeos, que vão acabar levando a personagem Nikki a desaparecer. Renn vai então à procura do Dr. Brian O'Blivion (oblivion significa esquecimento), um profeta da televisão que prega que a emissão de raios catódicos leva o homem a um estágio maior de evolução.

Temos um simples quadro dos elementos que se tornariam tão caros a Cronenberg: uma evolução que acaba se tornando em regressão (A Mosca, Rabid, Scanners), uma obsessão logo transformada em vício (Naked Lunch, Crash, M.Butterfly) a as mutações do corpo causadas pelos videodromos, que na verdade revelam ser apenas janelas mentais para emissões imperceptíveis que causam um tumor no cérebro cujo primeiro sintoma é causar alucinações em quem é atingido. Por trás da filosofia moralista que envolve a disseminação do videodromo — que é realmente a única coisa falha no filme —, podemos ver, entretanto, um lado negro da América que surgia: pastores televisivos, nova moralidade das ligas de pais contra a pornografia e os termos de baixo calão, etc.

Mas o que faz a grandeza de Cronenberg é que, pela única vez em sua obra, nos é dada a visão daquele que sofre com o vício. O filme é todo construído a partir do ponto de vista da alucinação, não do que acontece realmente. Daí vermos esguichos de gosma saindo da barriga de James Woods, um vídeo-cassete que é ora inserido ora retirado de uma vulva que nasce em sua barriga, uma fita de vídeo que se transforma em revólver, uma televisão que engole o espectador (como na foto acima). Não sabemos o que realmente acontece e o que é imaginação: tudo para o espectador é dado como se tudo que está na tela realmente estivesse acontecendo (e realmente está, do ponto de vista do personagem).

Videodrome é também uma das primeiras tentativas de dar conta dos efeitos da televisão e da nova cultura do vídeo. O Dr. O'Blivion, por exemplo, é uma pura existência midiática, uma vez que ele só tem vida nas fitas de vídeo que restaram de sua obra. A imagem na telinha é um jogo entre dois grupos extremistas, um que deseja remoralizar o mundo matando todos os depravados e outro que quer transformar a carne do homem em uma nova carne. O lema desse grupo é "Long live the new flesh/Viva a nova carne", e as campanhas de educação à nova carne e aos raios catódicos é realizada em um centro cívico de recuperação de mendigos e de emissões de raios catódicos. Nesse clima brutal de alienação pelo vídeo, a resposta de Cronenberg é a mais brutal já feita em seu cinema.

A última seqüência é uma conversa de Nikki, na televisão, já dada como morta, conversando com Max. Ela explica a ele todas as transformações pelas quais ele passou e fala que vai indicar qual é o próximo caminho. Depois de um breve contracampo para o rosto de Max, vemos a câmara se aproximando aos poucos da tevê, e Max vê a si próprio na telinha, com um revólver na mão, que ele eleva até a têmpora, para por fim atirar. Mais um contracampo mostra Max distanciado, com a mesma aproximação da câmara momentos antes. Tal qual na televisão, ele alça o olhar para frente, fixo no espectador, coloca o revólver na têmpora e repete a operação. Em tempos em que a ciência social começou a se aproximar da televisão como instauradora da realidade (Baudrillard, por exemplo), o cinema deu a sua contribuição mais espetacular e apocalíptica à questão, num claro artifício pavloviano de ação-reflexa. Se a primeira metade do século viu a reprodução em massa e a segunda metade viu a repetição em massa (como Godard já mostrou no curta O Novo Mundo), Videodrome aparece como um filme de exceção, que mostra o presente hiperbolizado para que nós possamos nos reconhecer melhor e para que possamos medir nossos atos mais sensivelmente.

Filme-delírio como poucos realizados até hoje, Videodrome é assustador como poucos, certamente o mais destruidor filme de Cronenberg, sobretudo porque o próprio tema exige grande parte dessa destruição. A desumanização é aterrorizante, as relações se dão todas pelo vídeo. O mundo daqui em diante será oblivion. Videodrome tem irmãos, como Dr. M, de Chabrol, ou Eles Vivem, de Carpenter (esses dois últimos de 89). Mas nenhum soube ser tão pessimista, tão certo de um no future assim. O indivíduo está jogado num vazio de alucinações e nem tem como voltar atrás. A única solução é se matar por um slogan. A cultura do vídeo é fundamentalista, e não há melhor saída para o fundamentalismo que a autofagia.

Ruy Gardnier