Viajo
Porque Preciso, Volto Porque Te Amo,
atualmente em cartaz, reacendeu uma questão à
qual eu
havia prometido retornar no final de uma pequena crônica
publicada na última edição:
“É
nítida hoje a diferença entre a imagem
como potência e imposição da sociedade
do
simulacro e o plano
como um espaço de resistência e
ressonância do
pensamento dialético”.
O
que a frase tentava dizer é que os últimos anos
teriam
tornado mais clara a separação entre duas
tendências
opostas. De um lado, o cinema – e mais especificamente o
núcleo
duro de sua linguagem, o plano – ainda se apresentaria como o
lugar de permanência de todos os questionamentos abafados
pelo
triunfo do liberalismo e do culto ao individual: o
real, o ser, o imaginário, o Outro, a História, o homem em sua
relação com o que o precede e o excede e
confrontado a
tudo aquilo que ele só conhece sob a forma de enigma
–
esse enigma ao qual o cinema oferece um material propício
à
sua inscrição/aparição.
Do
outro lado, os “novos regimes de imagens”
emoldurariam o não-território do
indivíduo em
seu desprendimento em relação a qualquer sentido
coletivo, comunitário, histórico,
político, erótico (tal
sentido às vezes é até colocado, mas
num nível
abstrato e intangível, a política, o sexo ou a
História
podendo nada mais ser que uma falsa capa de pretensão
ou sensualidade para as formas plásticas). A mise
en scène
e o plano se trocariam aqui pela rarefação do
mundo –
e do cinema – numa estética de livre
circulação
de imagens. Enquanto o plano incita a relação com
os
outros planos, a imagem é um elétron solto.
A
mise
en scène
implica uma ação de deslocamento do sujeito, de
interpelação do outro, de conflito entre
materiais
heterogêneos, de transporte do olhar que carrega consigo o
corpo, este eixo por onde se articula a primeira questão de
ordem política no cinema: a partilha sensível do
espaço. Na livre circulação de
imagens, o
olhar já não pede um corpo, pois se toma por seu
próprio meio de transporte cinemático. As imagens
que
flutuam numa atmosfera sem gravidade permitem um desprendimento, um
estado incorpóreo, uma dissolução da
distância
(que nada mais é que a matéria com que se fabrica
o
ponto de vista); o mundo é recriado numa cenografia que
não
é nem um teatro nem uma paisagem real, mas antes um
espaço
museológico onde se passeia com olhos deslumbrados.
O
filme de Karim Aïnouz e Marcelo Gomes, evidentemente,
está
do lado da circulação/flutuação
de imagens,
instaurando um lugar onde tudo começa e termina no
“eu
lírico” de seu narrador, em sua
coleção de
objetos afetivos. Ele se isola em sua sensibilidade individual,
porquanto a menor abertura ao outro pode despertar a
consciência
e quebrar o efeito de doce
flutuação
pretendido pelo filme. O mundo exterior, a partir do momento em que
contém a promessa da heterogeneidade, da alteridade, do
acaso,
só pode ser vivido como sensação
distante, como
impressão fugidia.
Viajo
Porque Preciso
remete a um punhado de anti-road
movies
em que a paisagem é existencial e a errância
é
tencionada/motivada por algo ou alguém que não
está
nas imagens. O mais forte dos exemplos recentes é
The Brown Bunny: a
viagem de Vincent Gallo pelas estradas dos Estados Unidos é
também um desfile de paisagens interiores,
paisagens-afecção,
uma jornada que se
espraia sobre o deserto criado pela ausência de uma mulher. A
diferença é que Gallo vai fundo nos
desdobramentos de
seu movimento cíclico de estagnação no
presente.
Ele desliza sobre a superfície morta de uma paisagem mineral
e
desértica (vales rochosos, planícies secas);
flerta e
seduz várias mulheres que encontra pelo caminho, mas sempre
corta o contato que havia começado, não se
permitindo
uma relação carnal com nenhuma delas. Na
ausência
de Eros, um instinto de morte prevalece sobre o personagem e o impele
a se confundir à matéria inanimada das paisagens
que
percorre, algo cuja mais perfeita tradução se
dá
naquela famosa cena em que ele pilota sua moto num deserto de solo
branco, salino, se distanciando da câmera até se
desmanchar no horizonte, virar miragem, dissolver-se na poeira
inorgânica. Por um lado, está desconectado de
tudo, da
sociedade, das pessoas. Por outro, está intensa e
imediatamente requisitado por experiências concretas (dentre
as
quais a moto-velocidade). Sua desconexão do mundo
é de
uma natureza tal que o põe em relação
muito
próxima e muito essencial com alguma outra coisa (com o
fantasma da mulher amada, com a sensação de
velocidade,
com a pulsão de morte). Mais tarde, Gallo
faz aflorar no filme a cesura ficcional que o gerou: o evento
traumático de uma morte que é reencenada
duplamente,
como flash-back
(a noite em que tudo ocorreu é mostrada em fragmentos
inconclusos) e como encontro (ele enfim trava uma
relação
sexual, mas com um fantasma), ambos perturbadores. Há,
portanto, uma tensão, um drama, uma
catarse,
uma agitação de forças, um inchamento
do
universo e seu posterior retraimento – um motivo para
vermos o filme além do puro gozo ou desconforto de
sensações
(que são também essenciais, por serem a parte
irredutível da experiência: um estado de tempo
meramente
preenchido).
Outro
filme que vem à mente, menos como semelhança do
que
como antítese de Viajo
Porque Preciso,
é Le
Camion
(1977), no qual Marguerite Duras já via despontar no
horizonte
um mundo – e portanto um cinema – sem Outro, sem
fora,
sem embate entre posições antagônicas.
Não
o seu cinema, que fuxicaria o Outro mesmo lá onde ele
insistisse em se esconder, mas um cinema que viria depois, vinte anos
depois, trinta anos depois – um cinema cuja
matéria não
é o mundo, mas uma certa sensibilidade em
relação
ao mundo, a saber a sensibilidade dos diretores-autores.
Le
Camion
reduzia o cinema a um teatro de câmara intramental (fazendo
eco
a outras ficções claustrofóbicas dos
anos
setenta, outras estéticas de fechamento do quadro e do
cenário
– Akerman, Syberberg, Godard), transformava-o em
espaço
de ressonância do pensamento – do pensamento dialético.
Duras e Gérard Depardieu apareciam num cômodo
escuro que
se tornava lugar de projeção, como uma pequena
sala de
cinema em que, ao invés de uma tela, tivéssemos
um
corpo se oferecendo como suporte para a imagem. Depardieu recebe a
história que Duras projeta. As únicas imagens
exteriores ao cômodo escuro são grandes planos
gerais
que mostram o caminhão cruzando a estrada e, principalmente,
planos feitos de dentro do caminhão em movimento que
registram
melancólicas paisagens de beira de estrada, terrenos vagos
de
uma região da periferia de Paris, lugares abandonados ao
inverno. Na voz de Duras, um discurso se constrói segundo
uma
constatação bastante precisa: do “toda
revolução
é possível”, ela passa ao
“não se
diz mais nada, não se vê mais nada, nada:
revolução,
luta de classes, ditadura do proletariado, nada”. Le
Camion
é o relato de quem assiste ao luto do pensamento marxista no
mundo. Mas Duras não se conforma e viaja ao fundo da
consciência, pois é lá que as
diferenças,
as rupturas, os conflitos do ego com o mundo exterior persistem,
provam-se inapagáveis, mesmo – e sobretudo
–
aqueles que a vida social habilmente reprime (Daney:
“lá
onde algo resiste, é preciso filmar”).
Se
Le
Camion
era um filme sobre a “perda
política”1, Viajo
Porque Preciso
é o resultado do agravamento dessa perda nas duas
últimas
décadas, um exemplo entre mil dos muitos filmes (e
vídeos,
e performances, e instalações...) que hoje
mobilizam um
conjunto de imagens com muito verniz artístico, mas pouca
relação concreta com coisas realmente
interessantes.
São obras que marcam uma certa indiferença do
tempo à
passagem dos fatos – indiferença, logo,
à idéia
de mudança, de transformação. Obras
que pensam
estar na vanguarda, quando na verdade um thriller barato do Larry
Cohen nos anos oitenta feito com roteiro ruim e atores desconhecidos
estava muito mais próximo de dar prosseguimento aos
experimentos de Warhol do que um filme, vídeo experimental,
cine-diário,
vídeo-instalação ou seja lá
o que for que se locuplete com imagens de faróis de motos na
estrada, formigas andando no quintal da casa da vovó, nuvens
refletidas na poça d'água, bolas de
sabão
gravadas com uma câmera de celular etc.
O crepúsculo
do pensamento dialético, acompanhado do retorno das
posturas
contemplativas que o marxismo interditava, abriu caminho para a voga
do olhar neoimpressionista não-significante, e esta abriu
caminho para um cinema “inerte”. Inerte por dois
motivos:
primeiro, pela frouxidão da técnica (in-ars =
sem arte, sem poder de realização); segundo, pelo estímulo a uma
passividade do olhar, um torpor sensível que o liberta da
cognição e, no limite, torna-o
pré-consciente.
Em outras palavras, um cinema muito aquém das reais
possibilidades de seu dispositivo.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
1. “Para muita gente a verdadeira
perda do sentido
político consiste em se juntar a uma
formação
partidária, submeter-se a sua regra, sua lei. Para muita
gente
também quando se fala de apolitismo, fala-se antes de tudo
de
uma perda ou de uma ausência ideológica. Eu
não
sei o que vocês pensam quanto a isso. Para mim a perda
política
é antes de tudo a perda de si, a perda de sua
cólera
assim como a de sua doçura, a perda de seu ódio,
de sua
faculdade de odiar assim como a de sua faculdade de amar, a perda de
sua imprudência assim como a de sua
moderação, a
perda de um excesso assim como a perda de uma medida, a perda da
loucura, de sua ingenuidade, a perda de sua coragem como a de sua
covardia, a de seu terror diante de tudo assim como a de sua
confiança, a perda de suas lágrimas assim como a
de seu
prazer. É isso o que eu penso.” (Marguerite Duras,
"La
perte politique", Cahiers du Cinéma nº 312-313,
junho de 1980).
Maio de 2010
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