PEQUENA CRÔNICA DE 2009 ATRAVÉS DE DOIS
PLANOS-SEQÜÊNCIA

Dia desses, estava num restaurante em que As Panteras Detonando, de McG, era exibido numa enorme TV de plasma. Na mesa ao lado, uma menina perguntou à outra: “mas isso é o trailer ou é o filme?”. A dúvida é de todo pertinente. O filme é mesmo sem pé nem cabeça, faz cortes aleatórios e improváveis, funciona na lógica da pura iconicidade lúdica. Poderia ser o trailer, poderia ser o filme, tanto faz. Entre o filme e sua provável publicidade, pouca diferença resta. Falar de decupagem ou de mise en scène a respeito de As Panteras Detonando seria inapropriado. O cinema, para McG, não é mais um instrumento dialético de reflexão sobre o mundo, e sim uma compilação “inconsciente” de idéias, forças, potências, mitos, histórias, ícones etc. Ele mergulha o cinema no caldo indiferenciado de uma cultura visual esquizóide e múltipla. Qualquer coisa pode se combinar com qualquer coisa. O plano não existe (ao menos o plano como “a parte de um todo”, ou “a menor unidade de significação no cinema”). Só existem “imagens”.

Embora O Exterminador do Futuro – A Salvação seja um filme bem mais “sério” que As Panteras Detonando, McG não deixa que a convencionalidade do projeto anule por inteiro suas extravagâncias. Todos devem lembrar, por exemplo, de uma cena em que Christian Bale entra num helicóptero, decola, é atingido, o helicóptero cai de cabeça para baixo, Bale sai, depara-se com um robô exterminador. O pano de fundo é um cenário apocalíptico onde as sucatas do mundo material se acham abandonadas e espalhadas pelo deserto do virtual. A câmera segue os movimentos de Bale, decola junto com ele, entra na cabine do helicóptero, acompanha sua queda, sai, tudo num único plano.

Ou trata-se de um falso plano-seqüência e há uma trucagem lá no meio mascarando as descontinuidades? Não dá para saber, e na verdade pouco importa, pois McG não trabalha propriamente com “planos”. Em seus filmes, é um tanto inútil ficarmos preocupados com onde começa e onde acaba um plano, qual sua duração, sua extensão. A filmagem em continuidade, que constituía para Bazin um dos aspectos essenciais do cinema, se vê fendida aqui pelas transformações que – por meio principalmente do digital, mas não só – contribuíram nas últimas décadas para a fabricação de uma nova matéria plástica que torna caduca a dicotomia baziniana entre crença na imagem e crença na realidade, algo de que Avatar representa o estágio mais avançado até agora: a substância aquosa do digital se integra de vez ao mundo foto-realista e aos corpos de carne e osso, tudo equalizado na mesma textura.

2009 mostrou um capítulo importante desse processo descrito acima, mas mostrou também um outro lado: em Erótica Aventura, de Jean-Claude Brisseau, é crucial que a hipnose de uma personagem ocorra em plano-seqüência e que nós tenhamos a garantia ontológica de que ela entra e sai do transe num único registro contínuo. Neste caso, importa sim que percebamos, que saibamos onde um plano começa, onde acaba, qual sua duração, sua posição na cadeia significante. Rodar um plano, para Brisseau, não é apenas estimular sensações novas, mas sobretudo encontrar aquele ângulo, aquele enquadramento e aquela focalização que se fazem necessários, e em vista dos quais ele terá de se posicionar e ligar a câmera. Justamente porque o cinema é uma interpelação de aparências fugidias, ele sente necessidade de fixar um centro, um núcleo de imantação das evidências, alcançado por um máximo de concentração e foco mas também por um máximo de abertura e suscetibilidade ao momento presente (como ocorre, aliás, na técnica de indução da hipnose). É a força documental do cinema, seu tropismo pelo acaso e pelas epifanias do real sensível, unida à vontade de ordenação e de sabedoria.

Enquanto a tendência dominante é a da diluição do plano em prol de uma circulação generalizada de imagens, Brisseau ainda busca no intervalo entre dois cortes a única forma de reter no cinema um pedaço indivisível da matéria do mundo. Se O Exterminador do Futuro – A Salvação confirma o impulso estético que prevaleceu (não só no cinema de ação) na década que vai chegando ao fim, ou seja, a desmaterialização do mundo na imagem, Brisseau oferece o oposto, sua restituição conflitual no plano. É nítida hoje a diferença entre a imagem como potência e imposição da sociedade do simulacro e o plano como um espaço de resistência e ressonância do pensamento dialético. Deveremos voltar ao assunto em breve.

Luiz Carlos Oliveira Jr.


Março de 2010