Dia
desses, estava num restaurante em que As
Panteras Detonando,
de McG, era exibido numa enorme TV de plasma. Na mesa ao lado, uma
menina perguntou à outra: “mas isso é o
trailer
ou é o filme?”. A dúvida é
de todo
pertinente. O filme é mesmo sem pé nem
cabeça,
faz cortes aleatórios e improváveis, funciona na
lógica
da pura iconicidade lúdica. Poderia ser o trailer, poderia
ser
o filme, tanto faz. Entre o filme e sua provável
publicidade,
pouca diferença resta. Falar de decupagem ou de mise
en scène a respeito de As
Panteras Detonando seria
inapropriado. O cinema, para McG, não é mais um instrumento
dialético
de reflexão sobre o mundo, e sim uma
compilação
“inconsciente” de idéias,
forças,
potências, mitos, histórias, ícones
etc. Ele mergulha o cinema no caldo indiferenciado de uma cultura visual
esquizóide e múltipla. Qualquer coisa pode se
combinar
com qualquer coisa. O plano não existe (ao menos o plano
como
“a parte de um todo”, ou “a menor unidade
de
significação no cinema”). Só
existem
“imagens”.
Embora O
Exterminador do Futuro – A Salvação
seja um filme bem mais “sério” que As
Panteras Detonando,
McG não deixa que a convencionalidade do projeto anule por
inteiro suas extravagâncias. Todos
devem lembrar, por exemplo, de
uma cena em que Christian Bale entra num helicóptero,
decola,
é atingido, o helicóptero cai de
cabeça para
baixo, Bale sai, depara-se com um robô exterminador. O pano
de
fundo é um cenário apocalíptico onde
as sucatas
do mundo material se acham abandonadas e espalhadas pelo deserto do
virtual. A câmera segue os movimentos de Bale, decola junto
com
ele, entra na cabine do helicóptero, acompanha sua queda,
sai,
tudo num único plano.
Ou trata-se de um falso
plano-seqüência
e há uma trucagem lá no meio mascarando as
descontinuidades? Não dá para saber, e na verdade
pouco
importa, pois McG não trabalha propriamente com
“planos”.
Em seus filmes, é um tanto inútil ficarmos
preocupados
com onde começa e onde acaba um plano, qual sua
duração,
sua extensão. A filmagem em continuidade, que
constituía
para Bazin um dos aspectos essenciais do cinema, se vê
fendida
aqui pelas transformações que –
por meio principalmente do digital, mas não só
–
contribuíram nas
últimas décadas para
a fabricação de uma nova matéria
plástica
que torna caduca a dicotomia baziniana entre crença na
imagem
e crença na realidade,
algo de que Avatar representa o estágio mais avançado até agora: a substância
aquosa do digital se integra de vez ao mundo foto-realista e aos corpos de carne e osso, tudo
equalizado na mesma textura.
2009 mostrou um capítulo importante desse processo descrito acima, mas mostrou também um outro lado: em Erótica
Aventura,
de Jean-Claude Brisseau, é
crucial que a hipnose de uma personagem ocorra em
plano-seqüência
e que nós tenhamos a garantia ontológica de que
ela
entra e sai do transe num único registro
contínuo.
Neste caso, importa sim que percebamos, que saibamos
onde um plano começa, onde acaba, qual sua
duração,
sua posição na cadeia significante. Rodar
um plano, para Brisseau, não é apenas estimular
sensações novas, mas sobretudo encontrar aquele
ângulo, aquele enquadramento e aquela
focalização que se
fazem necessários,
e em vista dos quais ele terá de se posicionar e ligar a
câmera. Justamente porque o cinema é uma
interpelação de aparências fugidias, ele sente
necessidade de fixar um centro, um núcleo de
imantação das
evidências, alcançado por um máximo de
concentração e foco mas também por um
máximo de abertura e suscetibilidade ao momento presente (como
ocorre, aliás, na técnica de
indução da hipnose). É a força documental
do cinema, seu tropismo pelo acaso e pelas epifanias do real
sensível, unida à vontade de ordenação
e de sabedoria.
Enquanto a
tendência
dominante é a da diluição do plano em prol de uma circulação generalizada de imagens,
Brisseau ainda busca no intervalo entre dois cortes a única forma de reter no cinema um pedaço
indivisível da
matéria do mundo. Se O
Exterminador do Futuro – A Salvação
confirma o impulso estético que prevaleceu (não só
no cinema de ação) na década que vai chegando ao
fim, ou seja, a desmaterialização
do mundo na imagem, Brisseau oferece o oposto, sua
restituição conflitual no plano. É nítida
hoje a diferença entre a imagem como potência e imposição da sociedade do simulacro e o plano
como um espaço de resistência e ressonância do
pensamento dialético. Deveremos voltar ao assunto em breve.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
Março de 2010
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