Filme a filme, Shyamalan demonstra
ser um autor na acepção mais estrita do termo: dono de uma obra absolutamente coerente
e coesa em seus movimentos internos. Se A Dama na Água parecia começar
onde A Vila tinha terminado (como bem observou nosso Luiz Carlos de
Oliveira Jr em sua critica do filme), Fim dos Tempos parte das “bases”
lançadas por A Dama na Água. O aspecto missionário deste último,
presente nas noções de catástrofe iminente e de mobilização perante o futuro do
mundo, previa de fato que o filme seguinte de Shyamalan se voltaria
“exclusivamente” para o alerta em relação às nossas ações para com o
planeta. Ao alargamento progressivo de escopo no campo da problemática que move
cada narrativa ao longo de sua obra (do indivíduo para a família, da família
para a comunidade, da comunidade para o país e o mundo), corresponde uma
depuração quase experimental da forma (de um pós-maneirismo a uma decupagem
“estóica”) e um aprofundamento sem concessões daquilo que é seu tema primeiro
e sua questão mais sagrada: a integridade dos sentimentos humanos.
Quando achávamos que não poderia
haver expressão cinematográfica da inocência, da pureza de coração e da fé em
estado puro mais acabada do que A Dama na Água, Shyamalan atesta que sua
capacidade de filmar a crença como entrega pode ir ainda além dos limites que podíamos
imaginar. Diante de Fim dos Tempos, como já acontecia em A Dama na
Água, o olhar crítico encontra-se subitamente desoperacionalizado por uma
imagem que nos solicita na medida da afecção imediata e da adesão inconteste. Por
outro lado, no entanto, o filme permeia a todo instante sua impressionante
frontalidade de misteriosas aberturas que sugerem caminhos subterrâneos
preenchidos essencialmente por um vazio de significação, ali, entre uma imagem e outra. (E existiria mais
valioso desafio crítico do que este em que a reflexão é ao mesmo tempo
estimulada e bloqueada pelo maravilhamento?)
Fim dos Tempos é um filme
alarmado, no qual nada é “preparado” de antemão: pegamos tudo na iminência
imediata do acontecimento, estamos desde o início em estado de alerta. E como
em situações de emergência não há tempo para pensar, é preciso ser direto. Ser
direto, para Shyamalan, significa justamente ser frontal, claro e absolutamente
transparente em propósitos e sentimentos. A mise en scène abandona o
suspense, e a narrativa os “rodeios” encantatórios: no aqui agora há somente
ações e palavras. E a ficção “científica” se estabelece pelo somatório de
hipóteses isoladas e por nossa dedução intuitiva embriagada de história do
cinema. Ao mesmo tempo, porém, o “toque Shyamalan” está lá, e mais revelador do
que nunca: as razões/explicações nunca estão onde o cinema (e nós, por
extensão) usualmente acha que elas estão. É preciso olhar além e melhor. Olhar
com outros olhos, olhos mais infantis, mais puros porque despojados de toda a
má educação do olhar. E, fascinante paradoxo, para isso é preciso que nos
confrontemos com as formas reconhecidas (ou seja, os gêneros), para então
sublimá-las ou transpô-las. Esta parece ser a problemática que atravessa cada
um dos filmes do cineasta, transmutada em roteiros engenhosos e escolhas de enquadramento
primorosas.
E Fim dos Tempos está cheio
delas. Desde os closes na sala de aula no início do filme, que dizem
algo outro do que se passa propriamente na cena, até a decupagem performática
dos suicídios, entre a fetichização do gesto e seu aspecto ritualístico.
Entretanto,
o que conhecíamos como traços distintos da obra de Shyamalan, a exemplo do gosto
pelo ficcionalizar e da agregação comunitária como força para transpor ameaças,
apresentam-se aqui transfigurados. O instinto da ficção encontra-se diluído na
vivência das pessoas: o suspense e o terror estão na forma como cada um se
apropria dos acontecimentos – Alma, por exemplo, vê no colega de trabalho o
personagem de Atração Fatal e na velha, uma entidade saída de O
Exorcista. E não há mais a confrontação entre dois mundos, como nos filmes
anteriores; há apenas um mundo, cindido, no interior do qual plantas e homens
rivalizam pelo direito à vida. Tanto de um lado quanto de outro, a cooperação é
o que confere força: para as plantas, trata-se de se comunicar quimicamente e
produzir uma arma de defesa eficiente, para os homens, demonstrar um afeto tão
puro e intenso que faça frente a qualquer impulso destrutivo.
Talvez pudéssemos dizer que a recusa
sistemática de Shyamalan ao maniqueísmo que “deveria” pautar as confrontações
que ele se dedicou a filmar (Cole e os fantasmas em O Sexto Sentido,
David e Elijah em Corpo Fechado, a família e os ETs em Sinais, a
comunidade e o exterior em A Vila, Story e os scrunts em A
Dama na Água) tenha tornado a idéia de ameaça uma noção interna ao próprio
homem, de forma que em Fim dos Tempos o homem deve lutar contra si mesmo
(pois suas atitudes destrutivas com o entorno passam a equivaler a atitudes
destrutivas contra si mesmo). Mas, se observarmos mais detidamente,
constataremos que o âmbito das ações mobilizatórias filmadas por Shyamalan
sempre foi a humanidade interior ao indivíduo, desde Olhos Abertos. De
uma forma tão essencial que continuar vivendo para seus personagens é uma
conquista dependente de uma reação positiva a si mesmo – que se estenderia
então àqueles ao redor. Não seria afinal a “conclusão” de Fim dos Tempos,
depois de uma longa sucessão de deduções lógico-científicas para determinar como
se proteger da ameaça, que a generosidade de coração é a única coisa capaz de frear a ira vegetal?
Trata-se de algo mais do que uma
ausência de explicações – ou de uma mera aceitação do mistério da natureza e da
falta de autoridade absoluta da ciência. Toda a funcionalidade do cinema e das
ações que este costuma encenar encontra-se deslocada em Fim dos Tempos. Não apenas as gags estão
fora de lugar e causam estranhamento (como a deliciosa falsa confissão de
Elliot sobre a mulher da farmácia, ou a ironia da casa modelo no meio do campo),
como o próprio mote propulsor da narrativa escapa constantemente rumo à
abstração. De uma forma tal que, a partir de determinado momento, são os tours
de force da mise en scène a única coisa capaz de levá-la adiante:
seja fazendo os personagens fugirem do vento (!), seja instaurando na casa da
velha um suspense diretamente gerado por um medo infundado associado ao instinto da
imaginação.
De uma forma ou de outra, tudo isto
torna-se possível apenas por alguém como Shyamalan, capaz de professar uma fé
sem concessões na imagem. Capaz de nos fazer ver numa árvore balançando ao
vento uma criatura prestes a atacar. Ou de vislumbrar na união de duas mãos um
compromisso inabalável de responsabilidade mútua e uma entrega completa. Tudo
no seio da cena, no corpo e no rosto de atores com as expressões mais cristalinas
e sinceras que poderiam ser filmadas. Este cinema raro, cuja existência é
necessário celebrar também com comprometimento – da paixão e do rigor de reflexão –, sugere desdobramentos infindáveis que nos
colocam repetidamente em xeque. Talvez seja este, afinal, o tipo de
cinema capaz de nos fazer reafirmar a crença neste nosso trabalho insano que é o da crítica.
Tatiana Monassa
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