FIM DOS TEMPOS
M. Night Shyamalan, The Happening, EUA, 2008

Filme a filme, Shyamalan demonstra ser um autor na acepção mais estrita do termo: dono de uma obra absolutamente coerente e coesa em seus movimentos internos. Se A Dama na Água parecia começar onde A Vila tinha terminado (como bem observou nosso Luiz Carlos de Oliveira Jr em sua critica do filme), Fim dos Tempos parte das “bases” lançadas por A Dama na Água. O aspecto missionário deste último, presente nas noções de catástrofe iminente e de mobilização perante o futuro do mundo, previa de fato que o filme seguinte de Shyamalan se voltaria “exclusivamente” para o alerta em relação às nossas ações para com o planeta. Ao alargamento progressivo de escopo no campo da problemática que move cada narrativa ao longo de sua obra (do indivíduo para a família, da família para a comunidade, da comunidade para o país e o mundo), corresponde uma depuração quase experimental da forma (de um pós-maneirismo a uma decupagem “estóica”) e um aprofundamento sem concessões daquilo que é seu tema primeiro e sua questão mais sagrada: a integridade dos sentimentos humanos.

Quando achávamos que não poderia haver expressão cinematográfica da inocência, da pureza de coração e da fé em estado puro mais acabada do que A Dama na Água, Shyamalan atesta que sua capacidade de filmar a crença como entrega pode ir ainda além dos limites que podíamos imaginar. Diante de Fim dos Tempos, como já acontecia em A Dama na Água, o olhar crítico encontra-se subitamente desoperacionalizado por uma imagem que nos solicita na medida da afecção imediata e da adesão inconteste. Por outro lado, no entanto, o filme permeia a todo instante sua impressionante frontalidade de misteriosas aberturas que sugerem caminhos subterrâneos preenchidos essencialmente por um vazio de significação, ali, entre uma imagem e outra. (E existiria mais valioso desafio crítico do que este em que a reflexão é ao mesmo tempo estimulada e bloqueada pelo maravilhamento?)

Fim dos Tempos é um filme alarmado, no qual nada é “preparado” de antemão: pegamos tudo na iminência imediata do acontecimento, estamos desde o início em estado de alerta. E como em situações de emergência não há tempo para pensar, é preciso ser direto. Ser direto, para Shyamalan, significa justamente ser frontal, claro e absolutamente transparente em propósitos e sentimentos. A mise en scène abandona o suspense, e a narrativa os “rodeios” encantatórios: no aqui agora há somente ações e palavras. E a ficção “científica” se estabelece pelo somatório de hipóteses isoladas e por nossa dedução intuitiva embriagada de história do cinema. Ao mesmo tempo, porém, o “toque Shyamalan” está lá, e mais revelador do que nunca: as razões/explicações nunca estão onde o cinema (e nós, por extensão) usualmente acha que elas estão. É preciso olhar além e melhor. Olhar com outros olhos, olhos mais infantis, mais puros porque despojados de toda a má educação do olhar. E, fascinante paradoxo, para isso é preciso que nos confrontemos com as formas reconhecidas (ou seja, os gêneros), para então sublimá-las ou transpô-las. Esta parece ser a problemática que atravessa cada um dos filmes do cineasta, transmutada em roteiros engenhosos e escolhas de enquadramento primorosas. E Fim dos Tempos está cheio delas. Desde os closes na sala de aula no início do filme, que dizem algo outro do que se passa propriamente na cena, até a decupagem performática dos suicídios, entre a fetichização do gesto e seu aspecto ritualístico.

Entretanto, o que conhecíamos como traços distintos da obra de Shyamalan, a exemplo do gosto pelo ficcionalizar e da agregação comunitária como força para transpor ameaças, apresentam-se aqui transfigurados. O instinto da ficção encontra-se diluído na vivência das pessoas: o suspense e o terror estão na forma como cada um se apropria dos acontecimentos – Alma, por exemplo, vê no colega de trabalho o personagem de Atração Fatal e na velha, uma entidade saída de O Exorcista. E não há mais a confrontação entre dois mundos, como nos filmes anteriores; há apenas um mundo, cindido, no interior do qual plantas e homens rivalizam pelo direito à vida. Tanto de um lado quanto de outro, a cooperação é o que confere força: para as plantas, trata-se de se comunicar quimicamente e produzir uma arma de defesa eficiente, para os homens, demonstrar um afeto tão puro e intenso que faça frente a qualquer impulso destrutivo.

Talvez pudéssemos dizer que a recusa sistemática de Shyamalan ao maniqueísmo que “deveria” pautar as confrontações que ele se dedicou a filmar (Cole e os fantasmas em O Sexto Sentido, David e Elijah em Corpo Fechado, a família e os ETs em Sinais, a comunidade e o exterior em A Vila, Story e os scrunts em A Dama na Água) tenha tornado a idéia de ameaça uma noção interna ao próprio homem, de forma que em Fim dos Tempos o homem deve lutar contra si mesmo (pois suas atitudes destrutivas com o entorno passam a equivaler a atitudes destrutivas contra si mesmo). Mas, se observarmos mais detidamente, constataremos que o âmbito das ações mobilizatórias filmadas por Shyamalan sempre foi a humanidade interior ao indivíduo, desde Olhos Abertos. De uma forma tão essencial que continuar vivendo para seus personagens é uma conquista dependente de uma reação positiva a si mesmo – que se estenderia então àqueles ao redor. Não seria afinal a “conclusão” de Fim dos Tempos, depois de uma longa sucessão de deduções lógico-científicas para determinar como se proteger da ameaça, que a generosidade de coração é a única coisa capaz de frear a ira vegetal?

Trata-se de algo mais do que uma ausência de explicações – ou de uma mera aceitação do mistério da natureza e da falta de autoridade absoluta da ciência. Toda a funcionalidade do cinema e das ações que este costuma encenar encontra-se deslocada em Fim dos Tempos. Não apenas as gags estão fora de lugar e causam estranhamento (como a deliciosa falsa confissão de Elliot sobre a mulher da farmácia, ou a ironia da casa modelo no meio do campo), como o próprio mote propulsor da narrativa escapa constantemente rumo à abstração. De uma forma tal que, a partir de determinado momento, são os tours de force da mise en scène a única coisa capaz de levá-la adiante: seja fazendo os personagens fugirem do vento (!), seja instaurando na casa da velha um suspense diretamente gerado por um medo infundado associado ao instinto da imaginação.

De uma forma ou de outra, tudo isto torna-se possível apenas por alguém como Shyamalan, capaz de professar uma fé sem concessões na imagem. Capaz de nos fazer ver numa árvore balançando ao vento uma criatura prestes a atacar. Ou de vislumbrar na união de duas mãos um compromisso inabalável de responsabilidade mútua e uma entrega completa. Tudo no seio da cena, no corpo e no rosto de atores com as expressões mais cristalinas e sinceras que poderiam ser filmadas. Este cinema raro, cuja existência é necessário celebrar também com comprometimento – da paixão e do rigor de reflexão –, sugere desdobramentos infindáveis que nos colocam repetidamente em xeque. Talvez seja este, afinal, o tipo de cinema capaz de nos fazer reafirmar a crença neste nosso trabalho insano que é o da crítica.


Tatiana Monassa