É
preciso um certo tempo para se acostumar com este novo
filme de Shyamalan. Primeiro porque o cineasta rejeita
a adesão intelectual à sua obra – grande “perigo” advindo
das interpretações de A Vila como alegoria social
e política – desmontando, sem medo nem pudor, o aparelho
conceitual dos últimos filmes, sob o risco mesmo da
ingenuidade e da pieguice (A Dama na Água de
fato possui um lado de exposição ao ridículo que não
é menos que encantador). Segundo porque o filme põe
em causa uma crise de ficção, crise da magia do grande
enredo, basicamente, que parecia não dizer respeito
ao cinema de Shyamalan na justa medida em que o crédito
de jovem cineasta gênio se dirigia, em grande parte,
à sua capacidade quase sobrenatural de tirar vantagem
da impossibilidade da ficção fantástica, de construir
fábulas invertidas, refletidas por um espelho crítico.
Após o encontro de Ivy com o guarda florestal em A
Vila, e mais especificamente após a maneira como
ele olha para ela, ficava a imagem de uma pureza
inabalável, apta a invadir o reino da inocência corrompida
e sair de lá ilesa – mais até, fortalecida. Mas a pergunta
recolocada pelo último plano do filme ainda era: a ficção
sobrevive à perda da inocência? Todos que saíam deslumbrados
de A Vila tinham a impressão de que a resposta
estava no próprio modo como Shyamalan conduzira o filme.
Ele ter extraído um tour de force de suspense
(a perseguição na floresta) depois de revelada a farsa
das criaturas, depois de quebrado o pacto necessário
ao funcionamento do medo, em suma, aquela peripécia
mor do filme parecia a prova indiscutível de que Shyamalan
exploraria os efeitos emocionais do enredo fantástico
ao enfrentar sua própria contestação no imaginário cinematográfico.
O que se criava não era um porto seguro da ficção, como
muitos tentam através das novas tecnologias de imagem
que fazem ressuscitar mitos e classicismos. Era antes
uma constatação de que a reinvenção do cinema de gênero
passa necessariamente pela estética, pelo conceito,
pela mise en scène.
Mas agora ele complica tudo e diz que prosseguir na
ficção requer um esforço ainda maior. A Dama na Água
começa onde A Vila terminou: já não há como
remediar. Levar adiante uma forma que repousa sobre
um determinado grau de inocência seria falso demais,
até desonesto. Será preciso recuperar uma forma arcaica
da ficção. À escassez de crença, ou ao nosso excesso
de conhecimento sobre os mecanismos de uma ficção e,
pior ainda, sobre o processo de feitura de um filme
(no que a figura central é o personagem do crítico de
cinema, parodiando Manny Farber), A Dama na Água
responde de maneira radical, no sentido não de uma
irredutibilidade da resposta, mas antes de um retorno
à raiz. Dois retornos, melhor dizendo: à utopia, combustível
(e talvez virtude) de toda fábula, e à oralidade, não
só o primeiro modo empregado na transmissão das fábulas
e dos mitos, como também a primeira etapa da vida (a
“fase oral”), nossa participação inaugural no mundo.
A escrita (atividade crucial no filme) precisa reencontrar
sua difusão através da fala. As pessoas “não ouvem mais”,
diz o narrador da estória sobre o Mundo Azul contada
no início do filme, e ilustrada por desenhos feitos
num estilo naïf que já dá a entender algumas
das intenções do diretor. Essa forma primitiva de narração
contida na fábula do Mundo Azul se opõe à deflação narrativa
do filme em si, e com isso Shyamalan atinge o ponto
nevrálgico da dificuldade de ficção que se abate sobre
o cinema. Pois se há hoje o retorno fácil ao épico ou
ao fantasioso propiciado pela renovação tecnológica,
há também a tendência, igualmente forte, a investir
nas superfícies e fazer a narrativa se perder nas curvas
de uma infinita espiral do tempo, ou apenas ter na trama
um pretexto para a exploração de um certo efeito-cinema
(seja na vertigem do puro movimento ou na embriaguez
do livre escoamento de imagens). Em A Dama na Água,
o cineasta afirma o poder de eternidade das ficções
ancestrais mas não deixa um só minuto de colocar a questão
do porquê elas não funcionam mais da mesma forma. Por
que a crise? E qual sua articulação com o estado atual
do mundo? A ficção se torna incapaz a partir do momento
em que se perde a crença no futuro, em que não há mais
perspectiva de mudança, em que a circulação de imagens
reitera um mesmo fracasso cíclico (a televisão só transmite
imagens de guerra, apocalipse ainda mais evidente que
a inesquecível cena da família reunida em torno da TV
para ver o “fim do mundo” em Sinais)? A ficção
“gagueja” por estar assombrada pelo próprio passado?
“Não restou mais originalidade no mundo”, diz o arrogante
Sr. Farber – e é esse ceticismo que precisa ser conjurado
mesmo que ao preço da “inteligência”.
A Dama na Água se passa no complexo residencial
intitulado “The Cove”, um edifício de apartamentos pequeninos
situado ao redor de uma piscina em forma de coração.
Cleveland (Paul Giamatti), o zelador do local, percebe
que toda noite há uma movimentação misteriosa na piscina.
É em uma de suas noites solitárias que ele vê Story
(Bryce Dallas Howard), a ninfa que sai da piscina, onde
morava provisoriamente, para que um pássaro a leve de
volta ao Mundo Azul, o que o monstro scrunt quer
impedir a todo custo, inclusive passando por cima de
algumas das regras envolvidas naquela batalha. Cleveland
descobre o papel especial que Story encarna (para “todos
nós”, como ele diz) e se empenha, ao lado dos habitantes
do condomínio, em salvá-la do scrunt e ajudá-la
a retornar ao Mundo Azul. Ele é o encarregado de recrutar
as pessoas e distribuir as funções, o que só pode ser
feito uma vez decifrados alguns sinais. Acima de tudo,
Cleveland precisa voltar a ser criança para ouvir da
mãe de Young Soon os detalhes sobre a fábula de ninar
que envolve Story e seus antagonistas. Entra em jogo
uma cosmologia que tem como ponto de partida a família
e a vizinhança. A comunidade isolada é novamente trabalhada
por Shyamalan como dispositivo cênico e social. Se há
uma questão política de base em seu cinema é a do como
viver em conjunto, questão que começa, mais especificamente,
no momento em que vem à tona o estatuto de quem se ocupa
da comunidade – seja o zelador do condomínio, consciente
de todos os problemas do grupo e disposto a tomar as
providências, seja o jovem iluminado que escreve um
“livro de cozinha” para falar das diferenças culturais
e de liderança. Os adultos de A Vila se ocupavam
da comunidade elaborando regras de restrição e as praticando
verticalmente, exercendo um controle de fronteiras,
por assim dizer. Mas o condomínio de A Dama na Água
traz uma idéia oposta: a de comunidade como conglomerado
de diferentes culturas e tipos, habitada por crianças
de todas as épocas (ali, ninguém é adulto, no fundo).
É claro que o contraponto se inscreve desde sempre naquele
espaço: o que os levaria ao isolamento senão a qualidade
de estrangeiros, losers, traumatizados ou improdutivos?
O primeiro plano do filme (Paul Giamatti agachado sob
a pia do apartamento de uma família de latinos, caçando
algum bicho que ali se escondeu) já surpreende por duas
coisas: 1) a câmera se fixa num ponto de vista e adia
ao máximo o contracampo; imaginamos e aguardamos o que
se acha do outro lado da cena até que... ele não vem,
o plano termina e não há contracampo; 2) trata-se de
uma cena de humor explorada até o seu limite,
dando início a um modo realmente divertido de encadear
gags (de horror ou, na maior parte do tempo, puramente
humorísticas mesmo) e de desmontar as engrenagens do
medo – a cena em que Farber descreve, ameaçado pelo
scrunt, como seria o decorrer da ação de acordo
com os clichês de um filme B chega a lembrar o Wes Craven
de Pânico. Não é preciso esperar muito para compreender
a economia do contracampo naquele primeiro momento:
ele seria guardado para depois, e seu efeito se acumularia,
porque a expectativa alimentada na primeira cena do
filme e frustrada no seu decorrer explodiria inesperadamente
quando o filme fizesse enfim um contracampo. E é exatamente
o que acontece: depois de quase se afogar na piscina,
Cleveland acorda, já em casa, e vê que o chão está molhado.
Em seguida olha para o sofá ao lado. Temos então a imagem
que responde a ele: um close-up absolutamente hipnótico
de Bryce Dallas Howard.
Quantos outros cineastas além de Shyamalan sabem filmar
uma aparição miraculosa? No passado houve John Ford
(o plano em que Pauline Moore chega em Young Mr.
Lincoln), houve Hitchcock (a primeira aparição de
Grace Kelly em Janela Indiscreta), houve Rossellini,
Dreyer. E hoje? Quem mais filmaria aquele close-up de
Bryce Dallas Howard, a primeira aparição de fato de
sua personagem (antes eram vultos que a câmera quase
esquecia de enquadrar), quando Cleveland acorda e a
vê ali sentada, como a continuação de um sonho ou a
atualização de um imaginário inconsciente, quem mais
filmaria aquilo com tamanho afeto e, por que não acrescentar,
com tamanha fé? Ninfa das antigas fábulas ou ícone religioso
(seu rosto lívido ocupa quase toda a imagem, e o que
resta do fundo é abstraído), Story ganha nosso coração
nos 5 ou 6 segundos que dura o plano. E sua relação
com Cleveland começa da maneira mais forte possível:
o corte não é aquilo que os separa, mas sim o que abole
o espaço entre os dois. A montagem potencializa a proximidade,
afirma que ali tem início uma conexão especial e mesmo
mágica. Cleveland, que em passagens anteriores havia
participado de planos de conjunto, havia dividido o
enquadramento com outros sem muita dificuldade, é ligado
a alguém pela primeira vez no filme. O outro contracampo
poderoso em A Dama na Água dialoga mais diretamente
com o plano inicial do filme, completando-o: a gag
do menino lendo mensagens na caixa de cereal explora
justamente o efeito que tinha sido negado lá no início.
Se há algo de investigativo no filme, não é a busca
de sentidos escondidos, mas o afloramento de sentidos
que já estavam lá. É como nas cenas com o especialista
em palavras cruzadas e seu filho: Cleveland (e de carona
nós, espectadores) só presta atenção no que o pai fala,
enquanto a criança já está ali, interpretando os sinais
das caixas de cereais de forma intuitiva e sofisticada.
A cena mostra tudo, põe a nu todas as peças, mas estamos
cegos e surdos a algumas delas. O filme não fica liberando
informações parciais, para instigar nossa curiosidade
e depois desvendar o enigma através de um virtuosismo
narrativo. Tudo é dado, tudo pode ser visto desde
que se procure ver, desde que se livre da
cegueira parcial a que o condicionamento do olhar, sua
transformação em instrumento de leitura, leva naturalmente
(não é de hoje que Shyamalan já solicita uma nova pedagogia
do olhar). Em geral, só se vê sabendo de antemão o que
ver, ou seja, sabendo já o que procurar na imagem. Mas
tudo permanece indecifrável em A Dama na Água até
que o olhar seja realmente interpelado – como na cena
em que Story está no chuveiro, sendo observada por todos:
esse é o momento em que ela começa a mudar aquelas pessoas,
tão-somente pelo olhar que lhes envia. A “verdade” emerge
por meios mágicos e não científicos: não se trata de
uma investigação policial, mas de um saber subterrâneo
e contagiante – todos embarcam na missão de libertar
Story meio que por osmose. Nada de viradas de roteiro
mirabolantes no filme, não é isso que lhe interessa.
Trata-se antes de um renascimento; o trabalho em conjunto
dos personagens ocasiona uma transformação. O que fica,
no entanto, é um sentimento menos de esperança do que
de urgência. O filme é um pouco esse paradoxo:
um doente terminal cheio de vida. Eis sua proporção
esquisita: quanto mais adoece, mais bonito fica. De
certa forma, A Dama na Água é uma grande oração
para o futuro, a ser cantada em coro, como na música
de créditos finais (linda versão para “The times they
are a-changin’” de Bob Dylan). Shyamalan pode não ter
feito uma segunda obra-prima, mas partiu para a descoberta
de um novo cosmo no qual será impossível antever os
limites de seu cinema.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
|