UMA VERDADE INCONVENIENTE
Davis Guggenheim, An Inconvenient Truth, EUA, 2006

Existem dois filmes em Uma Verdade Inconveniente. O primeiro é um documentário de interesse cívico, uma tentativa – parasitária, deve-se dizer – de usar os poderes de divulgação do cinema para chamar a atenção para o problema do aquecimento global e como é provável que ele conduza a uma hecatombe ecológica caso o planeta continue fazendo as escalantes emissões de gás carbônico que vem continuamente fazendo. O segundo filme é uma louca egotrip que tenta a todo custo personalizar a questão em torno dos esforços de Al Gore, de modo a torná-lo o mártir pela luta ecológica mundial. O filme estabelece longas e inúteis digressões para a vida pessoal de Gore, tentando amenizar um pouco a cara de documentário meta-institucional e fazer do processo de aprendizagem sobre o meio ambiente um conhecimento pessoal, quente, ao contrário da frieza dos números, dos gráficos e das estimativas que são continuamente apresentadas. A estratégia é clara: apontar para um grande problema mundial e ao mesmo tempo reerguer a carreira de um político que ficou estigmatizado como o perdedor que não foi até o final de suas forças no polêmico caso da eleição de George W. Bush em 2000. O mínimo a se dizer é que o filme funcionaria muito melhor sem os momentos sentimentalóides em que o filme tenta, de forma meio molamba, instalar (ou reinstalar) ou ex-quase-presidente americano nos corações dos americanos e estrangeiros pró-alterglobalização mundo afora.

Uma Verdade Inconveniente no fundo é uma grande palestra filmada, uma apresentação de Power Point com alguns retoques de espetáculo, segmentos de road movie, vinhetas new age, digressões sobre vida familiar. O filme faz de tudo para dar ao filme um clima malandrinho à Michael Moore, com direito a clip de Futurama – a famosa "outra" série de Matt Groening –, animações engraçadinhas, momentos pungentes e piadinhas cínicas. Estranho imperativo esse do documentário americano "engajado" de tentar arejar a sisudez transformando tudo em show. Al Gore até que se sai bem no esquema, dosando sua exposição com duas ou três piadas realmente boas que fazem o filme ter momentos em que se acha que está diante de uma stand-up comedy. Em Uma Verdade Inconveniente, deve-se dizer, ao menos o tema é tratado com mais seriedade e solidez de argumentação do que as diatribes michaelmooreanas cheias de momentos primários de non sequitur cuja intenção principal não é ser racional, mas bombástico. Bombástico o filme é, mas existe um trabalho muito sério de roteiro – ou, melhor dizendo, de preparação de aula – em tentar mesclar clareza de apresentação do problema, veemência para chamar a atenção para a urgência da questão, e ao mesmo tempo um FAQ que tenta responder às maiores dúvidas a respeito do tema. Por fim, o filme dedica pouco tempo às soluções, mas consegue fazer o espectador sair do filme acreditando que a tarefa é árdua mas uma mudança é possível. Ao fim, o filme vende esperança, ainda que as condições presentes sejam desoladoras.

Que fique claro: Uma Verdade Inconveniente pode ter sua (muita) importância como veículo de idéias, ou, até possivelmente com mais força, servir como um índice para dar visibilidade a um problema sério. Ótimo. Tomara. Mas na verdade o filme toma muito mais do cinema do que dá a ele – função parasitária do cinema como "forma nobre", o documentário como "forma da verdade", "veículo de ilustração". Sua importância deve ser medida nas páginas jornalísticas de cobertura internacional, pois ao cinema ele devolve muito pouco. Davis Guggenheim faz um trabalho eficiente, Al Gore é um professorzinho bacana, o filme levanta questões importantíssimas e evoca outras – os lobbies de grupos poderosos que dominam o poder oficial e a opinião pública –, mas atribuir relevância cinematográfica a ele é o mesmo que dizer que qualquer registro precário de uma encenação teatral de Shakespeare equivale a Stroheim. A tarefa da crítica cinematográfica, no mínimo, é saber essa diferença e evocá-la quando necessário. Uma Verdade Inconveniente pode ser um evento, um acontecimento importante, mas não apresenta maiores interesses pra o cienma como uma forma de arte e um meio expressivo de criar relações com o mundo. E essa verdade é inconveniente para muitos.

Ruy Gardnier