Não
há como evitar a expressão "filme
estranho" na saída de uma sessão
de Transe. Aqui não somente uma aventura
estética diversa das que nos acostumamos a ver
(e não apenas filiadas a um cinema clássico,
mas também as ditas modernas, alternativas, e
todas suas corruptelas), nem mesmo um jogo temático
e discursivo que proponha a experiência em novas
bases de percepção. Teresa Villaverde
oferece um universo paralelo que se realiza de maneira
integral, não apenas naquilo que dá conta
de uma dramaturgia e encenação próprias,
mas de tal maneira envolvente que a própria ocorrência
do cinema que se nutre dessa dramaturgia e encenação
parece se dar no interior desse universo. A estranheza
é exatamente essa sensação de se
estar diante de um filme que exija a recolocação
do olhar do espectador, um lugar novo, de regras próprias,
guiado unicamente pela vontade de si mesmo deste mundo
particular (algo que está na base do cinema dos
companheiros de geração da cineasta, da
Odete de João Pedro Rodrigues ao Juventude
em Marcha de Pedro Costa). Se essas características
são perfeitamente aplicáveis à
Transe, há também ali uma indisfarçável
sensação de produção codificada
dessa estranheza. Momento em que a novidade se anuncia
grande demais, e onde aquilo que parecia explosão
da espontaneidade de outra uma compreensão já
se mostra absolutamente dominado por regulamentos; estranhos,
é verdade, mas ainda assim regulamentos.
A trajetória de Sonia talvez contribua para isso.
Sua nacionalidade é incerta, e apesar de começar
a história em São Petersburgo e usar o
russo como língua, nega esta idéia de
pátria, incompatibilizando aquilo que compreende
de si mesma com aquilo que a idéia de origem
atribui como uma identidade. A rejeição
deste ambiente inicial é o que a coloca em movimento,
e atravessar toda Europa até chegar a Portugal,
onde reencontra este senso identitário perdido,
longe de uma decisão consciente e planejada,
é pura reação à inviabilidade
de sua experiência de vida atual. Nisso tudo há
evidentemente uma questão, e Transe não
consegue produzi-la dentro desta mesma noção
de estranheza que lhe parece tão cara. Questão
não como reverberação dos ruídos
produzidos por esse universo, mas como problemas a serem
resolvidos, temas a serem tratados, e tudo o que havia
de organicidade nesta trajetória acaba sofrendo
com as intervenções de uma força
externa, não regida pelos mesmos sentidos daquilo
sobre a qual precisa agir. Resolução,
tratamento, necessidade de ação, e assim
Transe cria uma instância superior à
sua protagonista, mais uma das que irão dominá-la
e subjugá-la ao longo do filme.
Sonia será testada. Como estágios demarcados
de uma escada evolutiva, será submetida à
diversas provações, cada uma agregando
valores à sua experiência, purgando negatividades
e preparando-a para seu momento de libertação
dessas obrigações. Os silêncios,
os mistérios, a ausência de explicações,
os personagens bizarros, a potencialização
da errância a partir da eliminação
de qualquer signo que possa dar alguma indicação
de seu destino, e tudo isso se arquiteta em nome desses
testes. Se Teresa Villaverde arma planos realmente belos,
se consegue casar a experiência de sua protagonista
à materialização de suas emoções
em forma de discurso visual, sua força acaba
perdida nesta previsibilidade de modos, incompatível
com a idéia de cinema que se anunciava a princípio.
Sonia, no meio disso tudo, sofre, se desespera, se recrudesce,
e ainda assim Transe precisa seguir em frente,
jogando-a num palácio italiano à Salò,
onde será oferecida como presente de um ricaço
à seu filho doente mental e eventualmente estuprada,
até que consiga fugir, tão somente para
que seja capturada por um bando de malfeitores e, cúmulo
das provações, ser sujeitada ao sexo com
um cachorro. Nesse momento, Sonia já aparece
totalmente destituída de Sonia, e aquilo que
parecia uma conquista a ser promovida acaba sofrendo
um ataque frontal de suas próprias trincheiras.
Identidade destroçada, corpo destroçado,
é no espectro de Ana Moreira que Transe
se apoiava, e não se implode uma protagonista
impunemente. Estranho, e o cinema tem muito pouco a
ver com isso. Estava tudo lá na exploração
do terror, onde o estado de transe não era mais
que a fabricação de uma patologia, a execução
de uma tarefa. Sonia chega ao fim de sua jornada, e
se sobrevive à estupradores, cafetões,
assassinos e zoófilos, não consegue nunca
escapar da fatalidade de ser personagem de Transe.
Rodrigo de Oliveira
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