Macumba pra turista, uma
vez mais
Só Deus Sabe não consegue nunca disfarçar sua
cara de produto. Está lá estampada a tentativa de parceria
entre dois países de cinema subdesenvolvido, se provando
grandes o bastante para gerar uma peça de carpintaria
nos moldes das cinematografias superiores, estão lá
expostos todos os artifícios de conquista das platéias
internacionais (porque, é claro, um filme passado em
três países diferentes, com estrelas da nova geração,
cheio de planos caros, não pode recuperar seus investimentos
apenas com a bilheteria desses dois países pobres, ainda
que, evidentemente, haja dinheiro público brasileiro
na jogada, através das leis de mecenato). Não há como
ignorar o modo quase infantil como Carlos Bolado vai
colocando em ação todos esses ingredientes de que dispõe,
uma receita óbvia e, no fim das contas, já reproduzida
algumas dúzias de vezes por aí. Assim, se temos em mãos
uma figura como a de Alice Braga, linda, exuberante,
é preciso imediatamente colocá-la numa cena de sexo.
Mais ainda, na primeira cena do filme, já apresentá-lo
com uma transa realmente quente, e pouco importa que
o teor dela não diga absolutamente nada a respeito de
sua personagem (porque o parceiro dessa cena apaixonada
não é o mocinho da história, mas o professor casado
com quem ela tem um caso e que, claro, não a trocaria
por sua esposa de jeito nenhum).
Mas essa é apenas a preparação. Só Deus Sabe
acontece mesmo é nas colorações que dá à história de
amor entre Dolores e o mexicano Damián. Porque colocada
em situações normais, esta seria uma trama com apelo
igual a todas as outras histórias de amor já filmadas,
e há algo aqui de diferente, aquilo que Bolado identifica
como um sentimento de latinidade irresistível à todos
aqueles que nascem por essas bandas, um sentimento que
é, antes de tudo, religioso, ligado à nossa disposição
em acreditar com todo fervor nas forças que não vemos
mas que se manifestam todos os dias em nossas vidas.
Se consegue manter alguma dignidade no registro das
superstições de Damián (mas na verdade do “povo mexicano”),
a aproximação das religiões negras brasileiras não é
nunca menos do que desastrosa. Típico olhar deslumbrado
estrangeiro sobre um fenômeno exótico e exterior à sua
própria vivência, Só Deus Sabe se sente muito
à vontade para taxar de “brasileiro, brasileiríssimo”
qualquer roupa de candomblé que passe pela frente de
suas lentes, e mais que isso, precisa ligar esse encanto
à trajetória da personagem de Alice Braga, pouco importando
o ruído entre a cobertura luxuosa num bairro chique
de São Paulo, onde vive a moça, e o pobre terreiro baiano
onde descobre, finalmente, que sua avó era uma grande
mãe de santo. Eventualmente, todo brasileiro acaba descobrindo
uma mãe de santo em sua árvore genealógica.
Equilíbrio estranho esse conseguido pela produtora Sara
Silveira entre aquilo que chama de cinema “autoral/tentando
uma tendência comercial”. A autoria parece indiscutível,
pois Carlos Bolado, além de dirigir, também escreveu,
co-produziu e montou Só Deus Sabe, o que dá dimensões
ainda mais drasticamente pessoais a todo o descalabro
de seu filme. A tentativa comercial está na reunião
de Alice Braga e Diego Luna, que apesar de bons atores,
não estão lá por outro motivo que não para representar
uma certa onda jovem latina, sexy e bilíngüe; nos vários
cenários curiosos da trama, na multiplicidade de caminhos,
tentativa de arrebanhar públicos diversos (do conteúdo
sexual misturado à viagem de descobertas, chegando a
um drama de gravidez e morte, tudo temperado com muito
bom humor). Mas a tendência aparece mesmo como devoção
ao comércio, e toda sugestão de profundidade da qual
o filme tenta se investir sempre que esbarra num tema
forte demais para sua capacidade de compreensão mostra
que não há nada acontecendo ali que não o descaramento
de uma proposta de manufatura. Só Deus Sabe falha
até mesmo como produto, porque incapaz de talhar com
alguma consciência sua própria forma. Não passa mesmo
de puro verniz.
Rodrigo de Oliveira
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