SÓ DEUS SABE
Carlos Bolado, Solo Diós Sabe, Brasil/México, 2005

Macumba pra turista, uma vez mais

Só Deus Sabe não consegue nunca disfarçar sua cara de produto. Está lá estampada a tentativa de parceria entre dois países de cinema subdesenvolvido, se provando grandes o bastante para gerar uma peça de carpintaria nos moldes das cinematografias superiores, estão lá expostos todos os artifícios de conquista das platéias internacionais (porque, é claro, um filme passado em três países diferentes, com estrelas da nova geração, cheio de planos caros, não pode recuperar seus investimentos apenas com a bilheteria desses dois países pobres, ainda que, evidentemente, haja dinheiro público brasileiro na jogada, através das leis de mecenato). Não há como ignorar o modo quase infantil como Carlos Bolado vai colocando em ação todos esses ingredientes de que dispõe, uma receita óbvia e, no fim das contas, já reproduzida algumas dúzias de vezes por aí. Assim, se temos em mãos uma figura como a de Alice Braga, linda, exuberante, é preciso imediatamente colocá-la numa cena de sexo. Mais ainda, na primeira cena do filme, já apresentá-lo com uma transa realmente quente, e pouco importa que o teor dela não diga absolutamente nada a respeito de sua personagem (porque o parceiro dessa cena apaixonada não é o mocinho da história, mas o professor casado com quem ela tem um caso e que, claro, não a trocaria por sua esposa de jeito nenhum).

Mas essa é apenas a preparação. Só Deus Sabe acontece mesmo é nas colorações que dá à história de amor entre Dolores e o mexicano Damián. Porque colocada em situações normais, esta seria uma trama com apelo igual a todas as outras histórias de amor já filmadas, e há algo aqui de diferente, aquilo que Bolado identifica como um sentimento de latinidade irresistível à todos aqueles que nascem por essas bandas, um sentimento que é, antes de tudo, religioso, ligado à nossa disposição em acreditar com todo fervor nas forças que não vemos mas que se manifestam todos os dias em nossas vidas. Se consegue manter alguma dignidade no registro das superstições de Damián (mas na verdade do “povo mexicano”), a aproximação das religiões negras brasileiras não é nunca menos do que desastrosa. Típico olhar deslumbrado estrangeiro sobre um fenômeno exótico e exterior à sua própria vivência, Só Deus Sabe se sente muito à vontade para taxar de “brasileiro, brasileiríssimo” qualquer roupa de candomblé que passe pela frente de suas lentes, e mais que isso, precisa ligar esse encanto à trajetória da personagem de Alice Braga, pouco importando o ruído entre a cobertura luxuosa num bairro chique de São Paulo, onde vive a moça, e o pobre terreiro baiano onde descobre, finalmente, que sua avó era uma grande mãe de santo. Eventualmente, todo brasileiro acaba descobrindo uma mãe de santo em sua árvore genealógica.

Equilíbrio estranho esse conseguido pela produtora Sara Silveira entre aquilo que chama de cinema “autoral/tentando uma tendência comercial”. A autoria parece indiscutível, pois Carlos Bolado, além de dirigir, também escreveu, co-produziu e montou Só Deus Sabe, o que dá dimensões ainda mais drasticamente pessoais a todo o descalabro de seu filme. A tentativa comercial está na reunião de Alice Braga e Diego Luna, que apesar de bons atores, não estão lá por outro motivo que não para representar uma certa onda jovem latina, sexy e bilíngüe; nos vários cenários curiosos da trama, na multiplicidade de caminhos, tentativa de arrebanhar públicos diversos (do conteúdo sexual misturado à viagem de descobertas, chegando a um drama de gravidez e morte, tudo temperado com muito bom humor). Mas a tendência aparece mesmo como devoção ao comércio, e toda sugestão de profundidade da qual o filme tenta se investir sempre que esbarra num tema forte demais para sua capacidade de compreensão mostra que não há nada acontecendo ali que não o descaramento de uma proposta de manufatura. Só Deus Sabe falha até mesmo como produto, porque incapaz de talhar com alguma consciência sua própria forma. Não passa mesmo de puro verniz.

Rodrigo de Oliveira