Mais um filme de Apichatpong Weerasethakul. Mais um filme que encontra sua unidade justamente ao se partir em dois. Mais uma experiência de preenchimento sensorial, sempre na mistura de leveza e estranhamento. Mais uma investigação sobre modos de narrar, de contar uma história. Mais um monte de coisa. E é tudo novo, surpreendente, toda uma nova aventura com o cinema. Assim é Síndromes e um Século: Apichatpong refazendo seu cinema, mas encontrando o passo adiante. Se em Eternamente Sua um século inteiro de cinema não era suficiente para dar metade das pistas de fruição e compreensão do filme, e estas precisavam ser buscadas em outros lugares (nas artes plásticas, na música contemporânea, em sabe-se lá onde...), Mal dos Trópicos mostrou que na obra de Apichatpong também não haveria mapas internos, aquelas decorebas de autor que facilitam a vida de quem quer curtir um cinema "assinado por". Conhecer um, dois ou mesmo os seus três longas-metragens não garante uma impressão de familiaridade diante de Síndromes e um Século. Ele vem fazendo um caminho preciso, uma rota conceitual: um filme funciona ao mesmo tempo como comentário sobre o(s) filme(s) anterior(es) e como visita a um novo universo. No fundo, ele está refilmando Objeto Misterioso ao Meio-dia há seis anos. Síndromes e um Século, nessa lógica, se constrói como um acúmulo dos três longas anteriores. Mas é daqueles filmes que, como poucos, sai realmente em busca de novas possibilidades.
Pura magia, esta de uma obra em que as repetições são nada menos que mudanças profundas. O mesmo vale para a composição interna de Síndromes e um Século: a segunda metade "repete" a primeira, mas instaura um outro processo, uma expansão de sensibilidade, como se fosse preciso reencenar a vida em outro espaço, com outras percepções. Um tema recorrente nos diálogos do filme é sobre a memória de uma outra vida, anterior, e também a especulação de uma vida futura, a aguardar o término da vida presente. O filme, então, funciona como uma aquisição de outra vida (passada? futura?), uma transposição dos personagens para outra realidade, igual porém diferente. Diálogos se repetem com discretas e fundamentais variações, situações se opõem justamente por se parecerem (a consulta do jovem monge com o dentista, primeiro com ele cantando e se aproximando afetivamente do paciente, depois com ele usando uma máscara antisséptica e sem falar uma só palavra), papéis se mantêm ou se trocam, novos personagens são convidados ao filme (uma hospitalidade presente também em Mal dos Trópicos).
Do espaço mais rural e bucólico da primeira parte, a narrativa migra para o ambiente urbano na segunda. Como em toda transição, alguma coisa se perde e alguma coisa se ganha. O calor de um espaço pode se trocar pela aparente assepsia do outro. Uma relação platônica pode se trocar por um namoro firme. O importante, contudo, é que continua havendo aquilo que definitivamente é a matéria-prima do cinema de "Joe" Apichatpong: vida acontecendo. Qualquer vida? Mais ou menos. Há uma especificidade: ele encena a vida como fato simples e sereno, e no qual o mágico e o prosaico se consubstanciam. Um conceito muito particular de vida, certamente. Fala-se, volta e meia, no modo como alguns cineastas contemporâneos retrabalham o conceito de ambiência em seus filmes e provocam fabulosas experiências de imersão. Mas se há um cineasta que transborda esse conceito, é Apichatpong. Nos seus filmes, pela peculiaridade do trabalho com o tempo narrativo e pela incrível forma de fazer os corpos ocuparem o espaço (algo no limite entre a presença bruta e a evaporação completa), ele afirma que é preciso habitar o cinema.
Já estava evidente em Mal dos Trópicos a maneira como Joe encena o mundo através de uma linguagem que não opera pela diferença entre os termos, criando um sentimento de fluxo compartilhado. Um cinema que não distingue entre homens, bichos, plantas ou máquinas, e no qual todos dividem um mesmo estado de suspensão. Nos créditos iniciais, Apichatpong Weerasethakul se apresentava como aquele que havia "concebido" a obra. E para abordar sua estética, de fato, tanto as antigas como as novas idéias de mise en scène não pareciam dar conta do que estava em jogo. Falamos em filme-dispositivo, talvez na falta de um conceito mais preciso. Agora, já lemos "escrito, produzido e dirigido por Apichatpong Weerasethakul", no magnífico plano de créditos iniciais de Síndromes e um Século, aquele lento travelling para frente em direção ao vasto campo verde, enquanto ouvimos em off os atores conversando já distante dali, e a partir do que eles falam vamos fazendo mentalmente um conjunto de outras imagens que disputam com o verde pregnante. Um crédito que o designa definitivamente como cineasta. No entanto, o que vemos em Joe continua sendo uma definição mais ampla, algo como um artista do tempo, do espaço, um artista da natureza.
O filme começa com uma imagem de árvores sendo balançadas pelo vento. Depois, um rosto. E outro rosto, e uma fala suave como o vento que víamos antes. Todos os diálogos do filme serão assim, os pesonagens conversarão de forma plácida, às vezes quase sussurrante. Os diálogos, por sinal, abundam em Síndromes e um Século. Anamnese, consulta odontológica, histórias de amores do passado ou do presente, conversa entre amigos ou entre colegas de trabalho: os personagens estão sempre falando um com o outro. E há uma forte dose de humor em quase todos os diálogos. Em quase todo o filme, para ser mais exato. Os personagens às vezes parecem brincar (de esconde-esconde, por exemplo), mas na verdade essa infantilidade é uma espécie de condição existencial deles. O mundo em si deve ser criança em Síndromes e um Século. Não por acaso, no último plano do filme nosso olhar converge para uma criança que participa, a seu modo, da aeróbica ao ar livre. As cenas que arejam o filme nos seus últimos minutos, após ele ter se fechado no hospital durante um bom tempo, trazem um pouco essa idéia de um mundo ainda muito novo, muito criança.
A passagem de uma parte à outra é feita de maneira mais fluida do que em Mal dos Trópicos. Lá havia uma "interrupção", uma tela preta, novos créditos. Em Síndromes e um Século o jovem monge some repentinamente, de forma muito parecida com o sumiço de um dos personagens da primeira parte de Mal dos Trópicos (e era o mesmo ator que agora faz o papel do monge). A cena é filmada de forma esplêndida: uma caminhada pelos corredores do hospital, um mergulho na escuridão e o filme não pode mais seguir aquele mesmo fio de história e de relações entre personagens. Se há um novo começo, o indício dele está tão-somente na porta da sala do dentista, onde há uns escritos (provavelmente o nome do dentista que ocupa a sala) que a luz transforma em cartela de créditos. Antes, em uma das mais extraordinárias seqüências do filme, Apichatpong sai do rapaz que toca violão para mostrar pessoas circulando pela frente da câmera, um grupo de freiras, crianças brincando na praça, vidas acontecendo durante uma noite que pode ser eterna. A música permanece ao fundo: mistura de delicadeza e intensidade que dá o tom do filme.
Uma das imagens mais marcantes é a de um eclipse. Essa imagem não apenas revela uma utilização mágica da natureza (tão mágica quanto as nuvens abrindo espaço para o sol ao final de Eternamente Sua), mas também desenha a própria estrutura de Síndromes e um Século. Eclipse: uma parte da narrativa se sobrepõe à outra, um saber científico se coaduna a um saber espiritual (a médica e o monge se consultando mutuamente), um coração passa pelo outro ou a ele se cola, o sol se encaixa à moldura da janela para compor um lindo plano, um reflexo no vidro tatua o rosto da médica com o verde e os galhos das árvroes. Quase tudo no filme é a visualização de um eclipse. Cenas de rua à noite no final da primeira parte, cenas de rua de dia no final da segunda. Travelling para a direita nas estátuas de médicos e travelling para a esquerda na estátua do buda: se os dois planos se encontrarem, em algum local de interseção, um eclipse ocorre. Talvez a melhor forma de assistir a Síndromes e um Século seja projetando as duas partes do filmes ao mesmo tempo, sobre a mesma superfície, para causar uma sobre-impressão, ou melhor, um eclipse.
Mas não: a verdade é que cada instante do filme pede sua fruição particular, cada um tem sua dimensão de sublime. A exemplo do plano que percorre o porão do hospital (filmado como uma verdadeira instalação, o paralelo sensorial das anteriores investidas na floresta em Eternamente Sua e Mal dos Trópicos) e termina se aproximando de um exaustor que parece sugar aquele espaço. Tudo se transforma em fumaça, para depois sermos devolvidos ao ambiente externo: imagens de pessoas conversando, se exercitando, caminhando, dançando ao ar livre. O desfecho provoca um sentimento expansivo, como se os movimentos da aeróbica contagiassem também o espectador. Saímos do filme banhados por um modo positivo e vitalizante de pertencer ao mundo, que se desdobra também num modo positivo e vitalizante de ocupar as salas de cinema, de fazer circular um tipo de energia que nada tem a ver com qualquer atitude bobo-zen. É a vida dilapidada para ser levada ao ponto em que ela nada mais é que uma pulsação originária, um simples balbucio que já comporta a magnitude de todos os sons do universo.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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