Os verdadeiros sonhadores
Ter vinte, vinte e poucos anos. Ter pouco dinheiro. Usá-lo para comprar discos, livros. Entrar na faculdade. Aprender uma profissão. Através dela, tentar ser útil em seu meio social de atuação. Querer mudar o mundo. Ainda que Paul Nizan tenha escrito que não deixaria ninguém dizer que é a mais bela idade da vida, existe um fascínio específico dessa época da vida, que diz respeito às enormes possibilidades que o futuro apresenta, às descobertas da vida profissional e sentimental, às tensões arrasadoras sobre o que será o futuro. Proibido Proibir, para dizer o mínimo, dá conta perfeitamente desse clima de instabilidade, de abertura de possibilidades e do confrontamento com o mundo que nem sempre atende aos anseios mais esperançosos daqueles que esperam o pote de ouro ao fim do arco-íris.
Zona norte, três universitários. Um estuda medicina, outro ciências sociais, a menina estuda arquitetura. Os três fazem a passagem daquilo que se aprende em sala de aula para aquilo que se aprende na vivência profissional. Pesquisa de campo, residência, visita ao Palácio Capanema. Passa-se o tempo entre as salas de aula, o trabalho, o estudo e o tempo livre, tomando uma cervejinha, comendo sanduíches em quiosques ou simplesmente conversando nas áreas de socialização da universidade ou mesmo em casa. Não é uma juventude que estamos acostumados a ver nas ficções mais convencionais, que utilizam os jovens apenas como elementos funcionais ou nas tipificações mais grosseiras de classe alta, Zona Sul carioca, à maneira de Malhação ou Como Ser Solteiro. Aqui, ainda que as caracterizações volta e meia adquiram toques de tipologia meio clichê – ser engajado ou alienado, por exemplo –, existe uma sensibilidade que excede a mera funcionalidade da intriga. Jorge Durán, mais famoso como roteirista do que como diretor (esse é seu segundo longa, feito vinte anos depois do primeiro, A Cor do Seu Destino), tem prazer em filmar seus personagens em momentos quaisquer, simplesmente entregues ao que estão fazendo: lendo livros, colocando uma musiquinha no cd-player, comendo frango de padaria na rua enquanto o amigo está com a namorada em casa. Se Proibido Proibir cativa o interesse num primeiro momento, é por dar uma atenção pouco comum a essa vida cotidiana de gente como a gente que não precisa de grandes perturbações e instalações de intriga para manter-se instigante e bela. A menina é riquinha de Zona Sul e os dois outros pobrinhos de Zona Norte? Para que fazer um fuzuê metido a dialético por causa disso (alô, Quase Dois Irmãos!), uma vez que vivemos cotidianamente essa experiência e incorporamos essas diferenças sem muitos conflitos no nosso dia-a-dia?
Mas as perturbações, naturalmente, acontecem. O mundo da doce vida de estudante universitário com pouco dinheiro pode se afrontar com um outro, sem chances de educação e, pior ainda, um universo em que o estado de direito não entra, uma vez que seus mantenedores – a polícia, em especial – estão mancomunados com as máfias locais e servem de assassinos de aluguel. Basta um passo para fora do próprio mundo para se deparar com uma outra faixa da realidade, uma faixa que só ganha mais relevo na sociedade através das páginas policiais. Assim, imbuídos das melhores intenções, Paulo, Leon e Letícia são confrontados com um mundo em que as diferenças sociais e humanas estão ancoradas em raízes muito mais profundas do que poderiam imaginar. Raízes que, por mais que se tente apreender e estudar para mudar – como a colega de classe de Leon –, têm uma efetividade e uma inacessibilidade enorme e dolorosa. Um ritual de passagem, uma aprendizagem sentida, uma desilusão acachapante: o conhecimento e as boas intenções nem sempre servem para abrir possibilidades de mudança efetiva. Proibido Proibir é a narrativa dessa defasagem entre esperança e frustração presentes na distância entre nossa vontade subjetiva e as condições objetivas de intervenção no tecido social. Nessa lacuna, nasce a graça particular e pungente do filme de Jorge Durán.
Se no cômputo geral podemos assinalar Proibido Proibir como um êxito através do mergulho no recorte que faz, e na diferença particular que esse recorte cria no seio de um cinema brasileiro por demais prêt-à-porter e sem ligações mais precisas e dinâmicas com a forma como as pessoas andam, falam, vivem e se mexem, não podemos deixar de notar uma certa falta de jeito no prolongamento da narrativa, numa certa grosseria da montagem em fazer de qualquer jeito a passagem das seqüências, uma certa obviedade na sensibilidade visual do filme. Mas esses são pecados pequenos diante de um filme que, por sua tamanha entrega ao contraste entre duas realidades e à experiência de aprendizagem que daí nasce, por seu doce e carinhoso registro de pessoas de carne e osso como aquelas que vemos na rua, pelo intenso fascínio em fazer a ficção surgir a partir da atenção ao cotidiano e às rusgas do real que dele brotam, encanta e faz figura de exceção dentro de nosso cenário audiovisual. Ainda que irregular em sua confecção, Proibido Proibir atinge em cheio o coração daqueles que se preocupam com os laços que a ficção pode tecer com o mundo em que vivemos. Como os personagens ao final, as adversidades e os problemas processuais não impedem que se continue vivo e ativo. E Proibido Proibir vive.
Ruy Gardnier
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