O PASSAGEIRO
Flávio Tambellini, Brasil, 2006

O Passageiro se insere num duro panorama recente do cinema brasileiro, onde a simpatia que o filme emite ao tentar obter uma aproximação com um mundo contemporâneo sem maiores grandezas históricas ou sociais termina por esconder uma falência estética assustadora. Se Bufo & Spallanzani já parecia um filme de plástico, O Passageiro mostra um Flávio Tambellini ainda mais perdido, sem qualquer confiança naquilo que está mostrando. São inúmeros os momentos em que o texto e os atores seguram a cena, mas sempre que se começa a entrar no jogo de cena do filme, um corte tosco invade a obra. Sua insegurança como cineasta está na tela em forma das imagens de paisagens entre seqüências, abortando o corte e desestruturando muito o filme com o contínuo uso de planos de cobertura. Uma cena que tem fechamento estético inexplicável é aquela em que Bernardo Marinho e Luiza Mariani finalmente se beijam e têm uma conversa de incertezas. A grua sai dos dois no chão de frente pro mar e faz um movimento totalmente sem sentido para filmar uma paisagem por algum tempo até finalmente ser cortada.

Todo este arsenal de problemas estéticos é mesmo uma pena, pois existe um filme de grande interesse em O Passageiro. Sem acesso à obra original de Cesário Mello Franco, também autor da adaptação para o roteiro e co-produtor do filme, fica difícil saber a qualidade de seu texto em si, mas é inegável que sua narrativa é cativante, e foi compreendida em geral pelo cineasta. Pois, falência de talento visual à parte, Tambellini conseguiu construir um universo particular dentro do filme, onde todos as suas idiossincrasias parecem de alguma forma fazer sentido. Embora mantenha o costume de Bufo & Spallanzani de ter os atores num tom over, ele constrói junto deles algo realmente convincente, um ir e vir de personagens bastante digno. O filme é cheio de figuras que aparecem em alguns momentos, somem por completo em outros, retornam repentinamente, e ainda assim fazem todo o sentido dentro da narrativa, ainda que seja uma pena ver um ator com o talento de Silvio Guindane ser desperdiçado num papel tão pequeno. Mesmo a personagem de Giulia Gam, que tem um peso que inicialmente parece totalmente desregulado, vai aos poucos ganhando sentido, ao final dando a impressão de que o tom carregado era mesmo o adequado.

O que mantém o filme desde o princípio é a força do personagem que carrega o filme nas costas, Antonio, ostentado com bastante talento por Bernardo Marinho. Um jovem rico que abdica de diversas comodidades de sua fortuna, anda apenas de ônibus, vive como uma figura comum qualquer, sempre entre baladas com amigos e seu quase romance com uma amiga. Até que o filme tem sua virada mais complicada, após uma briga pesada entre Antonio e seu pai, o personagem passa a ter que carregar todo um peso nas costas pela morte dele, que aconteceria no mesmo dia num assassinato. A questão é que Tambellini pontua com tanto exagero a distância de Antonio com seu pai, numa atuação pra lá de exagerada de Antonio Calloni, que fica difícil se convencer depois que aquela figura pudesse mesmo ser alguém interessante. Nessa viagem de tentar se livrar do peso da morte do pai, Antonio vai descobrindo diversas coisas que não sabia sobre ele, seu passado como mecânico e piloto de carros (há um flashback particularmente tosco em que o filho lembra do pai falando de seu carro), e seu envolvimento com uma mulher que mais tarde ele viria saber ser uma antiga amiga de sua mãe. O que mais interessa é que o sentimento de jornada em si é o que é valorizado, mais do que propriamente as informações que ele vai descobrindo. Além de o fato do cotidiano seguir, e em alguns destes momentos mais comuns do filme reside boa parte de sua graça, também estes os momentos que Tambellini melhor encontra como encenar.

Há aqui e ali algumas seqüências que se pretendem como pequenos comentários, mas que realmente soam deslocados e toscos. Como, por exemplo, quando Antonio assiste a um documentário na TV e sua mãe lhe atormenta questionando seu interesse pelos pobres, que termina com uma destas patéticas frases de efeito, do tipo: “e você, mãe, é feliz?”. A seqüência em si poderia ter bem mais força se feita apenas a partir do personagem e de seu interesse, excluindo a interferência da mãe. Neste movimento, o filme coloca em cena uma noção de certo e errado pra lá de questionável, num tom totalmente fora daquilo que vinha sendo apresentado até então. É realmente difícil defender um filme com momentos como este. Mas em momentos como o fechamento – que pode parecer equivocado do ponto de vista narrativo por não propriamente fechar as pontas, mas que funciona com uma incrível sobriedade na tela, sendo bastante justo com o personagem que construiu –, nos relembra do profundo interesse que o filme merece, ainda assim
.


Guilherme Martins