O ANO EM QUE MEUS PAIS SAÍRAM DE FÉRIAS
Cao Hamburger, Brasil, 2006

Ao chegar em São Paulo e vislumbrar pela primeira vez a geografia de uma metrópole, Mauro olha, curioso e desconfiado, para fora da janela do carro. No quadro de Cao Hamburger, o céu e os prédios se sobrepõem ao rosto do menino, cujo olhar contempla este vasto fora de campo, enquanto a moldura da janela recorta-o deste mundo exterior, reforçando seu pertencimento ao interior do veículo familiar. O extremo cuidado de composição de imagem de O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias testemunha sempre de uma relação mediada entre o interior e o exterior, seja do quadro, do ambiente ou do personagem. Esta mediação se dá, por um lado, pela presença da câmera, que ficcionaliza, e, por outro, pela sensibilidade infantil a apreender o mundo.

Desta forma, o olhar infantil em O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias não é um filtro "aplicado" sobre a narrativa, ou sobre um "tema" (a ditadura), mas, em certa medida, o próprio objeto de interesse do filme, que procura articular experiências pessoais e sócio-históricas. E o elemento que proporciona essa articulação é justamente o principal ponto de inflexão da relação de Mauro com o mundo: o futebol e a Copa do Mundo de 1970 (emoções ao mesmo tempo pessoais e coletivas). Mesclando a premissa narrativa da experiência infantil da "solidão" (à la Esqueceram de Mim), à do exílio político e da incompreensão de uma série de acontecimentos que sobrevêm avassaladoramente, Hamburger fez um belíssimo filme sobre uma vivência particular de um determinado espaço-tempo.

Exilado de sua família, Mauro passa subitamente a viver como um estrangeiro: em terra estranha e imerso em uma cultura (costumes, língua, hábitos) que desconhece. A mudança vem brusca, sem aviso prévio e sem explicação. A espera pela "volta ao lar" (o retorno dos pais) é longa e a adaptação lenta, embora progressiva. Se, de início, o dado mais imediato da realidade com o qual ele é capaz de se conectar é a Copa do Mundo, a um só tempo, sua paixão e evento histórico, paulatinamente o garoto começa a ter uma vaga idéia dos acontecimentos que assolam o país (e que envolvem seus pais). A alegria do futebol, com sua indescritível euforia e suas cores vibrantes, constitui o contraste direto da tristeza cinzenta da perseguição pelo regime, da dor da tortura e da revolta por todo o cerceamento outorgado.

Este paralelo, no seu absurdo irônico, marca o ano de 1970 e é bastante representativo de todo o período da ditadura militar no Brasil. De um lado, a festa por uma conquista esportiva travestida de vitória nacional (acompanhada de perto pela comemoração do "milagre econômico"), de outro, a intensificação das práticas inomináveis dos militares, que derrubavam qualquer sentimento de orgulho pátrio e de pertencimento. Mas Cao Hamburger não toma essa dicotomia na sua forma mais óbvia, do historicismo politizado que necessita lançar luzes sobre esse passado recente e (ainda) nebuloso. Ele escolhe o caminho da memória pessoal e da singularidade de uma vivência e de uma percepção sensível.

Pois, se toda a experiência particular de Mauro, que, mesmo sem ter da ditadura a compreensão que nós temos, a vivenciou diretamente, pode servir de metáfora para a vivência tradicional do exílio (da mesma forma que a expressão "sair de férias"), ela se apresenta antes como um registro da sensibilidade infantil em relação a pequenas coisas e, sobretudo, a reações a mudanças. Este ano em que seus pais saíram de férias e o deixaram sozinho, é, para Mauro, de intenso aprendizado (e amadurecimento), por conta da experimentação de uma situação específica, e de alegrias e tristezas marcantes. A irredutibilidade de tudo que ele vive só pode ser captada, portanto, pela captura dos seus afetos. E é isto que faz a câmera de Cao Hamburger, atravessando toda a narrativa pela sensibilidade do menino. Isto significa não apenas colocá-lo no centro, na primeira pessoa e com narração em off, mas alinhar-se às suas preocupações e à sua percepção do espaço e do tempo. Estar atenta aos seus mínimos trejeitos, impulsos, sentimentos e pensamentos; torná-lo baliza da imagem, fazendo todo o resto bascular de acordo com os seus movimentos.

O que há de mais encantador no filme de Hamburger é, portanto, o raro e delicado equilíbrio entre o pano de fundo de extrema relevância histórica, e o primeiro plano, de incontestável relevo humano. Arquitetado primeiramente em termos de roteiro, é na imagem composta sempre de forma muito cuidadosa que este equilíbrio se manifesta. O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias realiza a proeza de tornar um roteiro altamente marcado por sua estruturação de elementos (a morte do avô no exato intervalo de tempo entre o telefonema do pai e a chegada em São Paulo; a relação do menino com a comunidade; o personagem comunista de Caio Blat e sua relação com o pai de Mauro...), prioritariamente um fluxo sensível de imagens, no qual somos levados a embarcar na percepção de mundo de uma criança. Sedutor, envolvente e apaixonante, o filme destaca-se no cenário de um cinema brasileiro demasiadamente preocupado com exageros formais estéreis, discursos que falam mais alto do que tudo ou narrativas vazias de alma e de corpo, indo juntar-se àqueles poucos que detém o domínio cinemático (e cinematográfico) de um mundo ficcional em contato direto com a experiência do real.


Tatiana Monassa

 

 






O mundo reflete-se sobre o olhar sensível de Mauro.


O preciso jogo entre dentro e fora de quadro e entre
figura e fundo constrói sentidos e coloca a sensibilidade do menino em primeiro plano, por sobre o cenário histórico.