MARY
Abel Ferrara, Mary, Itália/EUA/França, 2005

Abel Ferrara é um cineasta que pode pegar absolutamente qualquer filme para fazer e, por mais que a temática ou a formatação do projeto pareçam avessos, ele irá fazer algo que diz unicamente respeito a suas preocupações, a seu modo de compor imagens, à particular sensibilidade desgarrada que povoa todos os seus filmes. Desgarrada e intransigente: cada filme de Abel Ferrara é um jato de sentimentos excessivos, caminhadas para o abismo, desorientações avassaladoras, entregas a movimentos destruidores, auto-implosões. E Mary não é diferente. Dessa vez, o material de base não vem de uma ficção científica, como New Rose Hotel ou sua versão para Invasores de Corpos, do filme de horror, como Sedução e Vingança ou The Addiction, nem do policial, gênero em que fez possivelmente seus filmes mais conhecidos, Vício Frenético e O Rei de Nova York. É um filme que se coloca a princípio na seara do cinema "de arte", seja a partir do casting de Juliette Binoche, seja a partir da relação que a trama estabelece com a questão dos evangelhos renegados do Novo Testamento e com a conhecida estratégia do "filme dentro do filme". Mas, no fundo, pouco importa o material de base, a gente sempre sabe que Abel Ferrara há de encontrar um meio de retorcer toda matéria prima e conformá-la à esbaforida busca por redenção num mundo que parece fechar todas as portas a ela. Dupla intransigência de Ferrara: tanto as imagens que cria são tortuosas, desequilibradas e desarmônicas, quanto sua pesquisa pela fé parece caduca, anacrônica, fora de lugar numa época em que os males da alma se resolvem com remedinhos. Essa intransigência, somada ao talento ímpar de cineasta, fazem de sua obra algo nada menos que genial.

Mary funciona basicamente em três eixos, três buscas diferentes, que forçosamente se espelham e se complementam ao fim das contas. Uma é a da atriz Marie, que interpretou Maria Madalena num filme sobre a vida de Jesus Cristo e se perturbou tanto no com a personagem que depois da filmagem decidiu largar tudo e viver em Jerusalém. A segunda é do apresentador de televisão Theodore, que tem um programa em rede nacional sobre a vida do Cristo, está prestes a ter um filho mas é omisso com sua esposa, preferindo os braços de uma amante. O terceiro eixo funciona em torno de Tony, um ator/cineasta que dirigiu um filme sobre a vida de Jesus e, no momento do lançamento, enfrenta a resistência de grupos religiosos que irão se manifestar na estréia do filme. Os três, ao longo do filme, dão respostas diferentes a seus desafios: Marie se entrega completamente à vida do amor divino, Ted busca a salvação mas não consegue achar as energias para voltar a crer em alguma coisa, ao passo que Tony, mesmo coberto de bons motivos, apresenta tanta arrogância e auto-suficiência em relação àqueles que o rodeiam que sua necessidade de se expressar acaba se confundindo com o oposto, com um desejo de agredir por coação. Três momentos, pois, três posições em relação à abertura a Deus ou ao mundo: uma entrega imediata, um processo que conduz à entrega, um fechamento total sobre si mesmo. Nessa negociação com o sentido e com o sagrado é onde Abel Ferrara inscreve o movimento decisivo de seu filme.

Se 'R Xmas/Gangues do Gueto, seu longa-metragem anterior, mantinha uma unidade espacial e temporal bem precisa, em Mary Ferrara reencontra o curto-circuito entre espaços desconectados (Jerusalém de dia, Nova York de noite), entre trajetórias desencontradas (já que os momentos de cada um em sua busca são necessariamente diferentes) e tempos indefinidos (pois o que importa é o tempo interior ao drama dos personagens) que faziam a beleza de New Rose Hotel/Enigma do Poder. Da mesma forma, vemos várias intervenções no ritmo natural de registro da natureza: câmera lenta, fusões persistentes de duas ou três imagens, entrada violenta da música. Todas as cenas de perturbação física, de ação propriamente dita – o ataque no carro, a confusão na estréia do filme – são filmadas buscando não a intensidade dos movimentos dos corpos, mas as sensações mentais. Daí a forte impressão de um filme que se desenvolve como um casulo do espírito, onde as ações e as circunvoluções da narrativas são apreendidas principalmente pelas três trajetórias dos personagens que se afrontam com suas buscas. Confusão, dúvida: Mary, como os grandes filmes de Ferrara, inscreve a desorientação no seio mesmo do filme, tirando as âncoras narrativas mais precisas e nos fazendo flutuar num amálgama de emoções não filtradas, não suturadas por um sentido geral do filme. O ponto-de-vista da câmera cola-se à experiência de seus personagens e, como eles, não encontra um porto seguro para aportar. Ao contrário, a narração é sempre de uma fluidez angustiante, onde a história parece evoluir à revelia dos acontecimentos e dos personagens, e nós como espectadores ficamos cara a cara com as inquietações morais de cada um dos protagonistas.

Mas a inquietação masculina é diferente da feminina. Mary reedita em vários aspectos Black-Out ao colocar a mulher como figura idealizada pertencendo ao domínio da perfeição e o homem sentindo-se como uma figura prostituída, não-merecedora de contato com aquela que é evidentemente portadora de bondade. Assim, Ferrara surpreendentemente inverte a relação da tradição bíblica. Pois se o filme começa com a cena do Noli me tangere entre Maria Madalena e o Jesus ressuscitado, a trama contemporânea do filme se dará no mesmo sentido mas em pólos opostos, entre Theodore, que busca a conversão e a fuga do ambiente mundano de corrupção profissional e familiar em que vive, e Marie, que já abdicou de sua vida pregressa e seve de conselheira e guia do apresentador de televisão depois do acidentado parto de sua mulher. Enquanto Tony está apressado demais para se deixar contaminar pela bondade de sua atriz – afinal, há um avião a tomar –, Theodore busca o contato, ainda que ele venha sem materialidade, como que dizendo também "noli me tangere", entre aparelhos celulares situados em dois cantos diferentes do mundo. Mary é menos uma releitura do mito bíblico com a adição dos evangelhos renegados do que a transformação, no mundo de hoje, de Maria Madalena em Jesus e vice-versa, da prostituição como pertencendo ao universo masculino e a sabedoria da paz como própria do âmbito feminino.

É uma partilha que, em todo caso, não é estanque. Entre os quatro entrevistados que vemos no programa de Theodore, quatro estudiosos de fato da exegese bíblica, questiona-se a partilha dos sexos, o preconceito e a inveja de Pedro em relação a Maria pelo fato de ser mulher, e num dado momento há um belo comentário sobre a possível comunicabilidade entre os sexos, o possível equilíbrio vindo da incorporação do masculino no feminino e do feminino no masculino. Seria essa a utopia do cinema de Abel Ferrara, uma ligação que se dá na harmonização dos opostos? Em todo caso, é o caminho de Theodore ao final, que anuncia sua conversão à esposa, tendo finalmente encontrado a energia para desafiar o árido destino que ele vê a sua frente. Um "ser pregado à cruz", como ele responde, indagando, a Tony, seu entrevistado, diante das câmeras.

Em outro dos episódios, um estudioso fala entre a vida casta e o convívio entre os homens, e fala da importância das missões, do contato com outros seres humanos sendo nada mais do que constantes contatos com Deus. A menção evoca o cinema de Rossellini em sua apreensão material da religião. Nem tanto por causa da temática, mas acima de tudo porque em Mary Abel Ferrara trata da questão mais pregnante do cinema do autor de Stromboli e Europa 51, a questão do fechamento sobre si que o mundo força e a possibilidade da abertura ao mundo que é ao mesmo tempo a salvação e o mais perigoso desafio. É a busca de Theodore que tenta reencontrar sua razão de viver. É a busca de Marie pela paz de espírito e pela verdade por trás de Maria Madalena. É a busca desorientada de Tony em seu desejo meio sensacionalista e megalômano mas sincero de comunicação. Mas é acima de tudo a busca de Abel Ferrara por uma imagem que, longe da palidez estéril da beleza emperequetada que povoa muito do cinema que vemos por aí, transmita em sua exata medida toda a beleza tenebrosa da confusão do mundo e de uma purgação que não signifique clausura, mas aceitação. O que mais dizer? Mary está à altura do projeto.

Ruy Gardnier

 

 





Tony Childress (Matthew Modine)...


e Marie Palesi (Juliette Binoche): dois momentos da busca
(Mary de Abel Ferrara).