Começar
um filme com um close de sua protagonista, uma menina
de 12 anos, morta. Depois de alguns segundos, inverter
a ordem do tempo, retrocedê-lo, e então o sangue que
escorria de seu nariz vai se recolhendo, o olhar fixo
e opaco readquire brilho, o corpo inteiro, antes estático,
volta a ter movimento, até que esta menina esteja viva
novamente. Nessa operação uma declaração imediata das
regras do jogo: não apenas o anúncio do artifício, a
possibilidade de uma ressurreição como mais uma das
manifestações desse mundo de fantasias que se abre desde
a seqüência de créditos, mas a apresentação de um controle,
literal nesta primeira cena, que é capaz de voltar o
tempo, e que será capaz também de muitas outras manifestações
ao longo de todo o trajeto. Guillermo del Toro se coloca,
desde o começo, como criador e regente das situações
que El Laberinto del Fauno nos apresenta, e nisso
não há apenas a reiteração de uma idéia clássica de
autoria. Reviver Ofelia no primeiro plano do filme é
quase uma afronta àqueles que a assassinaram, é como
dizer que não se terá pudor nenhum em usar todas as
prerrogativas da autoria sempre que os rumos seguidos
forem diferentes daqueles nos quais acredita o diretor.
Porque tão evidente quanto a opção de del Toro pelo
controle absoluto é a certeza de que há, do outro lado,
uma força tão poderosa quanto a sua.
Explicando organizadamente aquilo que a aventura de
Ofelia foi atropelando sem muita cerimônia, a narração
nos diz que houve mesmo um tempo em que a natureza que
conhecemos e na qual vivemos hoje convivia em harmonia
com sua porção fantástica, a qual pertencem todos os
bichos estranhos e lugares secretos que a menina vai
conhecendo. Esse equilíbrio foi quebrado pelo recrudescimento
dos espíritos daqueles que habitavam a parte real da
natureza, delegando a fantasia à uma posição de exceção,
marginal, e o que era próximo, co-irmão, se distanciou
de maneira definitiva. O que moverá a mise-en-scéne
de El Laberinto del Fauno será a reunião dessas
duas esferas, não apenas para restabelecer um contato
histórico original, mas como prova de que realidade
e fantasia se saem muito melhor quando juntas, que o
diálogo entre as instâncias oferece efetivamente novas
alternativas de experiência da vida, sem as quais o
homem vinha sobrevivendo muito mal. Desse modo, um plano-seqüência
pode começar mostrando mãe e filha placidamente conversando
com o bebê que a primeira espera, para então a câmera
se aproximar da barriga da mulher, invadi-la, atingir
o feto, registrar suas reações à história que lhe contam,
e mergulhar mais fundo nesse ambiente intra-uterino
até chegar finalmente num universo subterrâneo onde
vivem criaturas das mais diversas possíveis, cenário
típico da fabulação que as personagens estão formulando,
para, num novo giro, retornar ao quarto inicial, com
a mãe terminando o conto e ordenando que sua filha durma.
Tudo voltou a ser, de fato, parte de uma mesma encenação,
que é a da própria vida e de suas múltiplas faces.
Desse ponto de vista, a vilania do Capitão Vidal, padrasto
de Ofelia e chefe fascista que luta contra a resistência
revolucionária, seria descartada de imediato como participante
dessa nova mise-en-scéne total, pois nem real nem fantástica,
apenas ruído indesejável na recuperação da harmonia
perdida. No entanto, se provocara em El Laberinto
del Fauno, desde aquele primeiro plano da menina,
a necessidade de mostrar suas armas de combate, é porque
o Capitão encampa poderes muito maiores do que o simples
antagonismo necessário num conto de fadas como esse.
Numa cena corriqueira, enquanto se barbeia diante de
um espelho, del Toro dará dimensão muito mais trágica
à essa figura. Raspando o lado direito do rosto, o Capitão
será mostrado de frente, em toda sua rigidez de postura
e seriedade. Numa quebra de eixo absoluta, a câmera
o circundará e passará a filmar seu reflexo no espelho,
onde agora teremos a impressão que é o lado esquerdo
de seu rosto que estava sendo barbeado. Uma operação
simples, e a magia dos lados de rosto trocados anuncia
que também Vidal tem participação na fantasia.
É o caráter dessa participação que surpreende. Abraçado
pelo filme como a naturalização de uma realidade oficial
tornada paralela pela descrença, o universo fantástico
se mostra sempre muito disposto a compreensão, como
se ele também ressentisse os anos de separação. Lugar
da aventura, da adrenalina, da emoção, que mesmo em
momentos de perigo real (Ofelia sendo perseguida por
um monstro) não consegue disfarçar a vontade de contato
com o mundo de cima (Ofelia é perseguida por ser humana
demais, e não resistir aos doces proibidos; ao mesmo
tempo que o monstro que a persegue, apesar da aparência
bizarra, não prescinde de características humanas, e
mesmo que os tenha situados nas mãos, ainda precisa
de olhos como os nossos para enxergar), esse universo
aparece contaminado por uma vontade de vida que torna
seu apelo junto à menina protagonista – e a quem acompanha
sua trajetória – irresistível. Ao mesmo tempo o espaço
do estranhamento, do mal estar, da divisão, não estão
em outro lugar que não no Capitão Vidal. Tudo aquilo
que servira uma vez para deslocar a fantasia da vivência
cotidiana, no fundo apenas uma desculpa para que ela
não fosse compreendida, aparece como condição fundamental
da existência do núcleo guiado pelo vilão. Sua vontade
é a morte, e tudo o que não havia de incômodo no elenco
de monstrinhos bizarros que El Laberinto del Fauno
elencava estará integralmente presente em todas as execuções
e torturas promovidas pelo Capitão. Aqui, não só uma
espécie de fantasia torta, que transforma a morte, um
evento natural, num espetáculo de exceção, anti-natural,
porque violento e estúpido, como também um super-realismo
de registro, com tiros e feridas sendo filmados sem
meios-termos, transformarão o próprio Capitão Vidal
também num promotor dessa conjugação de encenações.
Assim, o que há de político em El Laberinto del Fauno
talvez não seja o contexto histórico em que estejam
envolvidos seus personagens, a ditadura fascista espanhola
que em 1944 chegava a um momento de crise, mas o fato
de que uma parte dessa história tenha sido recortada
e colocada em ação no isolamento de uma região montanhosa,
onde as notícias do fim da guerra ainda não chegaram
e onde, portanto, tudo acontece como se o país inteiro
ainda estivesse em conflito. Guillermo del Toro vê no
fascismo de Vidal, além da significação já estabelecida,
uma dimensão transcendente identificada com a própria
idéia do mal, que terá recorrências ao logo dos tempos
sempre que suas características se reagruparem e encontrarem
porta-voz disposto a suportá-las. Não meramente uma
questão de maniqueísmos, e para isso talvez sirva a
outra grande figura masculina (ou algo próximo disso)
do filme, o Fauno do título. Esse bicho estranho, que
diz já ter sido chamado por vários nomes distintos,
mas que é na verdade a soma de todos eles, todos esses
elementos naturais, algo muito próximo da representação
figurativa da intangibilidade da vida, se apresenta
sempre de maneira muito dúbia, conduzindo Ofelia através
de tarefas que a levariam até o fim deste labirinto
mágico com uma postura às vezes irritada, francamente
contrária à menina, outras vezes doce, educado, e nessa
variação de humores sua personalidade vai se aproximando
à de um lobo mal, que arma uma carapuça apenas para
enganar a vítima. Pois quando no final descobrirmos
que o Fauno era, na verdade, um enviado do próprio pai
falecido de Ofelia, agora um rei do universo fantástico,
sua porção generosa e boa será restabelecida e teremos
uma impressão muito mais completa de seu caráter. Ora,
que o Fauno seja o membro mais destacado da fantasia
e que se mostre tão ondular, tão pouco afeito a considerações
absolutas de sua personalidade, apenas aumenta a certeza
de que, no outro lado, com Capitão Vidal e toda sua
“realidade”, o maniqueísmo não é apenas uma questão
de pressa ou grosseria de um roteirista, ele de fato
existe, e se confirma no mal incorporado pelo vilão.
Contra ele é possível lutar, mas considerar em El
Laberinto del Fauno o automatismo de uma vitória
do bem sobre o mal seria, aí sim, escorregar naquela
pressa e grosseria supostas. O Capitão irá atirar em
Ofelia pelas costas, e a menina cairá morta. As forças
em jogo são maiores que a possibilidade do diretor dominá-las,
e não havia como impedir o assassinato, frustrar aquilo
que era inevitável desde o início (a menina estava morta
antes mesmo do filme começar). Cabe à Guillermo del
Toro usar suas armas naquilo sobre o qual possa exercer
algum poder, a encenação e a narrativa, e forjar um
final de esperança que não esqueça nunca que é somente
isso, vontade de alguma coisa. Aqui El Laberinto
del Fauno se aproxima muito de A.I. – Inteligência
Artificial, no que os dois filmes acompanham a capitulação
de seus protagonistas mirins com uma compaixão dolorida,
que tenta dar algum conforto ao fechamento de seus caminhos,
mas onde o peso da fatalidade anterior não se apaga
nunca (e nem é vontade dos diretores que se apague).
Se o reencontro carinhoso com sua mãe adotiva era dado
à David pela capacidade tecnológica de alienígenas,
um encontro ilusório, mas que bastava como alimento
definitivo ao sonho de amor do menino, quando Ofelia
também se reencontrar com seus pais, agora já como rei
e rainha, e ela como princesa do mundo da fantasia,
haverá menos ilusão nisso. As mise-en-scénes particulares
já haviam sido reunidas por Guillermo del Toro, e o
registro onírico deste final pode, muito bem, ser vivo
e real. Mas não há como esquecer do rosto de Ofelia
morta, com o sangue a escorrer pelo nariz. Como no truque
que ela própria usou para comprovar sua existência no
mundo, deixando pequenos sinais de sua passagem, visíveis
apenas para aqueles que querem e sabem vê-los, del Toro
não esconde que só existe o grande baile final, colorido
e festivo, porque ele quis ver assim, porque
sabe ver cor na penumbra da morte, da violência
e da dor. Sim, porque estas três últimas provaram ter
forças para lutar em igualdade com todos estes que querem
e sabem ver os sinais da fantasia espalhados por aí.
Ficam assim postos lado a lado, mas sem relativismos
ou falsos panos quentes, os sentimentos que se debateram
por todo El Laberinto del Fauno. Um grande filme
encantado sobre o desencanto.
Rodrigo de Oliveira
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