EL LABERINTO DEL FAUNO
Guillermo del Toro, El Laberinto del Fauno, Espanha/México, 2006
 

Começar um filme com um close de sua protagonista, uma menina de 12 anos, morta. Depois de alguns segundos, inverter a ordem do tempo, retrocedê-lo, e então o sangue que escorria de seu nariz vai se recolhendo, o olhar fixo e opaco readquire brilho, o corpo inteiro, antes estático, volta a ter movimento, até que esta menina esteja viva novamente. Nessa operação uma declaração imediata das regras do jogo: não apenas o anúncio do artifício, a possibilidade de uma ressurreição como mais uma das manifestações desse mundo de fantasias que se abre desde a seqüência de créditos, mas a apresentação de um controle, literal nesta primeira cena, que é capaz de voltar o tempo, e que será capaz também de muitas outras manifestações ao longo de todo o trajeto. Guillermo del Toro se coloca, desde o começo, como criador e regente das situações que El Laberinto del Fauno nos apresenta, e nisso não há apenas a reiteração de uma idéia clássica de autoria. Reviver Ofelia no primeiro plano do filme é quase uma afronta àqueles que a assassinaram, é como dizer que não se terá pudor nenhum em usar todas as prerrogativas da autoria sempre que os rumos seguidos forem diferentes daqueles nos quais acredita o diretor. Porque tão evidente quanto a opção de del Toro pelo controle absoluto é a certeza de que há, do outro lado, uma força tão poderosa quanto a sua.

Explicando organizadamente aquilo que a aventura de Ofelia foi atropelando sem muita cerimônia, a narração nos diz que houve mesmo um tempo em que a natureza que conhecemos e na qual vivemos hoje convivia em harmonia com sua porção fantástica, a qual pertencem todos os bichos estranhos e lugares secretos que a menina vai conhecendo. Esse equilíbrio foi quebrado pelo recrudescimento dos espíritos daqueles que habitavam a parte real da natureza, delegando a fantasia à uma posição de exceção, marginal, e o que era próximo, co-irmão, se distanciou de maneira definitiva. O que moverá a mise-en-scéne de El Laberinto del Fauno será a reunião dessas duas esferas, não apenas para restabelecer um contato histórico original, mas como prova de que realidade e fantasia se saem muito melhor quando juntas, que o diálogo entre as instâncias oferece efetivamente novas alternativas de experiência da vida, sem as quais o homem vinha sobrevivendo muito mal. Desse modo, um plano-seqüência pode começar mostrando mãe e filha placidamente conversando com o bebê que a primeira espera, para então a câmera se aproximar da barriga da mulher, invadi-la, atingir o feto, registrar suas reações à história que lhe contam, e mergulhar mais fundo nesse ambiente intra-uterino até chegar finalmente num universo subterrâneo onde vivem criaturas das mais diversas possíveis, cenário típico da fabulação que as personagens estão formulando, para, num novo giro, retornar ao quarto inicial, com a mãe terminando o conto e ordenando que sua filha durma. Tudo voltou a ser, de fato, parte de uma mesma encenação, que é a da própria vida e de suas múltiplas faces.

Desse ponto de vista, a vilania do Capitão Vidal, padrasto de Ofelia e chefe fascista que luta contra a resistência revolucionária, seria descartada de imediato como participante dessa nova mise-en-scéne total, pois nem real nem fantástica, apenas ruído indesejável na recuperação da harmonia perdida. No entanto, se provocara em El Laberinto del Fauno, desde aquele primeiro plano da menina, a necessidade de mostrar suas armas de combate, é porque o Capitão encampa poderes muito maiores do que o simples antagonismo necessário num conto de fadas como esse. Numa cena corriqueira, enquanto se barbeia diante de um espelho, del Toro dará dimensão muito mais trágica à essa figura. Raspando o lado direito do rosto, o Capitão será mostrado de frente, em toda sua rigidez de postura e seriedade. Numa quebra de eixo absoluta, a câmera o circundará e passará a filmar seu reflexo no espelho, onde agora teremos a impressão que é o lado esquerdo de seu rosto que estava sendo barbeado. Uma operação simples, e a magia dos lados de rosto trocados anuncia que também Vidal tem participação na fantasia.

É o caráter dessa participação que surpreende. Abraçado pelo filme como a naturalização de uma realidade oficial tornada paralela pela descrença, o universo fantástico se mostra sempre muito disposto a compreensão, como se ele também ressentisse os anos de separação. Lugar da aventura, da adrenalina, da emoção, que mesmo em momentos de perigo real (Ofelia sendo perseguida por um monstro) não consegue disfarçar a vontade de contato com o mundo de cima (Ofelia é perseguida por ser humana demais, e não resistir aos doces proibidos; ao mesmo tempo que o monstro que a persegue, apesar da aparência bizarra, não prescinde de características humanas, e mesmo que os tenha situados nas mãos, ainda precisa de olhos como os nossos para enxergar), esse universo aparece contaminado por uma vontade de vida que torna seu apelo junto à menina protagonista – e a quem acompanha sua trajetória – irresistível. Ao mesmo tempo o espaço do estranhamento, do mal estar, da divisão, não estão em outro lugar que não no Capitão Vidal. Tudo aquilo que servira uma vez para deslocar a fantasia da vivência cotidiana, no fundo apenas uma desculpa para que ela não fosse compreendida, aparece como condição fundamental da existência do núcleo guiado pelo vilão. Sua vontade é a morte, e tudo o que não havia de incômodo no elenco de monstrinhos bizarros que El Laberinto del Fauno elencava estará integralmente presente em todas as execuções e torturas promovidas pelo Capitão. Aqui, não só uma espécie de fantasia torta, que transforma a morte, um evento natural, num espetáculo de exceção, anti-natural, porque violento e estúpido, como também um super-realismo de registro, com tiros e feridas sendo filmados sem meios-termos, transformarão o próprio Capitão Vidal também num promotor dessa conjugação de encenações.

Assim, o que há de político em El Laberinto del Fauno talvez não seja o contexto histórico em que estejam envolvidos seus personagens, a ditadura fascista espanhola que em 1944 chegava a um momento de crise, mas o fato de que uma parte dessa história tenha sido recortada e colocada em ação no isolamento de uma região montanhosa, onde as notícias do fim da guerra ainda não chegaram e onde, portanto, tudo acontece como se o país inteiro ainda estivesse em conflito. Guillermo del Toro vê no fascismo de Vidal, além da significação já estabelecida, uma dimensão transcendente identificada com a própria idéia do mal, que terá recorrências ao logo dos tempos sempre que suas características se reagruparem e encontrarem porta-voz disposto a suportá-las. Não meramente uma questão de maniqueísmos, e para isso talvez sirva a outra grande figura masculina (ou algo próximo disso) do filme, o Fauno do título. Esse bicho estranho, que diz já ter sido chamado por vários nomes distintos, mas que é na verdade a soma de todos eles, todos esses elementos naturais, algo muito próximo da representação figurativa da intangibilidade da vida, se apresenta sempre de maneira muito dúbia, conduzindo Ofelia através de tarefas que a levariam até o fim deste labirinto mágico com uma postura às vezes irritada, francamente contrária à menina, outras vezes doce, educado, e nessa variação de humores sua personalidade vai se aproximando à de um lobo mal, que arma uma carapuça apenas para enganar a vítima. Pois quando no final descobrirmos que o Fauno era, na verdade, um enviado do próprio pai falecido de Ofelia, agora um rei do universo fantástico, sua porção generosa e boa será restabelecida e teremos uma impressão muito mais completa de seu caráter. Ora, que o Fauno seja o membro mais destacado da fantasia e que se mostre tão ondular, tão pouco afeito a considerações absolutas de sua personalidade, apenas aumenta a certeza de que, no outro lado, com Capitão Vidal e toda sua “realidade”, o maniqueísmo não é apenas uma questão de pressa ou grosseria de um roteirista, ele de fato existe, e se confirma no mal incorporado pelo vilão.

Contra ele é possível lutar, mas considerar em El Laberinto del Fauno o automatismo de uma vitória do bem sobre o mal seria, aí sim, escorregar naquela pressa e grosseria supostas. O Capitão irá atirar em Ofelia pelas costas, e a menina cairá morta. As forças em jogo são maiores que a possibilidade do diretor dominá-las, e não havia como impedir o assassinato, frustrar aquilo que era inevitável desde o início (a menina estava morta antes mesmo do filme começar). Cabe à Guillermo del Toro usar suas armas naquilo sobre o qual possa exercer algum poder, a encenação e a narrativa, e forjar um final de esperança que não esqueça nunca que é somente isso, vontade de alguma coisa. Aqui El Laberinto del Fauno se aproxima muito de A.I. – Inteligência Artificial, no que os dois filmes acompanham a capitulação de seus protagonistas mirins com uma compaixão dolorida, que tenta dar algum conforto ao fechamento de seus caminhos, mas onde o peso da fatalidade anterior não se apaga nunca (e nem é vontade dos diretores que se apague). Se o reencontro carinhoso com sua mãe adotiva era dado à David pela capacidade tecnológica de alienígenas, um encontro ilusório, mas que bastava como alimento definitivo ao sonho de amor do menino, quando Ofelia também se reencontrar com seus pais, agora já como rei e rainha, e ela como princesa do mundo da fantasia, haverá menos ilusão nisso. As mise-en-scénes particulares já haviam sido reunidas por Guillermo del Toro, e o registro onírico deste final pode, muito bem, ser vivo e real. Mas não há como esquecer do rosto de Ofelia morta, com o sangue a escorrer pelo nariz. Como no truque que ela própria usou para comprovar sua existência no mundo, deixando pequenos sinais de sua passagem, visíveis apenas para aqueles que querem e sabem vê-los, del Toro não esconde que só existe o grande baile final, colorido e festivo, porque ele quis ver assim, porque sabe ver cor na penumbra da morte, da violência e da dor. Sim, porque estas três últimas provaram ter forças para lutar em igualdade com todos estes que querem e sabem ver os sinais da fantasia espalhados por aí. Ficam assim postos lado a lado, mas sem relativismos ou falsos panos quentes, os sentimentos que se debateram por todo El Laberinto del Fauno. Um grande filme encantado sobre o desencanto.


Rodrigo de Oliveira