Deixa o vento roncar! Escarra, fogo! Jorra, chuva! Os trovões, o vento, o fogo, minhas filhas não são. Não vos acuso de ingratos, elementos. Nunca um reino vos dei, nem vos chamei sequer de filhos. Não me deveis nenhuma obediência. Que caia, pois, vosso prazer horrível. Aqui me encontro, vosso escravo, um velho pobre, fraco, sem forças, desprezado. No entanto, declaro-vos ministros servis, pois com duas filhas perniciosas, travais vossas batalhas de alta origem contra uma fronte tão encanecida e tão velha como esta. Oh! Que vergonha! – Rei Lear, de William Shakespeare.
“O peso da coroa”, assim Frank Costello fala sobre o poder que detém nas mãos para Billy Costigan, que lhe responde: “eu poderia ser você, mas não quero ser você”. A seqüência de Os Infiltrados (Os Defuntos ou Os Falecidos no original) homenageia a de Badaladas à Meia-Noite, de Orson Welles, em que Henrique IV conta para seu filho, futuro Henrique V, a respeito da maldição da coroa, que suga os governantes que a usam. Depois de Gangues de Nova York e de O Aviador, enormes afrescos históricos em que a vida dos protagonistas se confundem com a dos EUA, Martin Scorsese muda de registro e retorna ao cinema de gênero que lhe trouxe a glória (crime, máfia e violência urbana), mas a fim de continuar investigando as entranhas do país, como nos filmes precedentes. Se em Gangues de Nova York o cineasta apresenta o nascimento da nação e, em O Aviador, o ápice da América ousada e pioneira, em Os Infiltrados chega a vez do fim, quando os personagens heróicos, maiores que a vida, sonhadores loucos que, por bem ou por mal, impõem-se e edificam a sociedade, saem de cena para dar lugar aos “ratos”, que nada fazem além de se contentarem com as sobras.
Em Os Infiltrados, o roteirista William Monahan se baseia no sucesso de Hong Kong Infernal Affairs, dirigido por Andrew Lau e Alan Mak e escrito por este e Felix Chong. Há diferenças no enredo: transporta-se a ação para Boston, as personagens femininas unem-se em apenas uma – a psicanalista Madolyn, com a qual se ironiza qualquer motivação psicológica dentro do filme, pois os irlandeses, segundo Freud, são imunes à psicanálise –, enquanto a troca de informantes entre a polícia e a máfia local, bem como o jogo de gato e rato que surge em conseqüência, permanecem idênticos. Contudo, a principal mudança trazida por Scorsese e Monahan está no personagem de Jack Nicholson que, se em Infernal Affairs, era mero coadjuvante para a história centrada em Tony Leung e Andy Lau, em Os Infiltrados, ao contrário, eleva-se sobre todos os demais, e permite àqueles que enxergam para além das superficialidades, a verdadeira adaptação a que cineasta e autor se propõem: Rei Lear. A dica, aliás, aparece na própria narrativa do filme, quando, em outra grosseria física e verbal, Dignam imita flatulência e diz para Costigan citar logo Shakespeare. Assim, Frank Costello encarna o Rei Lear scorseseano (e vale lembrar que o diretor já utilizara Hamlet em Gangues de Nova York – o filho que, atormentado pelo fantasma do pai, deve vingar sua morte e assassinar o padrasto que usurpou o trono), cansado do poder, incapaz de confiar em alguém – pois qualquer um pode traí-lo, exceto French, fiel escudeiro, junção do Bobo com Kent –, mas que não tem como transmitir o reino aos “filhos”, já que não passam de “ratos”. Não por acaso, se o velho monarca de Shakespeare possui três filhas – Regan, Goneril e Cordélia –, o desiludido, amargo e cínico mafioso de Scorsese conta com somente dois herdeiros, Costigan e Sullivan (que, ao celular, sempre o chama de “papai”). Onde está, pois, Cordélia, a caçula que de fato o ama, compreende-o e que virá salvá-lo, porque feita do mesmo sangue nobre do patriarca? Em Os Infiltrados, ela não existe.
Frank Costello é o único personagem de Os Infiltrados que, embora parcialmente, mantém a tradição dos gloriosos derrotados de Scorsese, sobretudo de Bill the Butcher em Gangues de Nova York e de Howard Hughes em O Aviador, filmes nos quais os anti-heróis se amalgamam à própria História da América – conquanto em geral associado a Caminhos Perigosos, Os Bons Companheiros e Cassino, Os Infiltrados, na verdade, integra a nova fase da carreira do diretor, que não apenas marca, esteticamente, a desimportância dos conflitos dramáticos pessoais, o esvaziamento e a desmotivação psicológica dos atos que ocorrem ao longo da narrativa, o acúmulo de eventos que não se ligam de forma consecutiva e as linhas temporais que se comprimem cada vez mais urgentes, como também trabalha com o conceito de “contrabandista”, ou seja, a suposta anulação da escrita inconfundível do cineasta que, ao invés de se submeter, usa o esquema imposto pelos estúdios para promovê-la. Logo na apresentação de Costello, a fala que caberia igualmente a Bill the Butcher ou a Howard Hughes (o meio não o determina, ele determina o meio), subvertendo e desmentindo as imagens de arquivo que abrem o filme, pois não servem para situar o protagonista quanto às forças sócio-ambientes que agem sobre ele. Jack Nicholson aproveita o poder desmedido do mafioso e o compõe à beira da caricatura, exagerando-o ao máximo: traja roupas de pele de leopardo e ternos multicoloridos (ao contrário da cinzenta e escura Boston, onde todos se vestem iguais), coloca pênis de plástico e geme em cinema pornô, sacaneia padres e freiras, assedia garotas, solta engraçadíssimos aforismos sobre a vida e a morte, participa de orgias encenadas tais quais nas piores (e, assim, melhores) obras cafajestes. Como Bill the Butcher – que, apesar de combater a chegada dos imigrantes e de virar as costas para o futuro a que não pertence, morre como verdadeiro americano – e Howard Hughes – que, a despeito da compulsão obsessiva por germes que o isolam, bate recordes de velocidade, produz os filmes mais caros de Hollywood, envolve-se com as maiores estrelas da época e enfrenta o controle comercial da Pan Am –, Frank Costello também representa o “pai fundador” marginalizado de Scorsese, grandioso e solitário em seu trono. Falta ao chefe do crime, no entanto, a dignidade e a nobreza que sobram ao açougueiro e ao aviador, mesmo quando o primeiro apedreja os irlandeses que desembarcam no porto, ou o segundo urina nas garrafas de leite vazias, visto que o próprio mafioso se revela informante do FBI: como se, por lidar a tanto tempo com os “ratos”, ele já estivesse contaminado e precisasse enganá-los para sobreviver.
O tema dos “ratos” que se apoderam do reino já aparece em Gangues de Nova York. Amsterdam Vallon se infiltra entre os Nativistas para assassinar Bill e vingar a morte do pai – descoberto, é mantido vivo para, primeiro, carregar a desonra da traição e, segundo, a fim de se redimir desafiando o adversário segundo as leis ancestrais de combate (o pastor e o açougueiro, embora em lados opostos, admiravam-se mutuamente, pois simbolizam as forças sociais que a cidade esqueceu para se reerguer). Amsterdam ainda se encontra dividido entre dois mundo, da Nova York brutal de Five Points, onde vale o código das gangues que tomam as ruas, e do novo país que surge a partir da aliança do capital financeiro, tanto com a política corrupta de Tammany, quanto com a ordem militar imposta por Lincoln. Como Frank Costello, Bill the Butcher não tem filhos, e adota o jovem irlandês porque reconhece que a civilização da qual faz parte está condenada a desaparecer. Enfrentar os Dead Rabbits pela última vez significa retomar os dias de glória perdidos e voltar o conflito hamletiano a seu favor, posto que a batalha decisiva se dá à moda antiga, enquanto as ruas literalmente desmoronam ao redor, tomadas pelos soldados da União que sufocam e massacram a turba que se sublevou. Costello, no entanto, não possui a mesma sorte, já que Costigan e Sullivan nunca conheceram qualquer ética ou moral mais elevadas – e elas existem até no crime –, a não ser a busca efêmera por satisfações egoístas, imediatas e mesquinhas (assim que entra para a polícia, Sullivan compra apartamento com bela vista para a catedral de Boston – Costigan, por sua vez, preocupa-se somente em recuperar a identidade apagada). Para identificar o período de extremo individualismo que devora os herdeiros do mafioso, Scorsese e Monahan se valem da escorchante onipresença tecnológica em Os Infiltrados: telefones celulares que informam, mas através dos quais os personagens não conversam; computadores que omitem, escondem e deletam, e jamais revelam; chips negociados com os chineses que não passam de falsificações.
Por que Costigan é escolhido para se infiltrar na gangue de Costello, e não Sullivan? Sabe-se do tio criminoso do primeiro, que conviveu na juventude com o submundo de Boston, conhecendo assim a linguagem das ruas. Mas e o segundo, que cresceu nos mesmos bairros, sob a proteção do mafioso, e que apenas encarna os mais diversos papéis de acordo com a necessidade? Scorsese ironiza a suposta importância do passado quando o chefe de polícia escolhe Sullivan, pela ficha impecável que possui, para procurar o informante de Costello dentro da corporação (idêntica ao do próprio comandante, que não estaria jogando golfe se sua conduta fosse limpa durante toda a carreira). Como os replicantes de Blade Runner, O Caçador de Andróides, de Ridley Scott, os “ratos” de Os Infiltrados não têm lembranças ou memórias, visto que já estão mortos, “vivendo” o momento presente ao sabor das circunstâncias. Ao contrário de Amsterdam em Gangues de Nova York, que atravessa legítimo dilema de consciência ao se abrigar sob a asa do dragão para matá-lo e vingar o pastor Vallon – personificando no nível familiar o choque entre as Américas antiga e moderna que explode nos Draft Riots –, Billy Costigan enxerga o pai honesto e trabalhador, que jamais se curvou a Costello, e a mãe que padece e finalmente morre no hospital enquanto vozes distantes, perdidas no inconsciente. Evocações de outra vida, quase pesadelos: “de parte, eu me lembro, o resto tirei de sonhos”, a primeira fala de DiCaprio em Gangues de Nova York se aplica ao seu terceiro papel com Scorsese. Se em O Aviador, a seqüência de abertura ainda pode ser interpretada como a participação materna fundamental no desenvolvimento das fobias de Howard Hughes (apesar de erroneamente, pois o filme se estrutura sobre o acúmulo de acontecimentos que não se explicam sob os ditames da causa e da conseqüência), em Os Infiltrados a montagem de Thelma Schoonmaker trata de esvaziar por completo o passado, isolando e compartimentando cada situação, em consonância com a realidade imediata, egoísta e medíocre dos “ratos”, desvinculados da História e dos EUA. A constante colaboradora de Scorsese amplia as experiências de montagem paralela com ações não simultâneas dos filmes anteriores (a chegada de Amsterdam à velha cervejaria e de Bill the Butcher à casa de Tammany em Gangues de Nova York, o depoimento de Howard Hughes ao Congresso e o primeiro vôo do Spruce Goose em O Aviador) para transformar eventos de vários tempos concomitantes entre si, de modo que a narrativa de Os Infiltrados se encontra sempre no agora, na medida em que não há antes ou depois para os personagens.
O último plano de Os Infiltrados, que une o rato e o domo da catedral de Boston (contraste entre o efêmero e o eterno, entre o medíocre e o divino), remete a Violência e Paixão, de Luchino Visconti: “os corvos voam em bando, a águia voa sozinha”. Após a morte de Frank Costello, o filme se resolve em série de assassinatos bruscos, torpes, banais – “ratos” se livrando de “ratos”, que sem a estrela para girarem ao redor, desaparecem com a mesma falta de motivos pela qual existiam e caem feito moscas. O retorno de Scorsese ao cinema de gênero dá prosseguimento à exploração da alma americana realizada em Gangues de Nova York e em O Aviador e, embora o mafioso Costello seja a face mais pessimista, irônica e desencantada de Bill the Butcher e de Howard Hughes, ele ainda poderia, à la Norma Desmond, dizer: “eu sou grande, os EUA ficaram pequenos”.
Paulo Ricardo de Almeida
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