As
primeiras imagens podem enganar, podem passar a sensação
de coisas já vistas e revistas num certo cinema oriental
que roda os festivais internacionais. Imagens bonitas,
personagens que quase nada falam, narrativa em painel,
trilha sonora acentuando algum sentimentalismo latente.
Mas o engano se dissipa sem demora, pois logo uma troca
de mensagens leva o filme a articular inusitadas relações
de aproximação e distanciamento entre os personagens.
SMS, chat na internet, e-mails, palavras datilografadas:
tela líquida ou folha de papel, tanto os novos como
os antigos materiais começam a servir de suporte para
a inscrição de intertítulos que fazem de Fica Comigo
uma espécie de cinema mudo-sonoro. A rede tecida
pelos meios modernos de comunicação estimula novas formas
de construir um filme em plano-contraplano. Vemos um
rapaz tímido e um tanto abobalhado, que trabalha de
vigilante e come compulsivamente. Entre uma e outra
imagem sua, lemos mensagens trocadas por telefone celular
ou internet, e vemos uma linda adolescente. À noite,
com as luzes apagadas, o rapaz se deita num colchão.
Close do seu rosto, olhar na direção da câmera, sorriso
paspalhão – contraplano: o rosto de uma outra mulher
que não a adolescente. Stalker afetivo, ele persegue
a moça que trabalha no prédio que monitora. O falso
paralelismo sugerido pela montagem, justapondo cenas
dele e da adolescente, vai desaguar nesse plano que
introduz uma outra personagem. A paixão platônica fica
clara desde já: a montagem ao mesmo tempo afasta o rapaz
da moça e o aproxima daquilo que ele realmente pode
ter dela: uma imagem etérea, irreal.
O filme joga com alguns núcleos de personagens – o rapaz
que admira uma mulher à distância, as adolescentes que
namoram por um certo tempo, o velho homem que ainda
tenta ver a falecida esposa sentada a seu lado à mesa
do jantar – e os reúne por uma personagem-pivô, Theresa
Chan. É em torno dela que tudo gravita, ela junta a
narrativa e o conceito. Se todas as histórias contidas
no filme são histórias de amor, Theresa vem com a mais
potente e imbatível de todas: um amor incondicional
pela vida em si. Cega e surda desde a infância, ela
escreve um romance autobiográfico que desfila em subtítulos
enquanto assistimos a cenas semidocumentais – ela cozinhando,
nadando, indo ao supermercado acompanhada de seu melhor
amigo. Lá no início havia a suspeita de uma emoção fácil,
de caminhos estéticos conhecidos? Pois eis que uma beleza
difícil, estranha, cheia de artérias e rugas chega até
nós. Isso após o filme já ter transitado por uma série
de registros, do painel sentimental ao drama intimista,
do videoclipe bem anos 80 ao relato bruto do cotidiano,
do romance levezinho à solidão extrema.
Uma vez cega e surda, resta a Theresa, para se comunicar,
o tato, as mãos. E é a partir disso que Fica Comigo
afirma a necessidade de um contato mais próximo.
A linguagem em códigos táteis que seu amigo usa, tocando-lhe
os dedos e a palma da mão, soma ao olhar e à fala uma
outra economia de palavras e imagens. A carta que o
rapaz escreve e que nunca chegará ao destino, as mensagens
trocadas à distância, os olhares que são lançados através
de superfícies envidraçadas ou grades, nada disso esconde
a distância, nada disso restitui a falta de um elemento
tátil, direto. Com Theresa o filme descobre a maneira
de escapar ao mutismo e à solidão. Para ela precisou
ser assim: agarrar o mundo com as mãos, não deixá-lo
fugir. E Eric Khoo foi atrás desse mesmo gesto, usando
a montagem para pôr uma imagem em contato com
a outra. O filme mescla sua inventividade de estilo
a um enorme poder de articulação. Quando um plano se
segue a outro, haja efeito de continuidade ou falso-raccord,
o sentido do filme está de fato sendo construído.
Sem medo do piegas, sem medo do exagero, Fica Comigo
magnetiza o espectador. Ao final do filme, quando
Theresa e o personagem que perdeu a esposa se abraçam,
um circuito de afeto se insinua lá onde tudo parecia
confluir para o isolamento das partes. O olhar antes
trocado pelo assistente social com a adolescente que
tentara suicídio, então, precisa ser reavaliado, para
ser alçado à categoria de olhar-tato. Ali, naquele momento
de Fica Comigo, Theresa já transformou tudo em
questão de toque e de evasão dos sentimentos mais primários,
mais fortes. Não contenhamos os nossos em relação ao
filme, portanto.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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