FICA COMIGO
Eric Khoo, Be With Me, Cingapura, 2005

As primeiras imagens podem enganar, podem passar a sensação de coisas já vistas e revistas num certo cinema oriental que roda os festivais internacionais. Imagens bonitas, personagens que quase nada falam, narrativa em painel, trilha sonora acentuando algum sentimentalismo latente. Mas o engano se dissipa sem demora, pois logo uma troca de mensagens leva o filme a articular inusitadas relações de aproximação e distanciamento entre os personagens. SMS, chat na internet, e-mails, palavras datilografadas: tela líquida ou folha de papel, tanto os novos como os antigos materiais começam a servir de suporte para a inscrição de intertítulos que fazem de Fica Comigo uma espécie de cinema mudo-sonoro. A rede tecida pelos meios modernos de comunicação estimula novas formas de construir um filme em plano-contraplano. Vemos um rapaz tímido e um tanto abobalhado, que trabalha de vigilante e come compulsivamente. Entre uma e outra imagem sua, lemos mensagens trocadas por telefone celular ou internet, e vemos uma linda adolescente. À noite, com as luzes apagadas, o rapaz se deita num colchão. Close do seu rosto, olhar na direção da câmera, sorriso paspalhão – contraplano: o rosto de uma outra mulher que não a adolescente. Stalker afetivo, ele persegue a moça que trabalha no prédio que monitora. O falso paralelismo sugerido pela montagem, justapondo cenas dele e da adolescente, vai desaguar nesse plano que introduz uma outra personagem. A paixão platônica fica clara desde já: a montagem ao mesmo tempo afasta o rapaz da moça e o aproxima daquilo que ele realmente pode ter dela: uma imagem etérea, irreal.

O filme joga com alguns núcleos de personagens – o rapaz que admira uma mulher à distância, as adolescentes que namoram por um certo tempo, o velho homem que ainda tenta ver a falecida esposa sentada a seu lado à mesa do jantar – e os reúne por uma personagem-pivô, Theresa Chan. É em torno dela que tudo gravita, ela junta a narrativa e o conceito. Se todas as histórias contidas no filme são histórias de amor, Theresa vem com a mais potente e imbatível de todas: um amor incondicional pela vida em si. Cega e surda desde a infância, ela escreve um romance autobiográfico que desfila em subtítulos enquanto assistimos a cenas semidocumentais – ela cozinhando, nadando, indo ao supermercado acompanhada de seu melhor amigo. Lá no início havia a suspeita de uma emoção fácil, de caminhos estéticos conhecidos? Pois eis que uma beleza difícil, estranha, cheia de artérias e rugas chega até nós. Isso após o filme já ter transitado por uma série de registros, do painel sentimental ao drama intimista, do videoclipe bem anos 80 ao relato bruto do cotidiano, do romance levezinho à solidão extrema.

Uma vez cega e surda, resta a Theresa, para se comunicar, o tato, as mãos. E é a partir disso que Fica Comigo afirma a necessidade de um contato mais próximo. A linguagem em códigos táteis que seu amigo usa, tocando-lhe os dedos e a palma da mão, soma ao olhar e à fala uma outra economia de palavras e imagens. A carta que o rapaz escreve e que nunca chegará ao destino, as mensagens trocadas à distância, os olhares que são lançados através de superfícies envidraçadas ou grades, nada disso esconde a distância, nada disso restitui a falta de um elemento tátil, direto. Com Theresa o filme descobre a maneira de escapar ao mutismo e à solidão. Para ela precisou ser assim: agarrar o mundo com as mãos, não deixá-lo fugir. E Eric Khoo foi atrás desse mesmo gesto, usando a montagem para pôr uma imagem em contato com a outra. O filme mescla sua inventividade de estilo a um enorme poder de articulação. Quando um plano se segue a outro, haja efeito de continuidade ou falso-raccord, o sentido do filme está de fato sendo construído.

Sem medo do piegas, sem medo do exagero, Fica Comigo magnetiza o espectador. Ao final do filme, quando Theresa e o personagem que perdeu a esposa se abraçam, um circuito de afeto se insinua lá onde tudo parecia confluir para o isolamento das partes. O olhar antes trocado pelo assistente social com a adolescente que tentara suicídio, então, precisa ser reavaliado, para ser alçado à categoria de olhar-tato. Ali, naquele momento de Fica Comigo, Theresa já transformou tudo em questão de toque e de evasão dos sentimentos mais primários, mais fortes. Não contenhamos os nossos em relação ao filme, portanto.


Luiz Carlos Oliveira Jr.

 

 








Fim de noite para o casal adolescente de Fica Comigo