No esqueleto de um prédio abandonado, uma grande quantidade de água se acumula, originando uma espécie de represa. Alguma obra está em curso ali, embora não se saiba ao certo qual. Na superfície do grande “lago” formado no largo vão central da construção, o reflexo do edifício faz surgir a virtualidade de um conjunto habitacional sobre as águas. Num entrecruzamento entre a idéia da água-afeto, o cuidado com as evocações da imagem e a vitória de um sentimento de acolhimento em detrimento da solidão, o belo plano final de Eu Não Quero Dormir Sozinho arremata este pseudo-simbolismo, colocando os três personagens flutuando sobre essas águas, deitados no colchão nômade, objeto cênico privilegiado e articulador da narrativa. Como num útero gigante, Hsiao-kang, Cyhi e Rawang repousam aconchegados uns nos outros e temos a sensação de que o ambiente hostil e catastrófico que os rodeia cede em gravidade para este “final feliz”.
Talvez o mais interessante da obra de Tsai Ming-liang seja as infinitas variações que seu desejo professado de fazer o mesmo filme (um filme sobre o mundo contemporâneo e os males que este impinge aos seres que vivem nos grandes centros urbanos: solidão, isolamento, tristeza) pode produzir, a observação de diversas facetas e nuances deste “mal da alma” amplo, difuso e dificilmente diagnosticável com precisão. Ancorado num estilo cinematográfico ao mesmo tempo bastante característico e pouco variável, em harmonia com a sua visão de mundo e de cinema, Tsai constrói filme a filme uma obra sólida e notadamente coerente, na qual cada trabalho expande e reforça os precedentes.
O radicalismo de O Sabor da Melancia (The Wayward Cloud, 2005), o filme anterior a Eu Não Quero Dormir Sozinho, apontava, no entanto, para um impasse, um ponto crítico que colocava em cheque a ainda existência de caminhos possíveis. O contato físico, ausente em sua obra até então – a falta que seca o coração dos seus personagens –, havia mostrado sua faceta mais fria e repugnante: o automatismo e a agressividade de um sexo “industrial”. E os sentimentos, contidos dentro do cerco do próprio peito, a sufocar a existência, haviam como nunca mostrado suas cores exuberantes e suas melodias envolventes. Mas, nesta explosão, a dor subjacente parece ter se intensificado também, beirando o insuportável. Pois onde há violência, todo afeto é golpeado com muito maior força. E, se há algum limite para o homem, para o que sua sensibilidade pode tolerar, talvez ele tenha sido atingido pelo plano final de O Sabor da Melancia, atirando os personagens de Tsai num limbo qualquer, na tentativa de se virar com o mínimo, no esforço por uma sobrevivência com alguma dignidade. No nevoeiro e na miséria das ruas de Kuala Lumpur.
Eu Não Quero Dormir Sozinho é o primeiro filme que Tsai roda em seu país natal, a Malásia. A mudança de locação determina uma marcante mudança de ambiente e de fotografia. A escuridão, a sub-exposição e a sujeira vivenciadas pelos personagens praticamente não admitem contrastes, para além dos néons que eventualmente brilham em seu percurso. E, se a violência física irrompe nestas sombras (o espancamento de Hsiao-kang por envolvimento num esquema escuso para ganhar algum dinheiro), a pobreza que impregna as ruelas e becos desta cidade, faceta mais material da “falta” proporcionada pelo capitalismo urbano, provoca o ineditismo de uma solidariedade fraternal e de um afeto algo acolhedor.
Rawang é o rapaz que congrega os amigos para ajudá-lo no transporte de um colchão encontrado no lixo até sua casa. Trabalhador na obra no prédio-represa, é dele a iniciativa de recolher Hsiao-kang, jogado na rua. Mesmo com dificuldades de sustento, Rawang se ocupa carinhosamente do estranho, até que ele se recupere. O amor discreto que ele começa a nutrir pelo chinês “perdido” na Malásia, isolado de antemão por sua incomunicabilidade lingüística, não está, no entanto, imune a uma outra violência: a do ciúme. Pois se anteriormente a agressividade que atingia os personagens de Tsai era eminentemente emocional, uma vez conquistado o contato físico, ela adquire também esta outra dimensão: Rawang chega a tentar matar Hsiao-kang por “traição”, por começar a flertar com Chyi, tão logo consegue sair do quarto, e ousar levá-la para o “seu” colchão. Mas este colchão-personagem, dejeto da economia de circulação de capital da qual os personagens estão alijados, é nômade e sem dono. E, se ele serve de início à união de Rawang e Hsiao-kang, provocando indiretamente seu encontro na rua, servindo de ”suporte” ao processo de recuperação do chinês, colocando estes dois corpos lado-a-lado, ele é também um símbolo do aconchego do afeto, acolhendo ao final os corpos dos três personagens e eliminando qualquer conflito. Afinal, em um mundo já tão repleto de adversidades, é preciso congregar as pessoas em torno do “possível”, de todos os sentimentos existentes, mesmo que sem correspondência. Pois para o desejo de união não há lógica prescritível e os afetos freqüentemente sugerem espelhamentos em uma rede de relacionamentos.
Um jogo de reflexos percorre Eu Não Quero Dormir Sozinho. Lee Kang-sheng é Hsiao-kang e o filho paralisado da chefe de Chyi, duas faces da estaticidade e do infortúnio (que num primeiro momento fazem pensar que Tsai estaria trabalhando pela primeira vez com uma narrativa não-linear). A atração que Rawang sente por Hsiao-kang é rebatida pela que este sente por Chyi. O esqueleto da construção abandonada faz surgir por sobre a água acumulada em seu interior a virtualidade de um conjunto habitacional. E é no espelho que vemos a chefe fazer Chyi masturbar seu filho inerte, como se desejasse para ele o afeto da jovem, direcionado ao duplo do rapaz. Masturbação que evoca a que ela própria “solicita” de Hsiao-kang (estaria ela apegada incestuosamente ao filho?). Esta rede, que parece tecida pela própria cidade, forma uma comunidade agregada pelo ar que preenche o espaço e que a mantém viva.
Mas uma tragédia ambiental infesta de fumaça o ambiente e se interpõe entre os seres. Com máscaras cobrindo-lhes o rosto, as pessoas afastam-se uma das outras com solenidade, em respeito a um momento de risco. Perdem também seu aspecto humano e passam a compor o cenário de uma quase-ficção-científica apocalíptica. Para os personagens de Eu Não Quero Dormir Sozinho, no entanto, a indumentária não está à altura da evocação deste universo, pois não há máscaras de gás, mas tigelas descartáveis e sacos plásticos. Eles recebem a catástrofe como algo vindo de uma dimensão externa à sua vivência, uma notícia de televisão em off, que indaga de que país seria a responsabilidade pelo acontecido, e tentam continuar respirando e se relacionando (mesmo que seja impossível beijar sem respirar, sem compartilhar algum ar puro).
É notável, ao longo de Eu Não Quero Dormir Sozinho, os cuidados que os personagens distribuem uns aos outros, beirando por vezes a tênue linha entre o carinho e a agressividade. Como se precisassem se livrar de suas máculas e dos impulsos destrutivos incentivados pela exasperação que vivenciam (que haviam atingido um ponto máximo em O Sabor da Melancia), eles são atravessados por uma constante necessidade de limpeza. A decadência do ambiente que os envolve, o subdesenvolvimento manifesto pela ausência de condições sanitárias, é contraposta por este impulso de higiene. Rawang é aquele que lava. O colchão imundo de lixo e infestado de pulgas, o corpo de Hsiao-kang, sujo e machucado, as roupas deste, manchadas de suor e sangue. A chefe de Chyi, por sua vez, cuida da higiene e asseptização de seu filho-cadáver e da sua maquiagem exemplar.
Esta busca pelo “limpo”, isento de impurezas, em meio a um espaço infestado delas, é a busca destes seres por um fio de afeto que faça a pobreza tornar-se menor. Uma fonte de luz no escuro dos bairros abandonados pelo saneamento governamental e pelo mundo globalizado. Como o abajur que Hsiao-kang oferta a Chyi, cujas cores emitidas fazem dele um ponto magnetizante do olhar dentro da imagem, a exemplo dos sucos coloridos que Rawang bebe ou da borboleta que vem pousar no ombro de Hsiao-kang. Por mais pontuais que sejam, estas conexões fazem, em Eu Não Quero Dormir Sozinho, petição de princípio contra todo o resto, selando um novo momento para a obra de Tsai Ming-liang: o da superação da solidão, mesmo que de forma precária.
Tatiana Monassa
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