Os
princípios pelos quais Dia Noite, Dia Noite preza
estão desde sempre muito bem explicitados. Político,
claro, porque fala de um atentado terrorista sendo armado
no coração de Nova York, a própria cidade (mais uma
vez) como alvo. Mas não um cinema ativista, que defenda
causas e idéias a partir da metaforização deste bunker,
microcosmo do mundo, nem mesmo uma disposição investigativo-pedagógica,
de compreensão dos modos de atuação do terror e sua
relação com as estruturas sociais estabelecidas, povos,
etnias, classes sociais, religiões. A origem da jovem-bomba
que se prepara para o atentado nos é negada, e a própria
sinopse do filme faz questão de nos lembrar que não
é possível identificar nela um sotaque característico
ou etnia específica. Mais negativas a acompanham, porque
também não sabemos a causa que defende, o porquê de
sua decisão, o que pretende atingir com seu ato extremista.
Julia Loktev se aproxima de um evento problemático,
e não tenta resolvê-lo. Negar um olhar afirmativo, numa
seara totalmente propícia a ele, porque consciente da
incapacidade de se dar conta de todas as implicações
contidas neste objeto. Isso já vimos em Elefante,
e se Gus Van Sant estabeleceu com seu filme essa política
diferente de todas as outras a que o cinema se acostumara,
uma política que é sobretudo presença, o manifesto que
é sobretudo a vontade de ver, de estar lá, uma política
que naturalmente elenca essas negativas todas sobre
a natureza daquilo que se está acompanhando porque sabe
que o contrário é impossível, tudo isso chega à Dia
Noite, Dia Noite já como uma espécie de manual de
abordagens. O interesse nessa postura vertida em fórmula,
dispersada por Van Sant em uma série de personagens
que se cruzam, se completam e se negam ao mesmo tempo,
é concentrada numa só pessoa, na figura desta anônima,
e é assim que Julia Loktev conseguirá eventualmente
se afastar dessa sensação de manufatura da crise de
representação.
Assim, a mulher-bomba, chamada apenas de “Ela”, é toda
a política de Dia Noite, Dia Noite. Ignorados
quaisquer traços de sua história, isolada no caminho
entre uma vivência pessoal e as relações que estabelece
com o mundo, o que resta à Julia Loktev é o corpo desta
mulher, única marca de sua experiência. Durante toda
a preparação para o ataque, alojada num apartamento
pequeno onde fica sozinha a maior parte do tempo, impossibilitada
até mesmo de abrir as janelas, é com a câmera que ela
consegue criar seu único vínculo. Neste momento, partindo
de uma série de belos e estranhos enquadramentos, vemos
a figura desta mulher em todos os seus detalhes, o tédio,
a espera, as atividades cotidianas, a higiene pessoal,
o sono, e é esse o modo de Julia Loktev encerrar todos
os cruzamentos, complementações e negações possíveis
nesta instância solitária, destacada de qualquer outra.
No contato com os membros da célula terrorista, sempre
encapuzados, Dia Noite, Dia Noite assume as operações
criminosas como um trabalho igual a todos os outros,
também sujeito à mesma relação estabelecida com a protagonista,
não sendo mais nada além de corpos que se movimentam,
testando roupas que chamem menos atenção, experimentando
posições mais confortáveis para a mochila que carrega
os explosivos, ensaiando os dados da falsa (ou primeira)
identidade a ser assumida caso algo no plano saia errado.
Perto de outras pessoas, a mulher-bomba e sua relação
íntima com a materialidade do filme ficam ainda mais
evidentes, é este o único rosto visível, e ainda assim,
uma invisibilidade absoluta aparece nela investida.
E o que havia de secreto a respeito de sua identidade,
a respeito de suas intenções, de suas atividades, até
mesmo na relação muda entre câmera e personagem, motivadas
uma pela outra a sempre oferecer novas perspectivas
sobre um espaço invariavelmente restrito, um corpo humano
num pequeno apartamento, ganha uma evidência surpreendente
quando chegamos finalmente às ruas de Nova York, à Times
Square, onde será realizado o ataque. O que era imagem
fixa em película, num tom pastel e sem contrastes, tradução
visual de uma estranha calma que dominava todos os movimentos
desta personagem, se transformará no registro digital
em constante oscilação, cheio de cores e claros-escuros.
Mais importante que isso, no entanto, é a decisão de
Julia Loktev de não levar à rua a mesma idéia de redoma
do apartamento, não converter esse espaço numa mise-en-scène
do segredo. Sem afastar os passantes, sem ignorar os
rostos surpresos daqueles que cruzam a frente da câmera
e olham diretamente para ela, denunciando que há ali
um olhar que é pura declaração de si mesmo, a diretora
chega ao máximo de sua relação com a protagonista, e
sua errância pelo meio da multidão cria uma segunda
dimensão na imagem, a separar sua própria situação,
recipiente silencioso e isolado de suas próprias limitações,
de todo o barulho e aglomeração com a qual esta cidade
a recebe. É esta a força investida neste corpo feminino,
manter-se um mesmo quando envolvido por milhões de outros.
Dia Noite, Dia Noite foi se montando até este
ponto por absoluta devoção e necessidade desta força,
mas parece ter esquecido que aquilo que provocara esse
encontro, essa ligação, se baseava exatamente na idéia
de sua extinção. Porque esta mulher é uma mulher-bomba,
seu corpo é também tudo o que Julia Loktev conseguiu
tirar dele, mas é, acima de tudo, a primeira coisa que
desaparecerá quando os explosivos presos às suas costas
forem detonados. Sem ele já não há mais filme, e no
momento em que Dia Noite, Dia Noite se depara
com sua própria morte, é incapaz de prosseguir com o
modo de aproximação que até ali lhe era tão caro, é
incapaz de admitir, como sua própria protagonista, que
a crença absoluta em alguma coisa só é realmente absoluta
quando levada às últimas conseqüências. Densidade dramática,
atropelos psicológicos, até alguma tentativa de situar
a protagonista (ela chega à ligar para os pais, que
antes tinha declarado mortos), e tudo isso que se acumula
em torno dela vai desfazendo tudo o que por ela tinha
sido construído. O desespero, nunca aventado em toda
a preparação, será incluído como sentimento primordial,
e ele não tem outra fonte que não o próprio filme e
sua recusa do fim. Mochila nas costas, a moça andará
obsessivamente de um lado para outro, entrando e saindo
de lugares, esbarrando em pessoas, suando pelo nervosismo,
e ali já não é mais a mesma que logo antes conhecêramos.
De marca da incapacidade de compreendermos tudo o que
diz respeito à natureza de alguém que entrega à uma
idéia sua própria vida sobra apenas um vestígio, substituído
pelo constrangimento de uma personagem ao tormento à
ela imposto. Decidida finalmente a dar prosseguimento
ao plano, haverá um botão emperrado no meio do caminho
a impedi-la. O clique repetido, e sabemos que será com
ele, com essa suspensão natural que um clique não seguido
de uma explosão provoca, que Dia Noite, Dia Noite
terminará. No meio do caminho entre Julia Loktev e tudo
aquilo que pretendia tirar da mulher fascinante com
quem um dia cruzou, sempre haverá um botão emperrado.
E é uma pena que ele esteja ali.
Rodrigo de Oliveira
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