DIA NOITE, DIA NOITE
Julia Loktev, Day Night Day Night, EUA, 2006

Os princípios pelos quais Dia Noite, Dia Noite preza estão desde sempre muito bem explicitados. Político, claro, porque fala de um atentado terrorista sendo armado no coração de Nova York, a própria cidade (mais uma vez) como alvo. Mas não um cinema ativista, que defenda causas e idéias a partir da metaforização deste bunker, microcosmo do mundo, nem mesmo uma disposição investigativo-pedagógica, de compreensão dos modos de atuação do terror e sua relação com as estruturas sociais estabelecidas, povos, etnias, classes sociais, religiões. A origem da jovem-bomba que se prepara para o atentado nos é negada, e a própria sinopse do filme faz questão de nos lembrar que não é possível identificar nela um sotaque característico ou etnia específica. Mais negativas a acompanham, porque também não sabemos a causa que defende, o porquê de sua decisão, o que pretende atingir com seu ato extremista. Julia Loktev se aproxima de um evento problemático, e não tenta resolvê-lo. Negar um olhar afirmativo, numa seara totalmente propícia a ele, porque consciente da incapacidade de se dar conta de todas as implicações contidas neste objeto. Isso já vimos em Elefante, e se Gus Van Sant estabeleceu com seu filme essa política diferente de todas as outras a que o cinema se acostumara, uma política que é sobretudo presença, o manifesto que é sobretudo a vontade de ver, de estar lá, uma política que naturalmente elenca essas negativas todas sobre a natureza daquilo que se está acompanhando porque sabe que o contrário é impossível, tudo isso chega à Dia Noite, Dia Noite já como uma espécie de manual de abordagens. O interesse nessa postura vertida em fórmula, dispersada por Van Sant em uma série de personagens que se cruzam, se completam e se negam ao mesmo tempo, é concentrada numa só pessoa, na figura desta anônima, e é assim que Julia Loktev conseguirá eventualmente se afastar dessa sensação de manufatura da crise de representação.

Assim, a mulher-bomba, chamada apenas de “Ela”, é toda a política de Dia Noite, Dia Noite. Ignorados quaisquer traços de sua história, isolada no caminho entre uma vivência pessoal e as relações que estabelece com o mundo, o que resta à Julia Loktev é o corpo desta mulher, única marca de sua experiência. Durante toda a preparação para o ataque, alojada num apartamento pequeno onde fica sozinha a maior parte do tempo, impossibilitada até mesmo de abrir as janelas, é com a câmera que ela consegue criar seu único vínculo. Neste momento, partindo de uma série de belos e estranhos enquadramentos, vemos a figura desta mulher em todos os seus detalhes, o tédio, a espera, as atividades cotidianas, a higiene pessoal, o sono, e é esse o modo de Julia Loktev encerrar todos os cruzamentos, complementações e negações possíveis nesta instância solitária, destacada de qualquer outra. No contato com os membros da célula terrorista, sempre encapuzados, Dia Noite, Dia Noite assume as operações criminosas como um trabalho igual a todos os outros, também sujeito à mesma relação estabelecida com a protagonista, não sendo mais nada além de corpos que se movimentam, testando roupas que chamem menos atenção, experimentando posições mais confortáveis para a mochila que carrega os explosivos, ensaiando os dados da falsa (ou primeira) identidade a ser assumida caso algo no plano saia errado. Perto de outras pessoas, a mulher-bomba e sua relação íntima com a materialidade do filme ficam ainda mais evidentes, é este o único rosto visível, e ainda assim, uma invisibilidade absoluta aparece nela investida.

E o que havia de secreto a respeito de sua identidade, a respeito de suas intenções, de suas atividades, até mesmo na relação muda entre câmera e personagem, motivadas uma pela outra a sempre oferecer novas perspectivas sobre um espaço invariavelmente restrito, um corpo humano num pequeno apartamento, ganha uma evidência surpreendente quando chegamos finalmente às ruas de Nova York, à Times Square, onde será realizado o ataque. O que era imagem fixa em película, num tom pastel e sem contrastes, tradução visual de uma estranha calma que dominava todos os movimentos desta personagem, se transformará no registro digital em constante oscilação, cheio de cores e claros-escuros. Mais importante que isso, no entanto, é a decisão de Julia Loktev de não levar à rua a mesma idéia de redoma do apartamento, não converter esse espaço numa mise-en-scène do segredo. Sem afastar os passantes, sem ignorar os rostos surpresos daqueles que cruzam a frente da câmera e olham diretamente para ela, denunciando que há ali um olhar que é pura declaração de si mesmo, a diretora chega ao máximo de sua relação com a protagonista, e sua errância pelo meio da multidão cria uma segunda dimensão na imagem, a separar sua própria situação, recipiente silencioso e isolado de suas próprias limitações, de todo o barulho e aglomeração com a qual esta cidade a recebe. É esta a força investida neste corpo feminino, manter-se um mesmo quando envolvido por milhões de outros.

Dia Noite, Dia Noite foi se montando até este ponto por absoluta devoção e necessidade desta força, mas parece ter esquecido que aquilo que provocara esse encontro, essa ligação, se baseava exatamente na idéia de sua extinção. Porque esta mulher é uma mulher-bomba, seu corpo é também tudo o que Julia Loktev conseguiu tirar dele, mas é, acima de tudo, a primeira coisa que desaparecerá quando os explosivos presos às suas costas forem detonados. Sem ele já não há mais filme, e no momento em que Dia Noite, Dia Noite se depara com sua própria morte, é incapaz de prosseguir com o modo de aproximação que até ali lhe era tão caro, é incapaz de admitir, como sua própria protagonista, que a crença absoluta em alguma coisa só é realmente absoluta quando levada às últimas conseqüências. Densidade dramática, atropelos psicológicos, até alguma tentativa de situar a protagonista (ela chega à ligar para os pais, que antes tinha declarado mortos), e tudo isso que se acumula em torno dela vai desfazendo tudo o que por ela tinha sido construído. O desespero, nunca aventado em toda a preparação, será incluído como sentimento primordial, e ele não tem outra fonte que não o próprio filme e sua recusa do fim. Mochila nas costas, a moça andará obsessivamente de um lado para outro, entrando e saindo de lugares, esbarrando em pessoas, suando pelo nervosismo, e ali já não é mais a mesma que logo antes conhecêramos. De marca da incapacidade de compreendermos tudo o que diz respeito à natureza de alguém que entrega à uma idéia sua própria vida sobra apenas um vestígio, substituído pelo constrangimento de uma personagem ao tormento à ela imposto. Decidida finalmente a dar prosseguimento ao plano, haverá um botão emperrado no meio do caminho a impedi-la. O clique repetido, e sabemos que será com ele, com essa suspensão natural que um clique não seguido de uma explosão provoca, que Dia Noite, Dia Noite terminará. No meio do caminho entre Julia Loktev e tudo aquilo que pretendia tirar da mulher fascinante com quem um dia cruzou, sempre haverá um botão emperrado. E é uma pena que ele esteja ali.


Rodrigo de Oliveira