Oliveira/Buñuel,
uma união frutífera, duas almas convergentes?
Para aqueles que dirigem um olhar meio apressado para
o suposto racionalismo e para a clareza do diretor português,
os dois estariam em aspectos diferentes dos valores
humanos, um dissecando a razão e outro as irrupções
do desejo que destróem e dominam o raciocínio.
Mas basta um olhar um pouco mais agudo para revelar
os distúrbios, as idéias fixas, a sede
de irracional em personagens e intrigas oliveirianas:
a resolução final de A Caça,
a idéia fixa de Leonor Baldaque em O Princípio
da Incerteza, Leonor Silveira em O Vale Abraão
e Espelho Mágico, o final de Um
Filme Falado. Em Buñuel a visão
é ontológica, testando o tempo inteiro
a tão propalada humanidade do homem e fazendo-a
dialogar com a animalidade de seus instintos. Em Oliveira,
ela é mediada pela História, porque não
é só a animalidade, mas um conjunto de
valores e códigos sociais que determinam comportamentos,
ações, gostos, trabalhos, pensamentos.
Mas não é só porque ela é
agregada à História que essa visão
não pode existir em todo seu caráter de
exceção, de desvio, de perversão.
Ao contrário, há um lado perverso pronunciado
em todo curioso e a curiosidade de Oliveira excede
o ambiente mundano do hoje e caminha verticalmente através
dos séculos e das épocas. Belle Toujours
aproxima o ponto de vista do protagonista Henri
Husson com o ponto de vista do filme, fazendo dele uma
espécie de guia iniciático e dando à
narrativa um pequeno gosto sádico da preparação
de um ritual.
Há identificações muito claras
de procedimentos. Se Manoel de Oliveira decide cavucar
na história do cinema e reedita 38 anos depois
os personagens de A Bela da Tarde, Henri Husson
reencontra casualmente o rosto envelhecido da bela Sévérine
e, mesmo notando um desconforto por parte dela, força
um encontro entre os dois. Reside nele a vontade e a
possibilidade do encontro, que é organizado criteriosamente
como uma mise-en-scène: locações
especiais, criação de climas, até
objetos de cena (a famosa caixinha de A Bela da Tarde,
encontrada por acaso num antiquário). Manoel
de Oliveira faz seu cinema, Henri faz o dele, e as curiosidades
se comunicam, se espelham, se identificam.
Mas o distúrbio é filmado de forma inteiramente
diferente. Se o desejo incomum de Sévérine
em A Bela da Tarde assumia caráter de
escândalo, em Belle Toujours ele será perspectivado
historicamente, através das conversas confessionais
entre Henri/Michel Piccoli e o barman/Ricardo Trepa
entre o balcão do bar, com o auxílio luxuoso
das duas prostitutas interpretadas por Júlia
Buisel e a sempre encantadora Leonor Baldaque. Essas
conversas a princípio têm função
de familiarizar o espectador com a história pregressa
de Sévérine, em caso de não ter
visto o filme de Buñuel. Mas fica claro rapidamente
que o interesse de Oliveira é maior do que isso,
e está em outra parte: situar histórica
e culturalmente a obsessão da mulher casada nos
anos 60, e observar o estatuto cultural das casas de
rendez-vous entre aquela época e os dias de hoje.
O esforço não é de provocação,
como em Buñuel, mas de compreensão. Eis
como Manoel de Oliveira toma o discurso de um outro
Joseph Kessel, Jean-Claude Carrière, Luis
Buñuel e redireciona o material para seu
próprio terreno.
Belle Toujours tem o sabor de um doce divertimento,
de uma narrativa com andamento ligeiro, curta em duração
(68 minutos), de uma irreverência burlesca, quase
gaiata. Surgem ressonâncias imediatas com a leveza
de Vou para Casa, com a simplicidade e a doçura
de sua narrativa, com o humor das cenas do café
parisiense. Aparece também, com força,
a identificação entre velhice e infância,
onde o idoso assume a impertinência de uma criança
e sai por aí a fazer travessuras. Belle Toujours
é um filme que se constrói galhardo,
límpido, elegante, que evolui com uma fluência
incomum e apaixonante. Sóbrio e econômico,
ele vai com precisão ao que interessa: casa de
concerto, ruas, bar, hotel, bar de novo, hotel de novo,
e assim por diante, até culminar com o jantar
de reencontro, filmado um pouco como um jogo de xadrez,
em que finalmente as mise-en-scènes de
Oliveira e Henri se colam, e seus pequenos prazeres
sádicos se expõem na chave de um revelação,
a microchantagem com que Henri coage Sévérine
ao encontro, para saber se afinal ele havia contado
ao marido e amigo as aventuras sexuais de sua esposa.
Se falamos de um doce sadismo de Oliveira, é
porque o filme todo é construído nesse
ambiente um pouco proibido de um encontro forçado,
e seu desenvolvimento narrativo funciona como os passos
de um ritual sado-masô, de um programa a seguir
que é extremamente prazeroso ao diletante Henri,
bebedor de uísques duplos, flaneur, degustador
de pratos finos e espectador de concertos. O elegante
prazer perverso de Belle Toujours consiste em
atrasar o encontro, em tecer zonas de sombra que provocam
a curiosidade do espectador e não comunicam a
ele o mistério (as conversas que não ouvimos,
o conteúdo da caixinha), em fazer do processo
e não da resolução a fonte do deleite.
Daí a impressão de um filme sem fim e
sem começo, de um segundo ato eterno, que diz
respeito única e exclusivamente à curiosidade
e à minúcia na preparação
do ritual. Questão de execução
de um programa, de apuro na confecção,
de mise-en-scène pois. E a de Oliveira
em Belle Toujours é de uma clareza mágica,
adiando o gozo, brincando com nossas expectativas e
entregando a beleza de seus enquadramentos, a delicadeza
de suas composições, a sutil e sublime
criancice que consiste em ocupar o tempo ocioso criando
pequenos jogos pelo simples prazer de jogá-los.
O que encanta em Belle Toujours é a suprema
adequação da forma do filme ao projeto,
sua transparente ligeireza e frivolidade, seus tons
meio brincalhões de homenagem, sua velocidade
que faz com que pareça que estamos vendo um curta-metragem,
sua sedução que consiste na degustação
do andamento e da beleza dos planos, no acompanhar de
um jogo que é vão em seu objetivo mas
essencial em seu processo. Eis como Manoel de Oliveira
chega, esbelto, jovem e docemente perverso, a mais uma
obra-prima de sua majestosa carreira.
Ruy Gardnier
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