Gosto
de Cereja é parte integrante do cinema-dispositivo
realizado por Abbas Kiarostami. Partindo de um cinema
puro, em que a imagem se faz impregnada do real – selecionado
a partir do enquadramento da câmera, do recorte –, a
experiência do cineasta se condensa na própria imagem.
Da materialidade – situações, pessoas, espaço físico
– nasce o interesse deste cinema que pensa o mundo a
partir de um dispositivo recriado a cada filme, operando
como ferramenta de contravenção da linguagem e das idéias.
Para Kiarostami, o falso e o real caminham juntos, de
modo que mesmo as imagens auto-referenciais ao final
de Gosto de Cereja,
em vídeo, não constituem operação metalingüística.
Trata-se de um cinema vigoroso, modelado pela avidez
de captação, absorção e retransmissão do mundo, que
confere, a partir de um frescor da imagem, vida e espontaneidade
aos filmes.
Em Gosto de Cereja,
Kiarostami repete a ferramenta-dispositivo já utilizada
em outros filmes (Vida e Nada Mais e posteriormente Dez): o automóvel. É nele que se passa grande parte do filme, pois
é dentro do carro que o Sr. Badii procura seus eventuais
cúmplices, expõe seus planos (instruindo-os sobre a
empreitada), solicita ajuda, ouve resistências e conselhos.
Em um país em que o direito de expressão é ainda cerceado
pelas tradições político-religiosas e o universo privado
ainda é extremamente desconhecido (ao menos no Ocidente),
Kiarostami se aproveita do automóvel como ponte de ligação
entre os universos público e privado. A dupla função
desempenhada pelo automóvel permite que ele transite
por passeios públicos, à vista de todos (e, sobretudo,
da câmera), ao mesmo tempo em que permite compartilharmos
das peculiaridades de cada indivíduo, reservadas somente
para dentro do lar. O automóvel como casa-móvel consente
que adentremos o universo desconhecido que povoa nosso
imaginário. Kiarostami justifica sua frase de que seus
filmes representam muito mais o Irã do qualquer noticiário
midiático. Parece ser verdade, pois nas imbricações
entre ficção e documentário (farsa e realidade) dos
filmes do cineasta nasce, na concepção ocidental, a
construção do sujeito, particular, desconstruindo estereótipos
propagados pela mídia. É justamente no “adentrar” a
esfera privada que Kiarostami abre as portas do Irã
desconhecido, vislumbrado e idealizado.
É no automóvel que o Sr. Badii está atrás de um cúmplice.
Querendo cometer o suicídio, o protagonista busca alguém
que possa verificar se de fato os soníferos que pretende
tomar surtirão efeitos e se estará realmente morto.
Caso confirmado, deve jogar terra em cima do corpo no
buraco previamente cavado. Mas fica evidente que mais
do que uma simples tarefa, o passageiro-recruta deve
compartilhar do ato que cometerá o Sr. Baddii. Sua procura
é mais por um ombro complacente, alguém que divida sua
angústia e, acima de tudo, endosse sua atitude. Função
que vai muito além do ofício do coveiro, que poderia,
com tranqüilidade, executar a tarefa. É justamente na
objetividade com que instruiu os passageiros, que Sr.
Badii deixa vazar, em tom contraditório, toda sua subjetividade
e apego no ser. Kiarostami traça um psicologismo que
transcende a visão consensual ocidental sobre o Irã,
abrindo espaço para compartilharmos dessa esfera privada,
em que personagens são individualizados, ganhando vida,
e extrapolando a barreira dos personagens-tipos que
configuram mercadores, guerrilheiros ou operários-vestidos-com-camisa-do-Ronaldinho.
Antagonicamente, Kiarostami, através de seu personagem
que busca a morte, fala de vida. Se em Vida
e Nada Mais, dentro do carro com seu filho, procurando
pelo garoto-protagonista do filme anterior (Onde
Fica a Casa do Meu Amigo?), Kiarostami mostrava
o Irã assolado por um terremoto, em reconstrução obrigatória
(e a vida continua...), em Gosto
de Cereja a reconstrução (física) é apenas subentendida.
No entanto, os caminhos que Badii percorre são marcados
por terras revolvidas, máquinas de construção, caminhões,
gruas e operários.
Por motivos de guerra ou por fenômenos naturais,
o Irã de Kiarostami está sempre em renovação, sempre
em reconstrução. E desse processo compartilham (e compõe)
diferentes etnias e ideologias, seja o soldado curdo,
seja o seminarista afegão, ou ainda, o taxidermista
(provavelmente) turco. Todos passageiros do Sr. Badii,
as diferentes etnias, representadas por personagens
individuais, e não por estereótipos globalizantes, tem
espaço de reflexão no carro do premeditado suicida.
E o espaço de reflexão está também no vidro do veículo,
que alegoricamente, se divide ora se apresentando como
barreira física, ora se apresentando como transposição
e reflexão. O vidro do automóvel, sempre semi-aberto
(dividindo o espaço público e privado) permite ao mesmo
tempo observar o que se passa “lá fora” sem deixar de
refletir “cá dentro”. Situação idêntica acontece quando
a câmera se posiciona do lado de fora. Ao mesmo tempo
em que vemos Badii ao volante, com suas profundas olheiras
marcadas pelo cansaço e pela desistência, vemos as nuvens
do céu iraniano refletidas no pára-brisa do carro. Espaço
etéreo, mas também elementos de composição da geografia
local, reconfigurada no conjunto do filme.
Há uma obsessão positiva que caracteriza os personagens
de Kiarostami: Badii, a morte e a procura de um cúmplice;
o garoto de Onde Fica a Casa do Meu Amigo?, e
sua busca desesperada pela casa de um colega para lhe
devolver o caderno; o jovem ator de Através das Oliveiras
que, a todo custo, tenta obter o consentimento e o amor
de sua pretendente. Personagens que mostram a mesma
determinação do diretor, que, mesmo fugindo das narrativas
fabulares, pensa o mundo que o cerca, expondo em seus
filmes sua crença no cinema, através de efeitos-mundo.
Raphael Mesquita
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