Gosto de cereja
de Abbas Kiarostami, Ta'm e guilass, França/Irã, 1997

Gosto de Cereja é parte integrante do cinema-dispositivo realizado por Abbas Kiarostami. Partindo de um cinema puro, em que a imagem se faz impregnada do real – selecionado a partir do enquadramento da câmera, do recorte –, a experiência do cineasta se condensa na própria imagem. Da materialidade – situações, pessoas, espaço físico – nasce o interesse deste cinema que pensa o mundo a partir de um dispositivo recriado a cada filme, operando como ferramenta de contravenção da linguagem e das idéias. Para Kiarostami, o falso e o real caminham juntos, de modo que mesmo as imagens auto-referenciais ao final de Gosto de Cereja, em vídeo, não constituem operação metalingüística. Trata-se de um cinema vigoroso, modelado pela avidez de captação, absorção e retransmissão do mundo, que confere, a partir de um frescor da imagem, vida e espontaneidade aos filmes.

Em Gosto de Cereja, Kiarostami repete a ferramenta-dispositivo já utilizada em outros filmes (Vida e Nada Mais e posteriormente Dez): o automóvel. É nele que se passa grande parte do filme, pois é dentro do carro que o Sr. Badii procura seus eventuais cúmplices, expõe seus planos (instruindo-os sobre a empreitada), solicita ajuda, ouve resistências e conselhos. Em um país em que o direito de expressão é ainda cerceado pelas tradições político-religiosas e o universo privado ainda é extremamente desconhecido (ao menos no Ocidente), Kiarostami se aproveita do automóvel como ponte de ligação entre os universos público e privado. A dupla função desempenhada pelo automóvel permite que ele transite por passeios públicos, à vista de todos (e, sobretudo, da câmera), ao mesmo tempo em que permite compartilharmos das peculiaridades de cada indivíduo, reservadas somente para dentro do lar. O automóvel como casa-móvel consente que adentremos o universo desconhecido que povoa nosso imaginário. Kiarostami justifica sua frase de que seus filmes representam muito mais o Irã do qualquer noticiário midiático. Parece ser verdade, pois nas imbricações entre ficção e documentário (farsa e realidade) dos filmes do cineasta nasce, na concepção ocidental, a construção do sujeito, particular, desconstruindo estereótipos propagados pela mídia. É justamente no “adentrar” a esfera privada que Kiarostami abre as portas do Irã desconhecido, vislumbrado e idealizado.

É no automóvel que o Sr. Badii está atrás de um cúmplice. Querendo cometer o suicídio, o protagonista busca alguém que possa verificar se de fato os soníferos que pretende tomar surtirão efeitos e se estará realmente morto. Caso confirmado, deve jogar terra em cima do corpo no buraco previamente cavado. Mas fica evidente que mais do que uma simples tarefa, o passageiro-recruta deve compartilhar do ato que cometerá o Sr. Baddii. Sua procura é mais por um ombro complacente, alguém que divida sua angústia e, acima de tudo, endosse sua atitude. Função que vai muito além do ofício do coveiro, que poderia, com tranqüilidade, executar a tarefa. É justamente na objetividade com que instruiu os passageiros, que Sr. Badii deixa vazar, em tom contraditório, toda sua subjetividade e apego no ser. Kiarostami traça um psicologismo que transcende a visão consensual ocidental sobre o Irã, abrindo espaço para compartilharmos dessa esfera privada, em que personagens são individualizados, ganhando vida, e extrapolando a barreira dos personagens-tipos que configuram mercadores, guerrilheiros ou operários-vestidos-com-camisa-do-Ronaldinho.

Antagonicamente, Kiarostami, através de seu personagem que busca a morte, fala de vida. Se em Vida e Nada Mais, dentro do carro com seu filho, procurando pelo garoto-protagonista do filme anterior (Onde Fica a Casa do Meu Amigo?), Kiarostami mostrava o Irã assolado por um terremoto, em reconstrução obrigatória (e a vida continua...), em Gosto de Cereja a reconstrução (física) é apenas subentendida. No entanto, os caminhos que Badii percorre são marcados por terras revolvidas, máquinas de construção, caminhões, gruas e operários.  Por motivos de guerra ou por fenômenos naturais, o Irã de Kiarostami está sempre em renovação, sempre em reconstrução. E desse processo compartilham (e compõe) diferentes etnias e ideologias, seja o soldado curdo, seja o seminarista afegão, ou ainda, o taxidermista (provavelmente) turco. Todos passageiros do Sr. Badii, as diferentes etnias, representadas por personagens individuais, e não por estereótipos globalizantes, tem espaço de reflexão no carro do premeditado suicida. E o espaço de reflexão está também no vidro do veículo, que alegoricamente, se divide ora se apresentando como barreira física, ora se apresentando como transposição e reflexão. O vidro do automóvel, sempre semi-aberto (dividindo o espaço público e privado) permite ao mesmo tempo observar o que se passa “lá fora” sem deixar de refletir “cá dentro”. Situação idêntica acontece quando a câmera se posiciona do lado de fora. Ao mesmo tempo em que vemos Badii ao volante, com suas profundas olheiras marcadas pelo cansaço e pela desistência, vemos as nuvens do céu iraniano refletidas no pára-brisa do carro. Espaço etéreo, mas também elementos de composição da geografia local, reconfigurada no conjunto do filme.

Há uma obsessão positiva que caracteriza os personagens de Kiarostami: Badii, a morte e a procura de um cúmplice; o garoto de Onde Fica a Casa do Meu Amigo?, e sua busca desesperada pela casa de um colega para lhe devolver o caderno; o jovem ator de Através das Oliveiras que, a todo custo, tenta obter o consentimento e o amor de sua pretendente. Personagens que mostram a mesma determinação do diretor, que, mesmo fugindo das narrativas fabulares, pensa o mundo que o cerca, expondo em seus filmes sua crença no cinema, através de efeitos-mundo.

Raphael Mesquita