TERRA
Aleksandr Dovzhenko, Zemlya, União Soviética, 1930

Imagens 1, 2, 3, 4 e 5:

“O cinema sonoro inventou o silêncio”: conhecidíssimo aforismo de Robert Bresson em Notas sobre o Cinematógrafo que, no entanto, é desmentido por Aleksandr Dovzhenko na obra-prima Terra. Basil, jovem entusiasta e partidário comunista, leva o trator para sua vila natal e organiza fazendas coletivas entre os camponeses, mas acaba assassinado por Thomas, rico senhor de terras e representante dos kulaks, cujo poder se encontra por um fio devido à mecanização do campo.

São cinco imagens em seqüência, nas quais Opanas lamenta a morte do filho. O pai está sentado à mesa, pensativo; com a mão direita sustenta o rosto cabisbaixo, com a esquerda segura o joelho (1). Lento fade out conduz ao escurecimento total do quadro (2). Através de fade in, porém, retorna-se para o mesmo plano de Opanas à mesa (3), ao invés de se avançar temporalmente na narrativa. O processo ocorre mais uma vez: novo fade out / tela preta (4) e repetição das imagens 1 e 3 (5). O escurecimento de tela, desde o cinema mudo até o de hoje, em geral apenas sinaliza ou o término da seqüência – substituindo a cortina que se fecha ao fim de cada ato ou cena no teatro –, ou a passagem do tempo entre os acontecimentos do enredo quem apesar de muitas vezes imprecisa, aponta para avanço representativo (horas, dias, meses ou anos) e inexorável em direção ao futuro (tempo sujeito à ação, ao movimento; tempo do cinema clássico-narrativo; tempo cartesiano-newtoniano).

No conjunto das três imagens idênticas de Opanas intercaladas por telas pretas, contudo, não há final de seqüência e existe, ao contrário, a continuidade do ato no presente ou, ainda, o presente que se estende continuamente, de sorte que a função dos escurecimentos se torna expressiva: eles mergulham o pai no silêncio profundo pela perda do filho, na revolta impotente contra o assassino que se esconde, na tristeza e na solidão de ter que enterrá-lo contrariando a ordem natural de que os mais idosos partem antes dos mais jovens, no arrependimento por não o ter apoiado em sua luta contra os kulaks. Impossibilitado de representar as emoções conflitantes e dolorosas de Opanas través do som, e da omissão e deslocamento propositais do som, Dovzhenko cria o equivalente visual para o silêncio – os lentos e pesados quadros negros que caem sobre os planos estáticos e congelados do pai, que teimam em se repetir incessantemente, sem saírem do lugar, como que relembrando a dor avassaladora trazida pela morte de basil.

Imagens 6, 7, 8 e 9:

Ucrânia, país natal de Aleksandr Dovzhenko (1894-1956). Simon está para morrer (6), após setenta e cinco anos arando a terra com bois. O conflito se estabelece, desde o início, entre Basil e Opanas – o novo e o velho, as relações econômicas do comunismo nascente e os camponeses céticos arraigados em tradições arcaicas, o campo mecanizado com tratores e organizado em fazendas coletivas e o trabalho manual da lavoura controlado pelos senhores ricos dos kulaks, o ateísmo e a religiosidade cristã.

Dovzhenko, no entanto, está na contramão de seus colegas soviéticos da década de 20. Sua câmera não é o olho onipresente que tudo vê de Dziga Vertov em Kinoglaz, O Homem com a Câmera, Entuziazm e Três Cânticos para Lênin, sua montagem não privilegia a dialética nem o choque emocional e intelectual do espectador como a de Eisenstein em A Greve, O Encouraçado Potemkin, Outubro (o cineasta e teórico, aliás, também refletiu sobre a mecanização do campo em A Linha Geral, realizado entre 1926-1929, e no inacabado O Prado de Beijin, feito entre 1935-1937). O estilo do diretor ucraniano se impõe desde os primeiros planos do filme, que apresentam a natureza virgem: as nuvens, a linha do horizonte, o vento balançando os trigais (7), os girassóis (8), as maçãs nas árvores – impossível não se lembrar de Terrence Malick.

O tempo de Dovzhenko não é o das fábricas, das máquinas e do meio urbano, como em Vertov, Pudovkin ou mesmo Eisenstein, mas o da terra: o homem, sim, enquanto força transformadora de suas condições sócio-políticas e econômicas, mas sempre submetido ao ciclo permanente de vida-morte-renascimento dos processos naturais de que faz parte. Terra desacelera, baseia-se nas durações mais lentas e demoradas, às vezes imperceptíveis, da natureza, ao invés de no imediatismo e na velocidade característicos do século XX: o anti-vanguardismo do filme quanto à temporalidade, que submete o homem aos rigores e intempéries do ambiente, conectam-no a Limite, de Mário Peixoto (em que o próprio horizonte sem fim serve de prisão inescapável aos personagens), e a O Homem de Aran, de Robert J. Flaherty (em que os habitantes trabalham na ilha pedregosa, à espera que a fúria do mar recaia sobre eles). Planos mais longos, fusões suaves e delicadas que aproximam cada vez mais o quadro para mostrar detalhes exuberantes – Dovzhenko trabalha com mudanças gradativas na escala dos planos, de geral para conjunto, de conjunto para médio, de médio para próximo, nos quais se inserem os closes-up dos atores em interpretações pausadas, quase ritualísticas (9).

Segundo Bela Balázs em A Estética do Filme, enquadramentos próximos de rostos existem para além do tempo e do espaço, pois expressam sentimentos e pensamentos, ou seja, a dimensão da alma. De modo que a própria paisagem que o cineasta explora é um rosto, uma fisionomia: o tema da paisagem-rosto, enunciado por Jacques Aumont em O Olho Interminável, que olha os personagens e que, ao mesmo tempo, devolve-lhes o olhar, porque eles se projetam emocionalmente sobre o ambiente. “A paisagem é um estado de alma”, frase de Amiel que inunda Terra por todos os lados.

Imagens 10, 11, 12, 13, 14, 15:

O trator chega à vila. Acontecimento que, pela transformação radical que acarreta nas relações entre os ricos fazendeiros e os camponeses, recebe de Dovzhenko tintas épicas dignas das epopéias clássicas. O recurso simples, e que aqui o aproxima de Eisenstein, está na expansão e na dilatação do tempo através da montagem, gerando graus cada vez maiores de expectativa e de impacto emocional com o desenrolar das conseqüências (como na revolta dos operários devido ao camarada que se enforca em A Greve, nas escadarias de Odessa em O Encouraçado Potemkin, no levante bolchevique sufocado em Outubro).

Primeiro, há o plano do boi isolado, que progride para uma dupla e um trio (10). Corte para três fazendeiros dos kulaks (11): a regra de ouro, a trindade, para mostrar as forças afetadas pela mecanização do campo, ou seja, aqueles que serão substituídos pelas fazendas coletivas e pelos tratores – os senhores e o gado com que exploram a mão-de-obra dos camponeses. Dovzhenko prossegue com planos da multidão, de onde escolhe determinados rostos que reaparecem ao longo de toda a seqüência, em closes-up, na espera pela chegada do veículo. A angústia é reforçada pela estrada a perder de vista, para a qual os olhos ansioso se voltam, e que a linha do telégrafo confere a noção de perspectiva (12). O trator aparece, conduzido por Basil e seguido a pé por seus camaradas. Rebuliço, correria e comemoração na vila. Os fazendeiros dos kulaks, reunidos, tentam falar com o comitê central do partido por telefone, mas não escutam (13): são surdos às mudanças.

A máquina, no entanto, pára – o que aconteceu? O projeto comunista fracassou? O tempo se estica ainda mais para causar apreensão e incerteza. Suspense, rostos tensos – de Basil, dos senhores ricos, dos camponeses. O trator, enfim, volta à sua marcha (14), pois faltava apenas água no radiador. “É um fato!”, declara solene o velho Peter, avô de Basil, ligado à religião – que o cineasta também identifica ao atraso, à exploração e ao conservadorismo – a ponto de conversar com Simon no túmulo sobre a vida após a morte. Basil discursa, prega o fim das cercas que demarcam as terras, e entra em conflito com Thomas (15), que não aceita o fim iminente dos kulaks, selando, dessa feita, o destino trágico do herói.

Imagens 16, 17, 18, 19 e 20:

Curioso que a seqüência mais abstrata de Terra seja a que as máquinas trabalham no campo. Dovzhenko, ao invés de se centrar nos ganhos práticos e concretos que trator, a colheitadeira, a separadora de grãos e a misturadora da massa trazem aos camponeses, prefere temas mais fundamentais aos homens, conquanto se dirigem não apenas ao corpo, como também ao espírito: liberdade, igualdade e fraternidade (para ficar no lema da Revolução Francesa), ou fim da opressão pela posse indébita da mais-valia pelos fazendeiros ricos (mais de acordo com os ideais da Revolução Russa).

Embora Opanas abra a seqüência capinando o trigal com sua foice (16), a eficiência mecânica (17) e a alegria dos trabalhadores finalmente o convencem a aderir à cooperativa de trabalhadores. O cineasta utiliza cortes rápidos, já que se trata da intervenção humana na natureza, e mostra o processo inteiro de fabrico do pão – a terra que se ara, as sementes que se plantam, o trigo que se colhe, os grãos que se separam, a massa que se mistura, o pão que se embala e que se estoca. Unindo as duas pontas da atividade econômica, coloca lado a lado, em plano consecutivos que exploram a semelhança física e de textura entre ambas, a terra revirada pelo trator (18) e o fomento da massa (19). Os grãos, sacudidos pelos estranhos equipamentos que dançam ao ritmo da cena, geram imagens de pura plasticidade (20), mais próximos do cinema experimental e de vanguarda dos anos 20, que misturam música com formas, movimentos, cores, luzes e sombras, enfim, que se preocupam com a ordenação do grafismo dentro do quadro – por exemplo, curtas metragens de László Moholy-Nagy (Lichtspiel: Schwartz- Weiss-Grau), de Walter Ruttman (Opus 1, Opus 2 e Opus 3) e de Hans Richter (Rhythmus 21 e Rhythmus 23) –, do que dos filmes narrativos convencionais. Outra vez, coincidência de Terra com A Linha Geral, de Eisenstein, que trabalha igualmente com planos que beiram à abstração e exalta o impacto das máquinas no campo.

Imagens 21, 22 e 23:

O contraste entre a alegria de Basil, que dança no caminho que o leva de volta para casa, e a atmosfera fantasmagórica da noite, envolta em névoa (21), prenuncia a morte do herói. Para representar o assassinato de Basil – covarde, realizado às escondidas, de tocaia, enquanto todos dormem –, Dovzhenko não utiliza recurso mais comum ao cinema mudo, ou seja, o insert de plano detalhe da arma entre os momentos anterior e posterior do disparo (como faz D.W. Griffith, por exemplo, em O Nascimento de Uma Nação, quando Booth atira em Lincoln no teatro) – o que forçosamente revelaria a identidade do criminoso. O diretor, ao contrário, opta pelo som, que se ainda não pode ser escutado pelo público, dado os limites da técnica cinematográfica, já faz parte da diegese do filme e o estrutura dramaticamente (tal qual a porta do carro que bate e faz com que a florista cega confunda Carlitos com milionário em Luzes da Cidade). Assim, o tiro é “ouvido” pelo cavalo (22): indicação visual da existência do efeito sonoro interior à narrativa, antes que o assassino, no quadro seguinte, fuja em disparada enquanto o corpo de Basil jaz inerte no solo (23).

Imagens 24, 25, 26, 27 e 28:

Opanas nega Deus e os padres. Deseja que Basil seja enterrado por seus camaradas, de acordo com a nova vida pela qual lutou, e não segundo antigas religiões. Clímax de Terra, o enterro do herói, assim como a chegada do trator ao vilarejo, também se fundamenta na dilatação épica do tempo.

Dovzhenko, que consegue manter a seqüência durante inacreditáveis treze minutos, intercruza cinco eventos paralelos. Primeiro, acontece o funeral propriamente dito de Basil (24), que arrasta multidões entoando cânticos socialistas e que permite ao diretor belos closes-up em contra-plongée contra o céu, terminando no discurso inflamado do manifestante de que o sacrifício não foi em vão, pois a mensagem de esperança se espalhará pelo mundo através dos aviões que os sobrevoam (e que o filme omite, apenas indica com os rostos voltados para cima). Segundo, o padre que amaldiçoa as fazendas coletivas dentro da igreja, pedindo a Deus para que castigue os camponeses (25) – imagens reforçadas pelas senhoras dos kulaks horrorizadas com o enterro conduzido sem sacerdotes, ao mesmo tempo em que executam o sinal da cruz. Terceiro, a mulher grávida que entra em trabalho de parto (26) e que dá a luz uma nova criança (como os aviões, sequer mostrada pelo cineasta, que sinaliza o nascimento pelo sorriso contente da mãe). Quarto, a loucura que se apodera de Thomas, que corre em disparada pelos campos, aflito e angustiado (27), confessando o assassinato de Basil – mas ninguém lhe presta atenção, devido sua insignificância –, e clamando pela posse das terras. Quinto e último, a amada do herói que, nua, desespera-se em casa (28) – ela simboliza a fertilidade da terra, o ventre de onde, em oposição à morte que permeia a seqüência, nasce a vida (como também já nascera da mulher grávida).

Sergei Eisenstein critica, em A Forma do Filme, a inserção da mulher nua em Terra com violência. Segundo ele, Dovzhenko não soube transformar o corpo da mulher em imagem do início confirmador da vida, de ardente fertilidade e sensualmente palpável, uma vez que não abstraiu, através dos primeiros planos, a representação natural. Para Eisenstein, Terra fracassa em contrastar o panteísmo da natureza com o tema da morte e do funeral – o espectador não consegue se livrar da mulher concreta, comum, que se debate na cabana cercada por fornos, panelas, toalhas, bancos, detalhes da vida cotidiana que o impedem de visualizar a metáfora pretendida. Há que se notar, porém, que Dovzhenko trabalha ao longo de todo filme com a junção dos aspectos imemorial, imaterial, transcendente e abstrato do tempo com a nova realidade sócio-econômica que o socialismo introduz nos campos – com o local, enfim, que o homem ocupa na natureza, sujeito e paciente dos mesmos processos de morte, de vida e de mudança (ou seja, de revolução) constantes que o cercam.

Imagens 29 e 30:

A chuva desaba sobre o campo (29). Símbolo de renovação e de renascimento, ela fertiliza a terra para as novas colheitas – longe, portanto, do significado que possui em Um Dia no Campo, de Jean Renoir: a ruptura súbita e passageira das emoções sufocadas. Dovzhenko completa o ciclo da morte e da vida na natureza, que o homem também integra. O plano final de Terra apresenta Basil segurando a namorada nos braços (30). Será a aliança entre o novo trabalhador que nasce com o comunismo (não mais oprimido, proprietário coletivo das máquinas com que produz) e a fertilidade do solo, do país?

Leituras ideológicas mais apressadas podem apontar que sim, mas o filme as suplanta – e muito –, tanto que caiu em desgraça durante o regime stalinista, levando consigo seu diretor, cujo gosto pelo poético, pelo épico e pelo evocativo não se encaixaram no realismo socialista que vigorou na União Soviética a partir de meados da década de 30. Dovzhenko bateu de frente, igualmente, com a política oficial de russificação adotada pelo partido, ligado que era às tradições de sua Ucrânia natal. Ditaduras, contudo, passam, enquanto a arte sobrevive: quase oito décadas depois de sua realização, Terra continua entre as maiores obras-primas do cinema.


Paulo Ricardo de Almeida

(DVD Continental)

 

 







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