Imagens
1, 2, 3, 4 e 5:
“O cinema sonoro inventou o silêncio”: conhecidíssimo
aforismo de Robert Bresson em Notas sobre o Cinematógrafo
que, no entanto, é desmentido por Aleksandr Dovzhenko
na obra-prima Terra. Basil, jovem entusiasta
e partidário comunista, leva o trator para sua vila
natal e organiza fazendas coletivas entre os camponeses,
mas acaba assassinado por Thomas, rico senhor de terras
e representante dos kulaks, cujo poder se encontra por
um fio devido à mecanização do campo.
São cinco imagens em seqüência, nas quais Opanas lamenta
a morte do filho. O pai está sentado à mesa, pensativo;
com a mão direita sustenta o rosto cabisbaixo, com a
esquerda segura o joelho (1). Lento fade out
conduz ao escurecimento total do quadro (2).
Através de fade in, porém, retorna-se para o mesmo plano
de Opanas à mesa (3), ao invés de se avançar
temporalmente na narrativa. O processo ocorre mais uma
vez: novo fade out / tela preta (4) e repetição
das imagens 1 e 3 (5). O escurecimento de tela,
desde o cinema mudo até o de hoje, em geral apenas sinaliza
ou o término da seqüência – substituindo a cortina que
se fecha ao fim de cada ato ou cena no teatro –, ou
a passagem do tempo entre os acontecimentos do enredo
quem apesar de muitas vezes imprecisa, aponta para avanço
representativo (horas, dias, meses ou anos) e inexorável
em direção ao futuro (tempo sujeito à ação, ao movimento;
tempo do cinema clássico-narrativo; tempo cartesiano-newtoniano).
No conjunto das três imagens idênticas de Opanas intercaladas
por telas pretas, contudo, não há final de seqüência
e existe, ao contrário, a continuidade do ato no presente
ou, ainda, o presente que se estende continuamente,
de sorte que a função dos escurecimentos se torna expressiva:
eles mergulham o pai no silêncio profundo pela perda
do filho, na revolta impotente contra o assassino que
se esconde, na tristeza e na solidão de ter que enterrá-lo
contrariando a ordem natural de que os mais idosos partem
antes dos mais jovens, no arrependimento por não o ter
apoiado em sua luta contra os kulaks. Impossibilitado
de representar as emoções conflitantes e dolorosas de
Opanas través do som, e da omissão e deslocamento propositais
do som, Dovzhenko cria o equivalente visual para o silêncio
– os lentos e pesados quadros negros que caem sobre
os planos estáticos e congelados do pai, que teimam
em se repetir incessantemente, sem saírem do lugar,
como que relembrando a dor avassaladora trazida pela
morte de basil.
Imagens 6, 7, 8 e 9:
Ucrânia, país natal de Aleksandr Dovzhenko (1894-1956).
Simon está para morrer (6), após setenta e cinco
anos arando a terra com bois. O conflito se estabelece,
desde o início, entre Basil e Opanas – o novo e o velho,
as relações econômicas do comunismo nascente e os camponeses
céticos arraigados em tradições arcaicas, o campo mecanizado
com tratores e organizado em fazendas coletivas e o
trabalho manual da lavoura controlado pelos senhores
ricos dos kulaks, o ateísmo e a religiosidade cristã.
Dovzhenko, no entanto, está na contramão de seus colegas
soviéticos da década de 20. Sua câmera não é o olho
onipresente que tudo vê de Dziga Vertov em Kinoglaz,
O Homem com a Câmera, Entuziazm e Três
Cânticos para Lênin, sua montagem não privilegia
a dialética nem o choque emocional e intelectual do
espectador como a de Eisenstein em A Greve, O
Encouraçado Potemkin, Outubro (o cineasta
e teórico, aliás, também refletiu sobre a mecanização
do campo em A Linha Geral, realizado entre 1926-1929,
e no inacabado O Prado de Beijin, feito entre
1935-1937). O estilo do diretor ucraniano se impõe desde
os primeiros planos do filme, que apresentam a natureza
virgem: as nuvens, a linha do horizonte, o vento balançando
os trigais (7), os girassóis (8), as maçãs
nas árvores – impossível não se lembrar de Terrence
Malick.
O tempo de Dovzhenko não é o das fábricas, das máquinas
e do meio urbano, como em Vertov, Pudovkin ou mesmo
Eisenstein, mas o da terra: o homem, sim, enquanto força
transformadora de suas condições sócio-políticas e econômicas,
mas sempre submetido ao ciclo permanente de vida-morte-renascimento
dos processos naturais de que faz parte. Terra
desacelera, baseia-se nas durações mais lentas e demoradas,
às vezes imperceptíveis, da natureza, ao invés de no
imediatismo e na velocidade característicos do século
XX: o anti-vanguardismo do filme quanto à temporalidade,
que submete o homem aos rigores e intempéries do ambiente,
conectam-no a Limite, de Mário Peixoto (em que
o próprio horizonte sem fim serve de prisão inescapável
aos personagens), e a O Homem de Aran, de Robert
J. Flaherty (em que os habitantes trabalham na ilha
pedregosa, à espera que a fúria do mar recaia sobre
eles). Planos mais longos, fusões suaves e delicadas
que aproximam cada vez mais o quadro para mostrar detalhes
exuberantes – Dovzhenko trabalha com mudanças gradativas
na escala dos planos, de geral para conjunto, de conjunto
para médio, de médio para próximo, nos quais se inserem
os closes-up dos atores em interpretações pausadas,
quase ritualísticas (9).
Segundo Bela Balázs em A Estética do Filme, enquadramentos
próximos de rostos existem para além do tempo e do espaço,
pois expressam sentimentos e pensamentos, ou seja, a
dimensão da alma. De modo que a própria paisagem que
o cineasta explora é um rosto, uma fisionomia: o tema
da paisagem-rosto, enunciado por Jacques Aumont em O
Olho Interminável, que olha os personagens e que,
ao mesmo tempo, devolve-lhes o olhar, porque eles se
projetam emocionalmente sobre o ambiente. “A paisagem
é um estado de alma”, frase de Amiel que inunda Terra
por todos os lados.
Imagens 10, 11, 12, 13, 14, 15:
O trator chega à vila. Acontecimento que, pela transformação
radical que acarreta nas relações entre os ricos fazendeiros
e os camponeses, recebe de Dovzhenko tintas épicas dignas
das epopéias clássicas. O recurso simples, e que aqui
o aproxima de Eisenstein, está na expansão e na dilatação
do tempo através da montagem, gerando graus cada vez
maiores de expectativa e de impacto emocional com o
desenrolar das conseqüências (como na revolta dos operários
devido ao camarada que se enforca em A Greve,
nas escadarias de Odessa em O Encouraçado Potemkin,
no levante bolchevique sufocado em Outubro).
Primeiro, há o plano do boi isolado, que progride para
uma dupla e um trio (10). Corte para três fazendeiros
dos kulaks (11): a regra de ouro, a trindade,
para mostrar as forças afetadas pela mecanização do
campo, ou seja, aqueles que serão substituídos pelas
fazendas coletivas e pelos tratores – os senhores e
o gado com que exploram a mão-de-obra dos camponeses.
Dovzhenko prossegue com planos da multidão, de onde
escolhe determinados rostos que reaparecem ao longo
de toda a seqüência, em closes-up, na espera pela chegada
do veículo. A angústia é reforçada pela estrada a perder
de vista, para a qual os olhos ansioso se voltam, e
que a linha do telégrafo confere a noção de perspectiva
(12). O trator aparece, conduzido por Basil e
seguido a pé por seus camaradas. Rebuliço, correria
e comemoração na vila. Os fazendeiros dos kulaks, reunidos,
tentam falar com o comitê central do partido por telefone,
mas não escutam (13): são surdos às mudanças.
A máquina, no entanto, pára – o que aconteceu? O projeto
comunista fracassou? O tempo se estica ainda mais para
causar apreensão e incerteza. Suspense, rostos tensos
– de Basil, dos senhores ricos, dos camponeses. O trator,
enfim, volta à sua marcha (14), pois faltava
apenas água no radiador. “É um fato!”, declara solene
o velho Peter, avô de Basil, ligado à religião – que
o cineasta também identifica ao atraso, à exploração
e ao conservadorismo – a ponto de conversar com Simon
no túmulo sobre a vida após a morte. Basil discursa,
prega o fim das cercas que demarcam as terras, e entra
em conflito com Thomas (15), que não aceita o
fim iminente dos kulaks, selando, dessa feita, o destino
trágico do herói.
Imagens 16, 17, 18, 19 e 20:
Curioso que a seqüência mais abstrata de Terra
seja a que as máquinas trabalham no campo. Dovzhenko,
ao invés de se centrar nos ganhos práticos e concretos
que trator, a colheitadeira, a separadora de grãos e
a misturadora da massa trazem aos camponeses, prefere
temas mais fundamentais aos homens, conquanto se dirigem
não apenas ao corpo, como também ao espírito: liberdade,
igualdade e fraternidade (para ficar no lema da Revolução
Francesa), ou fim da opressão pela posse indébita da
mais-valia pelos fazendeiros ricos (mais de acordo com
os ideais da Revolução Russa).
Embora Opanas abra a seqüência capinando o trigal com
sua foice (16), a eficiência mecânica (17)
e a alegria dos trabalhadores finalmente o convencem
a aderir à cooperativa de trabalhadores. O cineasta
utiliza cortes rápidos, já que se trata da intervenção
humana na natureza, e mostra o processo inteiro de fabrico
do pão – a terra que se ara, as sementes que se plantam,
o trigo que se colhe, os grãos que se separam, a massa
que se mistura, o pão que se embala e que se estoca.
Unindo as duas pontas da atividade econômica, coloca
lado a lado, em plano consecutivos que exploram a semelhança
física e de textura entre ambas, a terra revirada pelo
trator (18) e o fomento da massa (19).
Os grãos, sacudidos pelos estranhos equipamentos que
dançam ao ritmo da cena, geram imagens de pura plasticidade
(20), mais próximos do cinema experimental e
de vanguarda dos anos 20, que misturam música com formas,
movimentos, cores, luzes e sombras, enfim, que se preocupam
com a ordenação do grafismo dentro do quadro – por exemplo,
curtas metragens de László Moholy-Nagy (Lichtspiel:
Schwartz- Weiss-Grau), de Walter Ruttman (Opus
1, Opus 2 e Opus 3) e de Hans Richter
(Rhythmus 21 e Rhythmus 23) –, do que
dos filmes narrativos convencionais. Outra vez, coincidência
de Terra com A Linha Geral, de Eisenstein,
que trabalha igualmente com planos que beiram à abstração
e exalta o impacto das máquinas no campo.
Imagens 21, 22 e 23:
O contraste entre a alegria de Basil, que dança
no caminho que o leva de volta para casa, e a atmosfera
fantasmagórica da noite, envolta em névoa (21),
prenuncia a morte do herói. Para representar o assassinato
de Basil – covarde, realizado às escondidas, de tocaia,
enquanto todos dormem –, Dovzhenko não utiliza recurso
mais comum ao cinema mudo, ou seja, o insert
de plano detalhe da arma entre os momentos anterior
e posterior do disparo (como faz D.W. Griffith, por
exemplo, em O Nascimento de Uma Nação, quando
Booth atira em Lincoln no teatro) – o que forçosamente
revelaria a identidade do criminoso. O diretor, ao contrário,
opta pelo som, que se ainda não pode ser escutado pelo
público, dado os limites da técnica cinematográfica,
já faz parte da diegese do filme e o estrutura dramaticamente
(tal qual a porta do carro que bate e faz com que a
florista cega confunda Carlitos com milionário em Luzes
da Cidade). Assim, o tiro é “ouvido” pelo cavalo
(22): indicação visual da existência do efeito
sonoro interior à narrativa, antes que o assassino,
no quadro seguinte, fuja em disparada enquanto o corpo
de Basil jaz inerte no solo (23).
Imagens 24, 25, 26, 27 e 28:
Opanas nega Deus e os padres. Deseja que Basil seja
enterrado por seus camaradas, de acordo com a nova vida
pela qual lutou, e não segundo antigas religiões. Clímax
de Terra, o enterro do herói, assim como a chegada
do trator ao vilarejo, também se fundamenta na dilatação
épica do tempo.
Dovzhenko, que consegue manter a seqüência durante inacreditáveis
treze minutos, intercruza cinco eventos paralelos. Primeiro,
acontece o funeral propriamente dito de Basil (24),
que arrasta multidões entoando cânticos socialistas
e que permite ao diretor belos closes-up em contra-plongée
contra o céu, terminando no discurso inflamado do manifestante
de que o sacrifício não foi em vão, pois a mensagem
de esperança se espalhará pelo mundo através dos aviões
que os sobrevoam (e que o filme omite, apenas indica
com os rostos voltados para cima). Segundo, o padre
que amaldiçoa as fazendas coletivas dentro da igreja,
pedindo a Deus para que castigue os camponeses (25)
– imagens reforçadas pelas senhoras dos kulaks horrorizadas
com o enterro conduzido sem sacerdotes, ao mesmo tempo
em que executam o sinal da cruz. Terceiro, a mulher
grávida que entra em trabalho de parto (26) e
que dá a luz uma nova criança (como os aviões, sequer
mostrada pelo cineasta, que sinaliza o nascimento pelo
sorriso contente da mãe). Quarto, a loucura que se apodera
de Thomas, que corre em disparada pelos campos, aflito
e angustiado (27), confessando o assassinato
de Basil – mas ninguém lhe presta atenção, devido sua
insignificância –, e clamando pela posse das terras.
Quinto e último, a amada do herói que, nua, desespera-se
em casa (28) – ela simboliza a fertilidade da
terra, o ventre de onde, em oposição à morte que permeia
a seqüência, nasce a vida (como também já nascera da
mulher grávida).
Sergei Eisenstein critica, em A Forma do Filme,
a inserção da mulher nua em Terra com violência.
Segundo ele, Dovzhenko não soube transformar o corpo
da mulher em imagem do início confirmador da vida, de
ardente fertilidade e sensualmente palpável, uma vez
que não abstraiu, através dos primeiros planos, a representação
natural. Para Eisenstein, Terra fracassa em contrastar
o panteísmo da natureza com o tema da morte e do funeral
– o espectador não consegue se livrar da mulher concreta,
comum, que se debate na cabana cercada por fornos, panelas,
toalhas, bancos, detalhes da vida cotidiana que o impedem
de visualizar a metáfora pretendida. Há que se notar,
porém, que Dovzhenko trabalha ao longo de todo filme
com a junção dos aspectos imemorial, imaterial, transcendente
e abstrato do tempo com a nova realidade sócio-econômica
que o socialismo introduz nos campos – com o local,
enfim, que o homem ocupa na natureza, sujeito e paciente
dos mesmos processos de morte, de vida e de mudança
(ou seja, de revolução) constantes que o cercam.
Imagens 29 e 30:
A chuva desaba sobre o campo (29). Símbolo
de renovação e de renascimento, ela fertiliza a terra
para as novas colheitas – longe, portanto, do significado
que possui em Um Dia no Campo, de Jean Renoir:
a ruptura súbita e passageira das emoções sufocadas.
Dovzhenko completa o ciclo da morte e da vida na natureza,
que o homem também integra. O plano final de Terra
apresenta Basil segurando a namorada nos braços (30).
Será a aliança entre o novo trabalhador que nasce com
o comunismo (não mais oprimido, proprietário coletivo
das máquinas com que produz) e a fertilidade do solo,
do país?
Leituras ideológicas mais apressadas podem apontar que
sim, mas o filme as suplanta – e muito –, tanto que
caiu em desgraça durante o regime stalinista, levando
consigo seu diretor, cujo gosto pelo poético, pelo épico
e pelo evocativo não se encaixaram no realismo socialista
que vigorou na União Soviética a partir de meados da
década de 30. Dovzhenko bateu de frente, igualmente,
com a política oficial de russificação adotada pelo
partido, ligado que era às tradições de sua Ucrânia
natal. Ditaduras, contudo, passam, enquanto a arte sobrevive:
quase oito décadas depois de sua realização, Terra
continua entre as maiores obras-primas do cinema.
Paulo Ricardo de Almeida
(DVD Continental)
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