O
único extra do DVD de Saraband é um making
of do filme. E é o suficiente, o melhor extra que
vejo em muito tempo. No vídeo, um Bergman descontraído,
brincalhão e generoso com os atores substitui a imagem
do gênio tirano e ranzinza que tanto fãs quanto detratores
gostavam de cultivar. A atenção ao mínimo detalhe, o
ensaio exaustivo de algumas cenas, a exigência com os
atores, a meticulosidade na construção dos cenários
e dos planos, tudo isso está lá. Mas a maneira de conduzir
essa orquestra é sempre doce, sempre paciente e atenciosa.
Antes de esgotar a maturidade do diretor numa figura
de vovô gente boa, o making of ilustra um processo
de composição que abre novas perspectivas sobre a obra
do diretor sueco. Novas perspectivas sobre Bergman,
a essa altura do campeonato? Sim. Na primeira reunião
com o elenco, como é mostrado no making of, ele
resolve “levar para o pessoal” e conta de que forma
recebeu a morte da esposa. Era para ser simples, uma
pessoa estar viva e depois estar morta, mas existia
um complicador: ele não conseguia aceitar a idéia de
que não veria mais a esposa, nunca mais. O que fazer?
Erland Josephson, seu eterno ator, deu-lhe o conselho
valioso: não desista de vê-la. E Bergman seguiu o conselho,
não desistiu. Mas inverteu as expectativas, realizando
Saraband como a experiência da morte em vida.
Já vimos, em tantos outros filmes, os mortos revisitando
o mundo dos vivos, ou os vivos tendo uma experiência
de interseção com a morte. Agora é como se a morte fosse
trazida para a própria experiência de vida, fosse transformada
no avesso cúmplice do ser-vivo. Do simbolismo fácil
de O Sétimo Selo e Morangos Silvestres,
Bergman salta para algo muito maior, e faz seu grande
filme sobre aqueles mesmos temas: a morte, a família,
o medo da loucura, a misantropia.
Johan (Josephson) e Marianne (Liv Ullmann) retornam
após 30 anos: eles vêm de Cenas de um Casamento,
um dos poucos filmes de Bergman que resistiram a todas
as revisões. Retornam e se põem face a face, já na segunda
cena do filme, para dizer do que Saraband se
constrói basicamente: cenas a dois. Ex-marido e mulher,
pai e filha, mãe e filha, pai e filho, filho e ex-mulher
do pai, neta e ex-mulher do avô. Dos cenários montados
em estúdio, quase sempre alguma janela é deixada aberta,
dando para uma paisagem (trompe l’oeil, ok, mas
isso pouco importa) que areja o huis clos familiar
com doses de bucolismo e juventude. A natureza é o que
permanece jovem – não por acaso, a única personagem
autorizada a possuir uma cena externa, correndo pela
floresta, é Karin, a única jovem do filme. Ela corre
por entre as árvores e cai à beira de um pequeno lago.
Após equilibrar-se sobre um tronco que divide a terra
e a água, Karin se encaminha – conscientemente, ao que
parece – ao fora-de-campo. Ela sai de quadro pela borda
inferior. Se fosse num filme de Hitchcock, não teríamos
dúvida: a saída de quadro pela borda inferior não poderia
pontuar senão a morte da personagem. Mas em Bergman
não é bem assim. Até porque a cena não termina depois
que Karin sai de quadro: a câmera permanece fixa, mesmo
plongé sobre o laguinho, quadro vazio, ouvimos
dois ou três gritos esganiçados de Karin e ela retorna,
pela mesma parte inferior da imagem, pelo mesmo lugar
por onde saíra, agora de costas. De alguma forma, sua
camisola vira uma fantasia de fantasma. Mas o temporário
abandono do quadro não significou sua morte, e sim a
aquisição de uma nova camada de vida, ou de uma nova
forma de vida. A partir desse momento, Karin
traz para o mundo dos vivos um eco (seu grito ecoa como
poucos gritos haviam ecoado na história do cinema) de
outra dimensão. Quem sabe assim ela não consegue interpretar
no violoncelo a sonata anteriormente impossível?
Karin não podia tocar a sonata de Hindemith porque estava
demasiado viva, enquanto a música solicitava um paradoxo:
“viva, sem expressão”. Será esse o preço da arte em
Saraband, aproximar-se deliberadamente da morte?
Bergman, vívido, hiperativo no set de filmagem, mais
do que nunca encarou a criação como um namoro com a
morte, a solidão e a loucura – um namoro juvenil, inconseqüente.
Ele fez um filme que tem entre seus protagonistas uma
foto, uma foto em preto e branco de Anna, a falecida
esposa de Henrik. Anna é o elo que falta entre Henrik
e Karin (pai e filha). Da mesma forma, Martha, que só
será vista no epílogo, é o elo ausente na história de
Johan e Marianne, personagem jogada a escanteio para
aparecer num final desconcertante, em que a matéria
estética de Persona é retomada e dá vazão a um
distúrbio profundo do campo-contracampo. “Pela primeira
vez me senti tocando minha filha”, diz Marianne. O toque,
o carinho que ela faz no rosto de Martha, é o afeto-distúrbio
que leva esse campo-contracampo de Saraband a
um terreno quase sobrenatural. Mais uma cena a dois,
mais uma troca de sorriso e de choro. Godard certa vez
fez um filme em doze tableaux (Viver a Vida),
que eram doze formas diferentes de filmar um diálogo
entre um homem e uma mulher. Bergman fez Saraband
em dez capítulos mais prólogo e epílogo, somando
igualmente doze. Porém seus quadros não exigem exatamente
a interação homem-mulher: exigem o número dois e a presença-ausência
de um terceiro. Um morto, um vivo e um morto-vivo. Anna,
Henrik e Karin, por exemplo.
Por que Johan e Marianne se reencontram, afinal? Por
que ele atravessa o crepúsculo da vida e ela sentiu
que devia passar uns dias – os últimos – ao seu lado?
Talvez. O que importa, no entanto, é que a “última noite”
deles fica registrada com toda força. Na “hora antes
do amanhecer”, Johan vai ao quarto de Marianne e eles
deitam nus na cama, para um último sono tranqüilo lado
a lado. Os corpos repousam calmamente, a inquietação
de Johan se dissipa na penumbra. Outra cena de interior,
outra cena de “câmara”. E aí a pergunta: um filme para
a televisão? A telinha sempre serviu como um detector
de mentiras para certos filmes – aquele movimento de
câmera que na tela gigante causa impacto pode se ver
ridicularizado na “redução” para a TV (efeito estético
anestesiado, ausência de significado detectada, resta
o quê?). Mas e um filme pensado para a televisão, pode
ele ser reprovado na sala de cinema? No caso de Saraband,
duvido. As câmeras fazem a cobertura do espaço, o cenário
é artificial, o som está colado à imagem... E o que
vemos emergir de cada um desses procedimentos tipicamente
televisivos é uma coisa um pouquinho mais antiga na
história das invenções humanas: o cinema. Se Karin não
fica quieta enquanto fala, anda de um lado para outro
contando para Marianne a briga que teve com o pai, a
câmera tenta acompanhá-la, reenquadra, tenta ser tão
selvagem quanto a personagem – câmera de televisão.
Num momento seguinte, contudo, na já descrita cena da
floresta, é o fora-de-campo que se torna crucial para
o filme (a TV não era destituída do fora-de-campo?).
Prova de que seria interessante se o filme tivesse entrado
em cartaz nos cinemas daqui antes do lançamento em DVD.
A tela gigante só teria a acrescentar à nossa experiência
com o filme.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
(DVD Sony Pictures)
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