PUNHOS DE CAMPEÃO
Robert Wise, The Set-Up, EUA, 1949

Se pensarmos que A Maldição do Sangue de Pantera (The Curse of the Cat People, 1944) e Jornada nas Estrelas, o Filme (Star Trek, the Movie, 1979) foram assinados pelo mesmo diretor, teremos uma idéia da longevidade, da abrangência e da multiplicidade da filmografia de Robert Wise. Com Punhos de Campeão (The Set-Up, 1949), Wise firmou-se como um dos mais talentosos cineastas jovens de Hollywood, integrado à onda de renovação do cinema norte-americano na virada dos anos 1940 para os 50. E com toda a razão. Punhos de Campeão, produção pequena da RKO Radio, sem dificuldade alguma pode ser situada entre o que de melhor se produziu em Hollywood durante a chamada “época de ouro” (1930-40-50). Mais: é um desses filmes clássicos que não estacionaram no tempo.

Seria também injustiça referir-se a Punhos de Campeão apenas como um dos ótimos exemplares do filme sobre boxe, tema de longa tradição nos Estados Unidos. O filme de Robert Wise extrapola em muito os limites desse tipo de catalogação, a ponto de não ser possível encaixá-lo nos diversos gêneros ou subgêneros correntes - noir, gangster, filme de luta -, já que, pela excelência da construção dramática, o diálogo com tais vertentes implicou na superação de todas elas. Resta - e isso não é pouco! - acompanharmos o drama de personagens tão marcantes quanto raros, como o lutador em fim-de-carreira Bill “Stoker” Thompson (Robert Ryan, em excelente interpretação) e sua mulher Julie (Audrey Totter), durante um período de 1 hora e 15 minutos diegeticamente trabalhados na narrativa: o tempo da ação corresponde ao tempo da projeção do filme.

Esse dado acima mencionado - a especial construção dramática do tempo -, foi louvado naquela época como uma prova de que mesmo o cinema norte-americano curvava-se ao realismo, nota tão impactante quanto difusa, que dava o tom daquilo que hoje chamamos genericamente de “cinema moderno”. No momento em que o cinema mundial reconfigurava-se no plano político-econômico (fim da Segunda Guerra Mundial, início da Guerra Fria) e estético (neo-realismo italiano), uma nova geração de cineastas hollywoodianos - entre eles, Mark Robson, Elia Kazan, Jules Dassin, Robert Rossen, Nicholas Ray e o próprio Wise - conseguiam levar às telas novos temas, novos tratamentos, novos personagens e sobretudo um arrojo realmente notável nos seus diversos estilos de composição cinematográfica.

O chamado realismo desse cinema era expresso na escolha das filmagens em locação, na elaboração de uma forma mais agressiva de fotografar e de montar, no apreço pelos temas de impacto político e social, no cuidado com a ambiência e com o tempo interno das ações, no uso não-esquemático da trilha sonora, na aplicação inteligente do baixo-orçamento, no trabalho com atores desconhecidos do grande público e, sobretudo, através de uma maior complexidade/ambigüidade na construção dos personagens. Esses elementos faziam do trabalho dessa geração um passo além do convencionalismo das “grandes produções”. Mesmo respeitando o “estilo clássico”, tais filmes/diretores representaram, para aquele período, o “cinema moderno” em terras hollywoodianas. Tudo, aliás, fica mais claro se lembrarmos que um diretor como Robert Wise teve como duas escolas de formação os filmes produzidos por Val Lewton e Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941), de Orson Welles, do qual foi montador.

Obra de um rigor impecável, Punhos de Campeão tem de sobra a maior parte das qualidades apontadas acima. O cuidado com o qual o fio narrativo é estruturado e a forma como as relações entre os personagens são tecidas, imprimem no filme a marca de um cinema de poesia. Bem entendido: uma poesia crua, violenta, plástica, radicalmente diversa do que se poderia pensar a respeito de um certo “cinema de poesia” bastante meloso, arrogante e no fundo mentiroso. O roteiro escrito por Art Cohn baseia-se, aliás, em um poema de Joseph Marcus March, mas não é essa a razão de mencionarmos aqui a poesia. Independente de sua fonte, Punhos de Campeão é um poema cinematográfico, como o são, por exemplo, os filmes de Samuel Fuller em seus momentos mais experimentais (Shock Corridor, The Naked Kiss etc.).

O título em inglês (The Set-Up, algo como “a armação” ou “o arranjo”) dá melhor a dimensão da honestidade de Wise em sua narrativa, muito mais direta e cruel do que pode fazer supor o título em português. O acordo escuso a que o título se refere se dá entre o empresário corrupto Tiny (George Tobias), que agencia o decadente “Stoker” Thompson, e um gangster de nome para nós bastante sugestivo, Little Boy (Alan Baxter). Pelo trato, “Stoker” deveria cair no segundo round, dando a vitória a “Tiger” Nelson, lutador ligado à máfia de Little Boy. Mas Tiny decide nada revelar a “Stoker”, acreditando que a derrota viria naturalmente, como das outras vezes.

“Stoker” Thompson vai participar da luta final de uma série de confrontos na arena de Paradise City. Sua mulher, Julie, já não suporta mais vê-lo perder e voltar inteiramente destruído para casa. Tem sido assim nas últimas lutas ocorridas em diversas cidades; por quê seria diferente em Paradise City? Ela decide não ir à luta e “Stoker”, magoado, desce do hotel e dirige-se ao estádio em frente. Depois que se separam, o filme acompanha paralelamente as ações de Julie, que vaga pelas ruas próximas ao hotel e ao estádio, e de “Stoker” Thompson, primeiro em seus preparativos para a luta e, depois, enfrentando “Tiger” Nelson no ringue.

O roteiro amarra esplendidamente a trama mafiosa ao drama pessoal de “Stoker” e Julie. A unidade dramática, tão cara ao classicismo hollywoodiano, tem aqui uma de suas expressões mais cristalinas. Longe de serem arquitetados de forma mecânica ou maniqueísta, os personagens conseguem ganhar uma densidade incomum. Ao espectador é permitido o prazer de procurar compreender as motivações ou ao menos de se interessar verdadeiramente pelos atos de cada um dos personagens que surgem ao longo da narrativa, sejam eles gangsters, boxeadores, empresários, jornaleiros ou aficcionados na platéia da arena.

A direção de Robert Wise tem o cuidado de construir com atenção absolutamente todos os tipos que aparecem nas cenas, não apenas os vividos pelos atores principais, mas também aqueles levados à tela pelos atores secundários e até mesmo pelos figurantes. O resultado, apesar de altamente estilizado, não sugere artificialismo ou inverossimilhança: acredita-se na existência de cada um deles, uma existência cinematográfica (poética) que termina por se tornar metáfora do próprio cinema. Afinal, Punhos de Campeão pode ser visto também como uma reflexão sobre a crueldade da indústria capitalista do espetáculo - à qual o cinema está indissoluvelmente ligado.

Toda a ação de Punhos de Campeão se pauta, assim, pela moral do espetáculo. De uma forma ou de outra, os personagens estão presos a uma engrenagem feroz, no caso, o boxe como profissão, atração popular e negócio. Há os que são lentamente destruídos por essa engrenagem (“Stoker” e os outros lutadores), os que lucram com ela (empresários e mafiosos), os que nela parasitam (todo o comércio em volta do estádio) e os que procuram resistir à sua força destruidora, como é o caso de Julie. O micro-universo montado em torno do estádio de Paradise City, com suas ruas mal-iluminadas e sujas, seus bares asfixiantes, sua fauna marginal e decadente, seus clubes noturnos e hotéis de quinta categoria, serve como retrato de uma civilização dividida entre os que lucram e os que sucumbem, ou, como diz o ditado popular, entre os que faturam e os que aturam. O espetáculo ideal para tal sociedade só pode ser o do dilaceramento, em que apenas um - o mais forte - sobrevive, ainda que coberto de sangue e quase inconsciente.

Vale esclarecer, aqui, que o que interessa a Punhos de Campeão não é condenar a “brutalidade” do boxe ou a “crueldade” dos que assistem a esse esporte. Muito longe disso. Não é a condenação que está em jogo - no filme, nenhum “vilão” é punido -, mas a constatação do drama humano. E a tônica desse drama é a solidão.

Vejamos inicialmente o caso de “Stoker” Thompson. Tudo o que lhe resta é Julie, mas quando, no hotel, logo no princípio do filme, ela se nega a ir assistir à luta, “Stoker” recebe ali o primeiro golpe. A partir de então, seu personagem será construído a partir dessa angústia central: a presença ausente de Julie. No primeiro movimento da narrativa, quando acompanhamos os preparativos de “Stoker” ainda no vestiário, essa angústia será representada visualmente pela janela do quarto do hotel onde o casal está hospedado, janela que ele consegue enxergar do basculante do vestiário. A luz acesa significa que Julie ainda está lá, e portanto não vem ao estádio; mas quando, a certa altura, ele vê a luz do quarto apagar-se, seu rosto se ilumina, e tudo muda: Julie virá. No segundo movimento, quando “Stoker” já está na arena, a presença ausente de Julie é simbolizada pela cadeira vazia na quarta fileira da platéia. “Stoker” compreende então que a luz do quarto de hotel foi uma pista falsa.

No vestiário, em que pese alguns raros momentos de solidariedade entre os boxeadores e os treinadores, “Stoker” continua sendo um homem profundamente solitário. É verdade que a solidão também se estende aos demais personagens. O filme se detém em cada um deles, particulariza-os, torna-os complexos e próximos a nós. Do ponto de vista da mise-en-scène, o momento mais expressivo dentre as cenas que se passam no vestiário é certamente aquele em que “Stoker”, motivado pelos comentários de um dos companheiros, relembra o seu início de carreira, ainda nos anos 1920. Há como que um ensaio para um flash-back que enfim não ocorre: a câmera, num travelling, detém-se no rosto de “Stoker”, mas nenhuma fusão ocorre, nenhum som extra-diegético invade o campo sonoro, nem mesmo o quase-monólogo de “Stoker” tem prosseguimento. Ele se cala e, enquanto mantém os olhos voltados para suas próprias lembranças, o cinema recusa-se a seguir a regra, suspendendo momentaneamente a ação. Há então o corte para um plano mais aberto do mesmo espaço do vestiário, em continuidade, e só então nos damos conta de que não só o óbvio flash-back (felizmente) não aconteceu como nem mesmo o amigo estava mais ali para ouvir as lembranças de “Stoker”. Forma magistral de filmar/montar a solidão de um personagem: subtrair-lhe o flash-back.

No ringue, a solidão de “Stoker” Thompson é ainda mais evidente, porque mesclada à alienação. Não bastasse a violência do próprio confronto, os golpes recebidos e desferidos, “Stoker” ainda por cima não sabe que faz parte de um jogo de cartas marcadas. Os urros da platéia quase nunca o apóiam, e a cada intervalo, seu olhar se dirige para a cadeira vazia onde deveria estar Julie. O tempo é curto para sofrer ou refletir: soa o martelo e o embate, cada vez mais violento, tem de prosseguir. Quando, após a luta, “Stoker” se vê cercado por Little Boy e seus capangas, acuado num beco sem saída, tal imagem típica de um filme noir ou de gangsters surge em sua impressionante tragicidade, espécie de imagem-símbolo do medo, já inteiramente subvertida pela inteligente construção anterior de toda a narrativa.

A solidão também é a “companheira inseparável” de Julie. Do quarto do hotel em que está hospedada com seu marido Bill “Stoker” Thompson, ela observa, apreensiva, a fachada do ginásio em que se dará a luta. Esse plano-contraplano entre o hotel e o estádio também se configura espacialmente, de certa maneira, como um confronto, um enfrentamente de parte a parte, uma luta desigual, e não é por acaso que essa relação espacial entre o quarto de hotel e o estádio é estabelecida através do plongée e do contre-plongée. Para resumir: há um conflito entre “Stoker” e Julie, e o que está em jogo é a própria vida do casal.

Quando “Stoker” parte para o estádio, Julie precisará amargar um longo período de espera, na qual sustentará - não sem hesitações - a decisão tomada de não ir assistir à luta. Essa espera é dominada pela angústia (ela não sabe o que está acontecendo no interior do estádio e teme a derrota de seu marido) e pela solidão (sozinha, vaga pelas ruas em volta do estádio, tentando assim fazer passar mais rápido o tempo). A princípio, Julie é só hesitação. O filme constrói esse estado de espírito da personagem de forma precisa, sempre a partir da movimentação da atriz no quadro: suas idas e vindas no quarto do hotel, dando as costas para si diante do espelho, com sua imagem projetada sobre o vidro do despertador que marca as horas, e, mais tarde, nas ruas, com seu andar carregado.

É preciso chamar a atenção para essas seqüências em que Julie vaga pelas ruas próximas ao hotel e ao estádio. Pela sua beleza plástica, pela angústia expressa por todo o corpo da personagem e, sobretudo, pela forma como o filme recusa-se a tornar essa angústia palpável e cômoda para nós espectadores, essas seqüências parecem antecipar todo um cinema que se fará mais tarde, sob o signo do autorismo, e aqui me refiro especialmente às andanças de Jeanne Moreau em filmes como Ascensor Para o Cadafalso (Ascensceur pour l’Échafaud, de Louis Malle, 1958) e em A Noite (La Notte, de Michelangelo Antonioni, 1960).

É através de Julie que tomamos contato com o entorno do hotel e do estádio. É andando pelas ruas que Julie procura fugir do seu drama pessoal, intimamente ligado ao universo do boxe. Em vão, pois por onde ela passa o boxe está presente, seja pelo rádio de algum comerciante, seja pelo camelô que vende canetas que escrevem “com a direita e com a esquerda”, seja pelo jornaleiro que vende as últimas notícias dos confrontos, seja pelos gritos que ecoam do estádio, ou ainda pela máquina de jogar que reproduz, com bonequinhos, uma luta num ringue. Esse ambiente algo onírico, em que se misturam prostituição e casas de diversões, acentuam a aflição de Julie.

Num momento de pausa, ela observa de uma murada os ônibus elétricos que passam lá embaixo, sumindo no limite do viaduto em que ela se apóia. Ela rasga em vários pedaços o bilhete de entrada que tem nas mãos e observa os pedacinhos que caem e são tragados pelo vento provocado pelos ônibus em velocidade. Um gesto que diz muito, mas que deixa muito mais por dizer. A câmera, ora embaixo, na altura dos ônibus, ora em cima, junto à personagem na amurada, não cria propriamente um diálogo entre Julie e a cidade; entre ambos, não há identificação possível, mas desencanto. E, novamente, uma profunda solidão.

O tema da solidão, expresso assim pelas andanças de Julie e por “Stoker” no vestiário e depois no ringue, combinam-se com a forma como Robert Wise trabalha com os enquadramentos em plongée e contre-plongée, evidenciando a lógica do espetáculo (não só da luta de boxe como também do próprio cinema). Em diversos momentos a câmera está situada entre os torcedores na platéia, ou mesmo assume o ponto de vista dos mesmos, particularmente nas cenas de luta coreografadas por John Indrisano. O registro em estilo documental mimetiza o olhar tenso de quem acompanha a luta das cadeiras ou próximo ao ringue (caso dos empresários, apreensivos com o desenrolar dos rounds).

Há momentos em que, pelo contrário, a câmera assume o ponto de vista de “Stoker”, de cima do ringue, a fitar a cadeira que espera por Julie. Os olhares que trocam Little Boy e “Stoker” ao fim da luta, igualmente tornam expressivo o uso das câmeras alta e baixa, evidenciando o jogo de forças entre as duas partes e a desigualdade dessa relação, recurso que, por outro lado, não deixa de estar inteiramente articulado à espacialidade concreta do cenário. Esse jogo corresponde, como já foi dito, ao drama de “Stoker” e Julie, em especial quando, do alto do quarto do hotel ou lá embaixo, do vestiário, ambos contemplam aquelas fachadas que significam, tanto para ele quanto para ela, a possibilidade de uma vitória desesperada ou de uma derrota melancólica.

O que interessa a Punhos de Campeão não é construir nem a derrota nem a vitória, mas nos fazer participar do sofrimento desses dois personagens que vivem entre o medo e a fúria, o desespero e o abandono, o amor e a solidão. E é isso que faz de Punhos de Campeão uma obra-prima.


Luís Alberto Rocha Melo

(DVD Classic Line)