PASSEANDO PELO CINEMA DE MICHAEL MANN
Caçador de Assassinos e Colateral

Manhunter, EUA, 1986 (DVD Aurora)
Collateral, EUA, 2004 (DVD Paramount)

Pode um filme obrigar a rever completamente a carreira de um cineasta? A pergunta tem inúmeras respostas, de acordo com as reações subjetivas que cada um tem com a maneira como vê a progressão dos artistas, o peso que cada filme tem individualmente dentro de uma carreira, no peso que a sensibilidade do cineasta tem para cada espectador, nas coisas em que se presta atenção quando se vê um filme. Porém, do maior engolidor de narrativa & atuações até aquele que só presta atenção aos aspectos plásticos de composição visual, sempre há aspectos que se pega mais e aspectos que se pega menos, nossa atenção sempre vai para um lado em detrimento de outro, e nessas variações de percepção muitas vezes o estilo do cineasta passa imperceptível. Muitas vezes, dá um bocado de trabalho até entrar na sintonia necessária para ver da melhor forma aquilo que tal ou tal artista está querendo nos mostrar. Ainda mais no cinema industrial americano, em que os princípios expressivos devem lutar com uma série de imperativos (star system, transparência dos enredos e das caracterizações, inserção em gêneros) que arriscam homogeneizar o estilo, do lado da feitura da obra, e ao mesmo tempo homogeneizar a fruição, do lado do espectador. Miami Vice pode não ser o melhor filme de Michael Mann
– talvez a honra ainda caiba a Fogo Contra Fogo – , mas é sem dúvida aquele depois do qual nenhum de seus filmes poderá ser visto da mesma forma. Porque nele a atmosfera domina tudo, passa definitivamente para o primeiro plano e impregna tudo, da composição dos personagens à evolução da trama. Se em alguns filmes a construção de climas e o grande apuro visual podiam parecer floreios de esteta querendo soltar-se em meio ao poder total delegado à narrativa – O Último dos Moicanos ou O Informante, por exemplo –, Miami Vice aparece para iluminar nossas percepções e dizer com muita força que eles são parte decisiva e indissociável do universo de Michael Mann.

É um universo extravagante em seu uso de cores, no uso da música que serve para conectar cenas distintas, na forma como cria bolsões de calmaria para ali inscrever a solidão de seus heróis, sempre tomados com uma paisagem ao fundo que adquire contornos sentimentais. Cores aberrantes, antinaturais – como o rosa que invade a casa da mulher cega em Caçador de Assassinos ou a intensa luz azul da boate em Colateral –, que só são salvas de um artificialismo de mau gosto porque existe alguém que sabe fazer um uso muito preciso desses retoques exagerados, alguém que sabe se servir de uma cor vistosa que invade a tela não para soluções fáceis de composição, mas para criar situações imersivas que intensificam a desorientação dos personagens e das situações a serem filmadas. Se os excessos expressivos dos filmes de Michael Mann – claramente em oposição à limpidez clássica da narração dos moldes mais tradicionais – ganham um relevo que supera a estetização mais simplória dos fazedores de imagens belas, é porque eles servem para inscrever seus heróis num mundo de perdição, em que os ossos do ofício reordenam e redefinem os comportamentos e os valores dos personagens. A negociação entre vida pessoal e vida profissional é sempre injusta, e o trabalho sempre determina as outras áreas, especialmente a vida familiar. Basta ver como as trajetórias de William Petersen em Caçador de Assassinos e Al Pacino em Fogo Contra Fogo se assemelham, colocando em risco a convivência ou até a vida de seus familiares. Basta ver como Robert De Niro ou Tom Cruise, respectivamente em Fogo Contra Fogo e Colateral, ambos criminosos regiamente pagos porque são os melhores no que fazem, montam suas vidas a partir de uma ética profissional perfeccionista que é mais importante do que qualquer outra coisa. É um mundo de workaholics que se caracterizam pelo que fazem, e que arriscam tudo que têm para levarem seus ofícios a cabo.

A negociação, mesmo perdida, é tensa, e a frustração é recorrente. Para cada perda – um colega morto ou uma mulher amada que se vai, uma investida mal-sucedida ou a dificuldade em se seguir adiante –, um momento íntimo de pausa narrativa em que o buraco negro da dúvida assombra os personagens e bate em cheio no espectador. "De que vale tudo isso?", devem se perguntar Colin Farrell, Jamie Foxx, Al Pacino, William Petersen, ou até os sociopatas De Niro e Cruise em seus momentos de fraqueza. Essa perturbação é intensificada pelas luzes refratadas nas superfícies ou desfocadas ao fundo, pela solidão na lateral da tela do recorrente formato scope, pelos cortes bruscos que criam elipses selvagens, nos desorientando no espaço e no tempo. Se isso é levado a um nível exponencial em Miami Vice, podemos no entanto ver isso já plenamente em prática na passagem da penúltima para a última cena em Caçador de Assassinos, ou nas imagens de luzes formando padrão geométrico que vemos pela janela do metrô em Colateral – inseridas por efeito especial, aprendemos no documentário presente no disco extra do filme. São filmes que fixam claramente a oposição entre uma "vida normal", aquela dos eventos cotidianos ou dos ofícios inócuos, e a "vida de exceção" das estrelas, dos policiais, dos bandidos, daqueles que vivem a vida como aventura – daí a riqueza de um personagem como o de Jamie Foxx em Colateral e sua passagem de um registro para outro. No geral, é uma escolha excludente: essa vida de exceção corrói tudo que resta da vida normal, deixa traumatizado (Caçador de Assassinos), causa perdas (Miami Vice), destrói a harmonia familiar (Fogo Contra Fogo), provoca um buraco negro que fecha o indivíduo sobre si mesmo (como o dilema final de Tom Cruise em Colateral, que descobre que com sua morte não terá sobrado mais traço nenhum de sua existência no mundo).

Em Caçador de Assassinos, recentemente lançado pela Aurora em versão lamentavelmente adaptada para o formato 4:3 fullscreen (o filme é composto em 1:2,35 e ganhou edição especial em DVD nos EUA), espanta acima de tudo o peso e a dilatação das situações. Somos instalados já no silêncio e no impasse de dois homens que sentam em sentido contrário um ao outro. É o dilema de Will Graham, especialista em capturar serial killers, que é chamado para outra empreitada, ainda que saiba que ela arrisca detonar, como já havia feito antes, tanto sua vida familiar quanto sua sanidade. Como qualquer workaholic de Mann, a decisão já está tomada e Mann filmará esse percurso de Graham como uma espécie de descida ao inferno. A percepção de Max, taxista interpretado por Jamie Foxx em Colateral, não é muito diferente. Quando um cadáver cai no teto de seu carro e ele descobre que seu cliente é um motorista profissional, ele é catapultado de seu mundo seguro para a vida de exceção que sempre o amedrontou. Ainda que essa descida ao inferno em particular cause uma mudança de comportamento que será positiva para ele, arrancando-o da passividade com que construiu sua vida profissional e afetiva, o fim da jornada aparecerá da mesma forma que em Caçador de Assassinos, como uma salvação, uma libertação em que finalmente se recupera a sanidade que estava a ponto de ser perdida.

Se o DVD de Caçador de Assassinos só oferece como extra o trailer original do filme, os dois discos de Colateral estão recheados de atrações. Se o making of é meio genérico e só fornece algumas informações interessantes (sobretudo na forma como Jamie Foxx, Mark Ruffalo e Tom Cruise consideram o trabalho com o diretor), os comentários de Michael Mann sobre Colateral são reveladores no sentido de evidenciar certos processos de trabalho. Mann não filosofa quase nada, não fala dos sentimentos envolvidos, e sobretudo diz muito pouco das composições visuais pelas quais é conhecido. Ao contrário, sua atenção aos desafios do projeto, à caracterização dos personagens e ao trabalho com os atores povoa todo o comentário. Única característica plástica comentada: a utilização (sensacional) da câmera digital de alta definição, sobre o qual, percebe-se, está muito orgulhoso. Sua principal preocupação no comentário: fidelidade ao comportamento, às situações, aos climas estabelecidos pelas cenas. Nas entrelinhas, no entanto, ele deixa transparecer o gosto de trabalhar com uma das coisas que é mais distintiva em seu cinema: o tempo. Fala dos desafios de fazer um filme com tempo diegético de dez horas contínuas (flashbacks? nem pensar...), mas no fundo está muito contente por trabalhar com um material que lhe permite dar a impressão de um momento presente em estado puro (o que ele radicalizaria no filme seguinte). Fala da utilização da música que dá homogeneidade às diversas seqüências da parte final do filme, mas não chama atenção especial para o fato de que esse procedimento é extremamente particular e dá um clima inteiramente diferente ao desenvolvimento da ação. Michael Mann dá a impressão de um homem que simplesmente se empenha em fazer seu trabalho direito, de alguém humilde demais, ou solitário demais, para falar das características de estilo que são mais ambiciosas em sua obra. No making of, ele fala que jamais esteve num set de filmagem de outros diretores, que não sabe a forma como outros realizadores trabalham. Como se, no fundo, todo diretor imprimisse como ele uma sensibilidade especial naquilo que filma. Mas a arte de Michael Mann vai muito além de uma simples competência, e seu estilo narrativo, visual, temático, etc. se vê, agora definitivamente com clareza, em tudo aquilo que ele decide fazer. Excêntrico nas obras que realiza, o homem se crê o mais prosaico dos mortais quando comenta o que faz. A própria imagem que faz de si é uma nova relação entre a dualidade vida normal/vida de exceção que tanto povoa seus filmes.

Ruy Gardnier

 

 

 





O personagem contrastado com as sombras e
os reflexos que desorientam... (Caçador de Assassinos)


...ou com a cidade como pano de fundo (Colateral).


Paisagem sentimental de uma Los Angeles
fantasmática... (Colateral)


...e paisagem íntima de um homem que recupera a sanidade (Caçador de Assassinos).