Lianna,
e desde o título a definição de um caminho. É por esta
personagem que se está criando um filme, é sua história
que John Sayles quer acompanhar, e não apenas isso,
mas propriamente viver com ela estas experiências, impregnar
o filme de Lianna e, eventualmente, tirar daí imagens
de consistência e intimidade que nenhum outro modo de
aproximação seria capaz de fornecer, e por isso fazer
personagem e filme compartilharem o mesmo nome – eles
serão, eventualmente, um só. Criar tamanha relação com
um objeto de atenção exige o estabelecimento de uma
distância entre ele próprio e aquele que o observa,
que na verdade não significa muito para a materialidade
do filme em termos de tamanho. Se veremos Lianna de
cima ou se seremos jogados para seu interior, se nosso
olhar será sempre desviado por algum obstáculo ou se
estaremos frontalmente colocados à ela, isso pouco importa,
desde que, seja qual for esse ponto-de-vista, ele consiga
se traduzir numa ética de aproximação, automaticamente
ligada a uma estética que dê conta da relação pretendida.
O interesse de Sayles por sua protagonista aparece sempre
bem claro, e a distância pretendida é a menor possível,
participar com Lianna de sua pequena revolução sentimental
é uma atitude da qual o filme não abre mão, e no entanto,
veremos esta pretensão ser transtornada por uma série
de interrupções dessa participação, momentos em que
Lianna-filme e Lianna-personagem se separam, passando
a se comunicar de maneira muito diferente daquela que
se anunciava inicialmente.
É especialmente num certo didatismo tomado como natural,
necessário até, que Lianna encontra seus maiores
ruídos. Desde os primeiros indícios de problema no casamento
até a descoberta da homossexualidade e o envolvimento
com outra mulher, há sempre na trajetória da protagonista
um excesso de consciência, expresso sobretudo nos diálogos
sempre ágeis e “significativos”, que tornam literais
demais certos sentimentos já claros apenas pela ocorrência
dos olhos de Linda Griffiths na tela. Não parece casualidade
que o marido de Lianna seja um professor de cinema e
que sua amante dê aulas de psicologia. Sempre que a
vontade de compreensão transforma-se numa vontade de
explicação, o filme preenche suas imagens com construções
informativas que parecem ignorar o caráter absolutamente
sensorial com que este contato com a personagem havia
se estabelecido. Talvez por conta da própria temática,
sendo a homossexualidade algo que precisava de muito
mais explicações no começo dos anos 80 do que hoje em
dia, Lianna se atrapalha ao incorporar esta dúvida
à narrativa. Se consegue alguma verdade nas perguntas
um tanto ingênuas que a amiga Sandy passa a se fazer
depois da revelação, é na figura do marido e de Ruth,
a amante de Lianna, em sua constante função de imporem
provas à protagonista, que Sayles não consegue disfarçar
suas próprias dúvidas e limitações na concretização
da relação idealizada.
São, no entanto, em dois grandes momentos, a primeira
transa entre Lianna e Ruth, e depois na última, quando
a separação já estava anunciada, que o diretor chega
finalmente ao coração de sua proposta de mergulho absoluto
nas estruturas de um personagem errante, tomado pelo
estranhamento de uma nova situação existencial, quando
precisa rearrumar seus conceitos e afetividades de acordo
com aquilo que aparece diante de sua vida pela primeira
vez. Ali se aproxima daquilo que no filme seguinte,
Um Irmão Vindo de Outro Planeta, sua obra-prima,
seria a declaração de um cinema totalmente devoto de
seu protagonista, quando todas as possibilidades dramáticas
e narrativas estarão dispostas exclusivamente para que
se consiga corresponder aos estímulos vindos desta figura
central. No primeiro momento, depois de um longo flerte
no sofá da sala, onde Sayles esquadrinha a relação simples
de um diálogo entre duas pessoas das maneiras mais criativas
possíveis, sempre enquadrando Linda Griffiths e Jane
Hallaren a partir de uma composição de seus rostos (certamente
referenciado no que Bergman faz com Liv Ullmann e Bibi
Andersson em Persona), chegamos à cena de sexo,
e sob as imagens dos dois corpos nus se combinando na
cama em posições diversas, ouvimos um murmúrio, algo
dito entre as amantes, misturado com o que parece uma
leitura de algum poema ou letra de música, mas com o
compasso acelerado e a economia de sons que o assemelham
à oração de alguém diante de um altar, como se aquele
ato sexual, destituído de “sentido” e “verdade” pela
consciência preconceituosa, fosse devidamente sacralizado
em toda sua beleza e comunhão a partir uma idéia muito
particular do que seja divino.
Pelo fim, Sayles mistura as cenas da última relação
entre Lianna e Ruth com a apresentação de um casal de
dançarinos num teatro, onde a protagonista é voluntária
na direção de iluminação do espetáculo, embalando essa
montagem paralela com uma música melancólica, forçadamente
over. No meio disso tudo surge o rosto cheio de lágrimas
de Linda Griffiths, visto em zoom cada vez maior na
tela, equilibrando as memórias de seu amor e a tradução
casual e incrivelmente precisa de sua relação pelo balé
do casal em cena. Se existem no meio alguns atropelos,
o modo como John Sayles apresenta e encerra nossa relação
com a protagonista garantem que houve ali um sucesso
significativo neste casamento entre filme e objeto.
E ainda assim, quando Lianna acaba, temos a impressão
de que tudo ainda resta a ser dito e vivido. Lianna,
a personagem, permanece, ainda vibra mesmo quando os
créditos já aparecem na tela, e é essa talvez seja a
maior tradução de sua grandeza.
Rodrigo de Oliveira
(DVD Aurora)
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