Esses
garotos incríveis e suas máquinas maravilhosas...
Mas que fique claro desde já: carros, e não máquinas
do tempo. Logo no começo, um evento que mobiliza os
estudantes de uma escola texana será tomado como a tábula
dos princípios que moveram Richard Linklater a voltar
à sua própria cidade, à sua própria história. Um trote
aplicado pelos veteranos nos calouros que acabam de
concluir o ginásio e que se preparam para a entrada
na Lee High School, meninas sujas de catchup e farinha
de trigo sendo humilhadas por brincadeiras degradantes,
meninos perseguidos implacavelmente para que seus traseiros
sejam espancados com tábuas de madeira. Nesse rito de
iniciação a tônica é a demonstração da superioridade
de uma geração sobre a seguinte, um momento que demarca
uma passagem de tempo, onde os mais velhos usam as prerrogativas
da experiência adquirida para conduzir os mais jovens
à mesma porta de entrada da maturidade que um dia eles
mesmos tiveram que cruzar. Não há como escapar desse
trote, seja se disfarçando no meio de amigas, como faz
Sabrina, seja fugindo de carro pela cidade até ser protegido
pela mãe devidamente armada de um colega, como Mitch.
Eventualmente se acabará tremendo no chão para imitar
um bacon frito ou inclinado no capô de uma caminhonete
enquanto a madeira faz seu trabalho lá atrás. Mas essa
é apenas uma convenção social, como bem dizem os nerds
da história diante do pátio cheio de calouros indefesos.
O tempo, o tempo de verdade, é muito menos rígido com
quem caminha por ele. Não se manifesta necessariamente
através desses grandes eventos, de demarcações cronológicas
ou ciclos de precisão matemática. Jovens, Loucos
e Rebeldes não faz nunca de seu retorno a 1976 uma
viagem de nostalgia, puramente passadista. Sua crença
está no acúmulo, na sobreposição, e não na superação
de estágios, onde cada fim precisa anunciar um recomeço
mais adiante. Assim, há nos anos 70 uma reunião de todas
as décadas anteriores e posteriores, e o reforço desse
presente contínuo será potencializado na errância desses
jovens loucos, rebeldes, entorpecidos, confusos, mas,
acima de tudo, disponíveis para toda a sorte de experiência
que a vida lhes propuser.
Aquilo que podia parecer uma grande celebração da memória
de uma época, agrupando os melhores momentos dessa juventude
num simbólico último dia de aula, o dia em que tudo
acontece, assume sempre um tom menos apoteótico, que
substitui a especialidade automática por uma outra,
conquistada, e por isso mais valiosa, surgida nos pequenos
acontecimentos, nos pequenos gestos. A começar pela
mega-festa programada na casa de Pickford, para qual
toda a escola se mobilizara, mas que é cancelada quando
o pai do anfitrião descobre seu plano. Nem mesmo o bota-fora
da turma escapa da frustração, e resta andar de carro
pela cidade, hanging out with some friends, entre
cervejas e maconha, indo todos para o mesmo point de
sempre, o bar com sinucas, a lanchonete com drive-thru.
Assim também, sem estardalhaço, o calouro Mitch Kramer
realiza sua travessia íntima. Depois de ser pego pelos
veteranos, o personagem de Willey Wiggins é escoltado
por Randy “Pink” Floyd, menos raivoso que seus colegas
de turma, que o leva junto nas inúmeras voltas de carro
que dará noite adentro. O mesmo cabelo grande, o mesmo
sucesso no esporte, o mesmo apelo irresistível junto
às meninas da cidade, e Mitch parece ter sido acolhido
por Pink exatamente por suas semelhanças, no que esta
primeira noite de vida adulta do calouro seria uma atualização
de sua própria história, transferindo o bastão ao mais
novo para finalmente alcançar o degrau de cima. Mas
tudo o que Jovens, Loucos e Rebeldes quer negar
é que isto seja mesmo uma atualização, que uma geração
precise abandonar suas vontades para a que vem logo
atrás porque existe na frente algo mais condizente com
o tempo de sua história. Na vida desses jovens o trote
do começo é apenas uma ilusão. Linklater quer chegar
ao coração do tempo, acompanhar seu ritmo, participar
das proposições feitas aos que são por ele tocados,
e nessa já sabe que nem rito nem iniciação, farinha
de trigo e porradas no traseiro não são mais do que
somente isso.
A própria idéia de geração aparece aqui transtornada,
pois significa, antes do agrupamento cronológico, a
disposição para o compartilhamento das experiências.
Por isso os carros têm papel tão importante em Jovens,
Loucos e Rebeldes. Neles é possível dividir o medo
de ser alcançado pelos carrascos e suas pranchas de
madeira, a piração de derrubar caixas de correios com
latas de lixo, eventualmente até dividir um baseado,
tudo isso combinado na sensação maior, e literal, de
dividir sempre um mesmo caminho. Crescer é somar, nunca
diminuir, e a importância desse princípio parece transbordar
para toda a filmografia de Linklater, algo muito nítido
no modo como o diretor trabalhará novamente com vários
dos atores aqui presentes, e em como todos esses novos
papéis terão sempre alguma ligação com estes primeiros
personagens. A Newton Boys – Irmãos Fora da Lei
chega o Wooderson de Matthew McConaughey com a veia
de pai/condutor das emoções de seus parceiros ainda
mais evidente; o Clint de Nicky Katt e a Darla de Parker
Posey aparecem em Suburbiajá marcados pelos acontecimentos
do intervalo de suas vidas, ele tendo adicionado o cinismo
a seu temperamento explosivo, ela assumindo todas as
implicações que a postura bitch do colegial fatalmente
trariam; e ainda Rory Cochrane sairia do entorpecimento
divertido para a esquizofrenia absoluta em A Scanner
Darkly. Todo o discurso adolescente inconformado
de Adam Goldberg e seu Mike seria complexificado até
o ponto de Waking Life, onde chegaria a um beco
sem saída, e diferente do orgulho pelo hematoma adquirido
numa briga, não restaria nada a fazer além de incendiar
seu próprio corpo.
É também a Waking Life que chega o Mitch Kramer
de Willey Wiggins, e é impossível ignorar que todas
as maquinações de seu sonho tiveram base aqui, na oportunidade
aberta por Jovens, Loucos e Rebeldes. A festa
alternativa organizada por Wooderson numa montanha da
cidade termina como tivera começado, sem grandes momentos
ou efeitos – como na relação perfeita de dois planos
complementares, Linklater diz que seu quociente ritualístico
não tem nada de definitivo, e se anuncia apenas pela
abundância de cerveja saindo de um tonel de um lado,
e pelas míseras gotinhas de espuma que saem da bomba
seca do outro. O importante é seguir vivendo, como diz
o próprio Wooderson. Não descartar o passado, subestimar
o presente ou se apegar às suposições de um futuro (“seriam
os anos 80 mais radicais do que aquela chatice dos 70?”,
se pergunta uma das personagens a certa altura), mas
amalgamar todos esses momentos, vivê-los verticalmente,
aproveitando tudo o que cada época pode oferecer a essa
experiência. Assim, atribuir ao ex-presidente George
Washington e sua esposa Martha o pioneirismo na plantação
e consumo de maconha nos Estados Unidos não é mais do
que a tentativa (engraçadíssima, aliás) de aproximar
gerações distantes, aplicar nelas aquele mesmo princípio
fundador do compartilhamento. Repletos dele, Mitch,
Pink, Slater, Wooderson, Sabrina, Jodi e todos os outros
grandes pequenos personagens que conhecemos em Jovens,
Loucos e Rebeldesse colocam na estrada, entorpecidos
pela vontade de viver (mas não negamos que alguns baseados
tenham ajudado nisso). Essa estrada, a última imagem
do filme, pode levar à Houston, onde comprarão ingressos
de primeira fila para o show do Aerosmith, deixando
para trás todas as obrigações do time de futebol americano
ou do emprego na prefeitura, mas pode levar também ao
pátio do posto de gasolina onde jovens dos anos 90 se
reúnem, ao meio-oeste americano do início do século,
ao futuro dominado pelas drogas, ou até mesmo à um sonho
todo construído em desenho animado. Mas o importante,
para Jovens, Loucos e Rebeldes, é que a estrada
aponte caminhos, vários, que se complementem e que dialoguem,
nunca preterindo um pelo outro. Fica na conta do próprio
filme a tarefa de comprar umas cervejas e juntar uns
amigos para experimentar a viagem por cada uma dessas
possibilidades.
Rodrigo de Oliveira
(DVD Universal)
|