O
americano Richard Rush é hoje lembrado como “cineasta
de um filme só”, o brilhante e pouco visto O Substituto
(1980) – por sinal obra de seminal importância para
a formação cinefílica deste que vos escreve. Rush não
procura fazer muito esforço para fugir desse rótulo;
ainda vivo aos 76 anos só dirigiu mais um filme desde
então, A Cor da Noite (1994). Mas é curioso notar
que, durante a década de 60, Rush teve uma carreira
regular no comando de filmes de linhagem B. Nessa época,
a maioria dos títulos desse modelo de produção era destinada
ao consumo imediatista de jovens nas sessões duplas
exibidas em drive-ins espalhados por todo o território
americano. Explorando de forma descarada modismos de
apelo fácil para seu público alvo, surgiram os chamados
exploitation movies.
Historicamente, temos em final da década de 60 o florescer
da chamada contracultura que vinha desafiar os valores
da classe média americana, tão enraizados principalmente
a partir do pós-guerra. E nesse quadro, brilha o apelo
da figura do motoqueiro errante e inconseqüente, já
cristalizado num imaginário adolescente desde que Marlon
Brando vestiu seu casacão de couro preto e pintou o
diabo em O Selvagem (1953). Decorrida mais de
uma década, The Wild Angels, de Roger Corman
(1966), consagra o retrato na tela de um grupo lendário
de motoqueiros da vida real que reflete uma encarnação
viva da figura consagrada por Brando: os Hell’s Angels.
Produto lucrativo, como praticamente tudo que saía das
mãos do mestre Corman na época, fez dos Angels um filão
a ser cavucado exaustivamente. E daí surge Os Demônios
Sobre Rodas.
Este filme assinado por Rush se anuncia como um
retrato “definitivo” dos Hell’s Angels. Longe disso.
Apesar de algumas pequenas ousadias, Os Demônios
Sobre Rodas guarda em si ainda uma visão estereotipada
do movimento. Uma abordagem mais coerente e madura do
assunto só viria mesmo com a chegada da figura do motoqueiro
ao cinema “oficial” dos grandes estúdios de Hollywood
em Sem Destino, de Dennis Hopper (1969). Curioso
notar que Sem Destino marca também o início da
consagração como astro do protagonista de Os Demônios
Sobre Rodas, Jack Nicholson, hoje um mito do cinemão
americano, mas que durante a década de 60 foi figura
de proa do cinema B, não somente atuando, mas também
como co-roteirista, aparecendo em momentos importantíssimos
do movimento, como em diversos filmes de Roger Corman,
os westerns de Monte Hellman e alguns exploitations
do psicodelismo, entre eles o brilhante Os Monkees
Estão Soltos (1968), que marca o início de sua associação
com Bob Rafelson que culminaria na obra-prima Cada
Um Vive Como Quer (1970).
Voltando especficamente a Os Demônios Sobre Rodas,
este se inicia com planos gerais da cidade de São
Francisco aos quais se sobrepõem imagens em close
de flores, numa flagrante alusão ao movimento hippie
pacifista do flower power, sempre associado
àquela cidade californiana. Ao detalhe das flores se
segue, também em detalhe, a figura de uma moto que arranca
de forma violenta. Vemos então diversos motoqueiros,
que partem de diferentes pontos da cidade, convergindo
todos para uma estrada numa imponente procissão de dezenas
de motos que acompanha os créditos ao som de uma trilha
musical que traz à tona acordes semelhantes àqueles
compostos por Leonard Bernstein para o balé/briga que
abre Amor Sublime Amor (West Side Story,
1961). Ao fim de sua viagem, que termina junto com os
créditos, os Hell’s Angels chegam a uma pacata cidade
classe-média, chocando e por vezes infernizando a vida
convencional de seus habitantes. Vemos com isso que
rapidamente o filme nos introduz de forma impactante
e direta em toda a época e universo a serem retratados.
Surge em seguida o personagem que servirá como guia
para a entrada do espectador no mundo dos Angels, um
frentista de posto de gasolina interpretado por Nicholson
– guardando pontos que antecipam o George de Sem
Destino e o Robert Dupea de Cada Um Vive Como
Quer –, que, num acesso de fúria misturada a indignação,
larga o emprego, pega sua moto e acaba unindo-se ao
grupo liderado por Buddy (Adam Roarke). O frentista,
que os Angels apelidam de Poeta, acaba por figurar como
um alter-ego para a audiência, partilhando um
fascínio pelo mundo novo e libertário que os motoqueiros
representam, mas também ainda entranhado dos preceitos
da moral burguesa, que não se sente à vontade perante
alguns destes novos valores, em especial àquilo que
tanto o Poeta como o espectador compreendem como uma
libertinagem das práticas sexuais. A longa seqüência
de uma festa que descamba para uma estilizada orgia
é o melhor reflexo dessa visão presente no filme.
Com isso, o filme carrega em si também uma dificuldade
em se posicionar perante as figuras dos Hell’s Angels.
Pois, se ao mesmo tempo valoriza o grupo como algo de
novo, dentro de um movimento que poderia injetar novos
valores dentro da já enferrujada sociedade burguesa
americana, destacando inclusive a solidariedade entre
seus membros, destaca também uma falta de senso de responsabilidade
entre seus elementos. Estes, principalmente ao longo
da segunda metade do filme, ficam caracterizados como
um bando de crianças-grandes, que, mais cedo ou mais
tarde, terão de crescer e, de algum modo, sucumbir perante
os valores tradicionais, já que sua conduta infantil
e amoral acabaria por prejudicar um coletivo, causando
inclusive mortes. Ou acontecimentos que os obrigariam
a encarar o mundo adulto, como uma gravidez não planejada.
Daí toda a seqüência final, descambando para a rejeição
dos Angels e daquilo que representam por parte do Poeta,
coroada por uma atitude estúpida, não menos que irracional,
que acaba por levar à morte de Buddy.
Sob o ponto de vista de condução da narrativa, Os
Demônios Sobre Rodas segue a lógica dos filmes B,
numa sucessão de seqüências enxutas e objetivas, com
pouco espaço para uma maior interiorização dos personagens
ou de tramas mais complexas. O filme vai sendo conduzido
através das viagens e das diversas brigas nas quais
os Angels se envolvem. Estas seguem sempre encenadas
por Rush com uma boa visão de enquadramentos e concepção
de espaços, em especial naquela passada no interior
de uma piscina vazia e na qual encerra o filme, que
aproveita um vistoso cenário de casas em ruínas. Mesmo
assim, Rush não consegue deixar de impregnar o filme
de uma visão estereotipada, até certo ponto um tanto
naïf, do universo das mutações culturais
do fim dos anos 60. Uma visão bem distinta daquela que
ele, professor da Universidade da Califórnia (UCLA),
viria a apresentar posteriormente em um ótimo filme,
hoje invisível, que retrata de forma bastante verossímil
e madura o impacto da contracultura no meio acadêmico:
À Procura da Verdade (1970).
Ainda assim, Os Demônios Sobre Rodas, mesmo diante
de suas flagrantes limitações, permanece como um retrato
– certamente não muito isento, é verdade – não somente
de um momento marcante na cultura ocidental, mas principalmente
de uma forma de se fazer cinema e pensar sobre o modo
como esta viria a refletir a maneira como os valores
médios da sociedade apreenderiam de forma perplexa este
novo momento. Bem mais que uma peça de museu, um filme
que ainda carrega consigo uma pulsação bastante singular.
Gilberto Silva Jr.
(DVD Aurora)
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