OS DEMÔNIOS SOBRE RODAS
Richard Rush, Hell’s Angels on Wheels, EUA, 1967

O americano Richard Rush é hoje lembrado como “cineasta de um filme só”, o brilhante e pouco visto O Substituto (1980) – por sinal obra de seminal importância para a formação cinefílica deste que vos escreve. Rush não procura fazer muito esforço para fugir desse rótulo; ainda vivo aos 76 anos só dirigiu mais um filme desde então, A Cor da Noite (1994). Mas é curioso notar que, durante a década de 60, Rush teve uma carreira regular no comando de filmes de linhagem B. Nessa época, a maioria dos títulos desse modelo de produção era destinada ao consumo imediatista de jovens nas sessões duplas exibidas em drive-ins espalhados por todo o território americano. Explorando de forma descarada modismos de apelo fácil para seu público alvo, surgiram os chamados exploitation movies.

Historicamente, temos em final da década de 60 o florescer da chamada contracultura que vinha desafiar os valores da classe média americana, tão enraizados principalmente a partir do pós-guerra. E nesse quadro, brilha o apelo da figura do motoqueiro errante e inconseqüente, já cristalizado num imaginário adolescente desde que Marlon Brando vestiu seu casacão de couro preto e pintou o diabo em O Selvagem (1953). Decorrida mais de uma década, The Wild Angels, de Roger Corman (1966), consagra o retrato na tela de um grupo lendário de motoqueiros da vida real que reflete uma encarnação viva da figura consagrada por Brando: os Hell’s Angels. Produto lucrativo, como praticamente tudo que saía das mãos do mestre Corman na época, fez dos Angels um filão a ser cavucado exaustivamente. E daí surge Os Demônios Sobre Rodas.

Este filme assinado por Rush se anuncia como um retrato “definitivo” dos Hell’s Angels. Longe disso. Apesar de algumas pequenas ousadias, Os Demônios Sobre Rodas guarda em si ainda uma visão estereotipada do movimento. Uma abordagem mais coerente e madura do assunto só viria mesmo com a chegada da figura do motoqueiro ao cinema “oficial” dos grandes estúdios de Hollywood em Sem Destino, de Dennis Hopper (1969). Curioso notar que Sem Destino marca também o início da consagração como astro do protagonista de Os Demônios Sobre Rodas, Jack Nicholson, hoje um mito do cinemão americano, mas que durante a década de 60 foi figura de proa do cinema B, não somente atuando, mas também como co-roteirista, aparecendo em momentos importantíssimos do movimento, como em diversos filmes de Roger Corman, os westerns de Monte Hellman e alguns exploitations do psicodelismo, entre eles o brilhante Os Monkees Estão Soltos (1968), que marca o início de sua associação com Bob Rafelson que culminaria na obra-prima Cada Um Vive Como Quer (1970).

Voltando especficamente a Os Demônios Sobre Rodas, este se inicia com planos gerais da cidade de São Francisco aos quais se sobrepõem imagens em close de flores, numa flagrante alusão ao movimento hippie pacifista do flower power, sempre associado àquela cidade californiana. Ao detalhe das flores se segue, também em detalhe, a figura de uma moto que arranca de forma violenta. Vemos então diversos motoqueiros, que partem de diferentes pontos da cidade, convergindo todos para uma estrada numa imponente procissão de dezenas de motos que acompanha os créditos ao som de uma trilha musical que traz à tona acordes semelhantes àqueles compostos por Leonard Bernstein para o balé/briga que abre Amor Sublime Amor (West Side Story, 1961). Ao fim de sua viagem, que termina junto com os créditos, os Hell’s Angels chegam a uma pacata cidade classe-média, chocando e por vezes infernizando a vida convencional de seus habitantes. Vemos com isso que rapidamente o filme nos introduz de forma impactante e direta em toda a época e universo a serem retratados.

Surge em seguida o personagem que servirá como guia para a entrada do espectador no mundo dos Angels, um frentista de posto de gasolina interpretado por Nicholson – guardando pontos que antecipam o George de Sem Destino e o Robert Dupea de Cada Um Vive Como Quer –, que, num acesso de fúria misturada a indignação, larga o emprego, pega sua moto e acaba unindo-se ao grupo liderado por Buddy (Adam Roarke). O frentista, que os Angels apelidam de Poeta, acaba por figurar como um alter-ego para a audiência, partilhando um fascínio pelo mundo novo e libertário que os motoqueiros representam, mas também ainda entranhado dos preceitos da moral burguesa, que não se sente à vontade perante alguns destes novos valores, em especial àquilo que tanto o Poeta como o espectador compreendem como uma libertinagem das práticas sexuais. A longa seqüência de uma festa que descamba para uma estilizada orgia é o melhor reflexo dessa visão presente no filme.

Com isso, o filme carrega em si também uma dificuldade em se posicionar perante as figuras dos Hell’s Angels. Pois, se ao mesmo tempo valoriza o grupo como algo de novo, dentro de um movimento que poderia injetar novos valores dentro da já enferrujada sociedade burguesa americana, destacando inclusive a solidariedade entre seus membros, destaca também uma falta de senso de responsabilidade entre seus elementos. Estes, principalmente ao longo da segunda metade do filme, ficam caracterizados como um bando de crianças-grandes, que, mais cedo ou mais tarde, terão de crescer e, de algum modo, sucumbir perante os valores tradicionais, já que sua conduta infantil e amoral acabaria por prejudicar um coletivo, causando inclusive mortes. Ou acontecimentos que os obrigariam a encarar o mundo adulto, como uma gravidez não planejada. Daí toda a seqüência final, descambando para a rejeição dos Angels e daquilo que representam por parte do Poeta, coroada por uma atitude estúpida, não menos que irracional, que acaba por levar à morte de Buddy.

Sob o ponto de vista de condução da narrativa, Os Demônios Sobre Rodas segue a lógica dos filmes B, numa sucessão de seqüências enxutas e objetivas, com pouco espaço para uma maior interiorização dos personagens ou de tramas mais complexas. O filme vai sendo conduzido através das viagens e das diversas brigas nas quais os Angels se envolvem. Estas seguem sempre encenadas por Rush com uma boa visão de enquadramentos e concepção de espaços, em especial naquela passada no interior de uma piscina vazia e na qual encerra o filme, que aproveita um vistoso cenário de casas em ruínas. Mesmo assim, Rush não consegue deixar de impregnar o filme de uma visão estereotipada, até certo ponto um tanto naïf, do universo das mutações culturais do fim dos anos 60. Uma visão bem distinta daquela que ele, professor da Universidade da Califórnia (UCLA), viria a apresentar posteriormente em um ótimo filme, hoje invisível, que retrata de forma bastante verossímil e madura o impacto da contracultura no meio acadêmico: À Procura da Verdade (1970).

Ainda assim, Os Demônios Sobre Rodas, mesmo diante de suas flagrantes limitações, permanece como um retrato – certamente não muito isento, é verdade – não somente de um momento marcante na cultura ocidental, mas principalmente de uma forma de se fazer cinema e pensar sobre o modo como esta viria a refletir a maneira como os valores médios da sociedade apreenderiam de forma perplexa este novo momento. Bem mais que uma peça de museu, um filme que ainda carrega consigo uma pulsação bastante singular.


Gilberto Silva Jr.

(DVD Aurora)