PINTAR OU FAZER AMOR
Arnaud e Jean-Marie Larrieu, Peindre ou faire l’amour, França, 2005

Fazer amor, é claro! Uma vez tocados pela descoberta quase adolescente do sexo como uma possibilidade de novos começos num momento em que tudo parece caminhar para os velhos fins (a aposentadoria, a distração com os quadros de paisagem, a monotonia dos jantares com os amigos de sempre), William e Madeleine estarão definitivamente transformados em seu modo de reagir aos traços do mundo que os cerca – e também daquele que eventualmente se farão cercar, com a mudança para o campo. Haverá, a partir da experiência decisiva com Adam e Eva, uma suscetibilidade muito maior às inconstâncias desse novo tempo. “Adolescente” é exatamente o termo, e toda a sobriedade e segurança na qual se sustentavam será prazerosamente abandonada em nome da errância pura e simples, irracional apenas no que isso possa significar o mergulho irrestrito na busca de uma satisfação que não é outra senão a de descobrir-se incompleto quando tudo levava a crer que já se estava devidamente preenchido e aguardando apenas o momento do encerramento. Há uma graça indisfarçável no modo como William rapidamente atribui aos parceiros de swing uma periculosidade absoluta, após a primeira transa, manipulados que teriam sido por um casal cheio de más intenções, ou na birra primária de Madeleine ao ter seu convite de passeio a um chalé nas montanhas negado em nome de um compromisso já assumido por Adam e Eva com outros amigos. Passar da previsão, cada vez mais acertada por todo o aparato tecnológico-sentimental de que se dispõe (como na profissão de meteorologista, abandonada depois de anos), para a disposição ao acaso, ao imponderável, para as possibilidades de combinação que a vida oferece, chuva no outono, neve no verão, um casal de compradores de um imóvel como mais um casal com quem se relacionar sexualmente, e assim por diante.

Ou não seria melhor pintar? Ao mesmo tempo em que a chegada do jovem casal provoca em William e Madeleine esta revolução no trato com a experiência física (ser adolescente é, antes de tudo, ter um corpo de adolescente, ou readquirir um, no caso), também um outro modo de contato será alterado. Quando conhece Adam, logo na primeira seqüência do filme, Madeleine está diante de um campo arborizado, tentando transporta-lo para um quadro sem prejuízo de todas as qualidades naturais ali presentes. Seu papel como pintora é o de uma atravessadora imparcial entre o ambiente e o pano da tela. Da cegueira de Adam, e de seu compartilhamento temporário, numa caminhada às escuras entre uma casa e outra, Madeleine e seu marido serão apresentados a um novo universo sensível, que se vale muito menos da apreensão de uma idéia de realidade do que da projeção de estados de natureza e de espírito, imaginados ou não, mas que se efetivam unicamente sobre o terreno da vulnerabilidade. Não mais transportar o mundo, mas deixar-se atingir por ele, e fazer dessa falta de guarda a grande mola da experiência artística, mas também e, sobretudo, da experiência humana. Nunca o vemos, mas podemos ter certeza que o retrato nu que Madeleine pinta de Eva, dado o jogo de sensibilidades vulneráveis estabelecido no ateliê, não será nunca uma pintura realista, mas um quadro abstrato, testemunha visceral da troca de projeções de uma à outra.

Posto que a oposição entre uma coisa e outra mostra apenas que ambas são complementares, e que para Arnaud e Jean-Marie Larrieu, pintar, fazer amor – e fazer cinema – tem muito mais proximidades do que distâncias e que, no fundo, trata-se nos três casos de uma coisa fundamental: da composição de elementos dentro de um quadro. Quando não estamos no pano de uma tela propriamente dito, temos a casa, ela mesma a moldura que não se contenta apenas em proteger o interior daquilo que cerca, mas que quer também provocar, ser ativa na conjugação dos sentimentos que nascem ali dentro. Na primeira vez que visitam o casebre abandonado, William e Madeleine são instantaneamente atraídos pelo sexo, que não faziam há tempos, e ali já podemos ter uma idéia do poder que este quadro tem em compor harmonicamente os elementos que nele se colocam. É a destruição de uma outra, concorrente, que tornará esta casa o lugar privilegiado da realização do amor, atraindo Adam e Eva, e também os desconhecidos, sendo percebida até pela filha do casal, que quer se casar ali, porque sente que o lugar tem algo a contribuir para essa fórmula do envolvimento. Os irmãos Larrieu já haviam mantido esse mesmo tipo de relação com um determinado ambiente em seu filme anterior, Um Homem de Verdade, onde cada lugar diferente por onde a narrativa passava acabava impregnando ela própria de novas considerações até então insuspeitas nos espaços pregressos. Em Pintar ou Fazer Amor, no entanto, isso se concentra, e se exacerba.

E se o quadro de uma tela de pintura se relaciona com o quadro em que se transforma a própria casa onde o filme se realiza, o que dizer dos limites desse último, o quadro da câmera, a superfície do plano, as possibilidades de disposição do cenário, das locações, dos atores, de sua encenação? São raríssimos no cinema contemporâneo os bons diretores que se devotam de maneira tão honesta e aberta às simbologias e metáforas, elas mesmas uma forma de composição com aquilo que já conhecemos antes de nos depararmos com a novidade de uma história sendo iniciada (a profissão de William, a deficiência de Adam, os próprios nomes “Adam” e “Eva”, sua situação de profanadores de uma ordem estabelecida, a expulsão do paraíso através do incêndio de sua casa). E assim, também preenchendo espaços, William colocará uma velha carroça azul no centro de sua propriedade, e o que havia de estranhamente incompleto naquela paisagem será imediatamente inundado de equilíbrio. Essa incompletude, que acompanha a experiência sexual e a experiência sensível de William e Madeleine, será, por fim, eclipsada pelo plano-síntese de Pintar ou Fazer Amor. Se os Larrieu já vinham conseguindo opor seus dois atores principais de maneira bastante interessante, a tradução em imagem da grande transformação pela qual passam suas vidas mostrará que faltava ali alguma coisa, faltavam exatamente mais dois outros atores, dois outros corpos. Na manhã seguinte ao casamento da filha, depois de uma noite de sexo em que, pela primeira vez, os casais não se trocaram e se dividiram, mas sim permaneceram todos juntos, os quatro se encontram na varanda da casa, o sol nascendo no fundo, e passam a se combinar de todos os modos possíveis através de beijos e abraços, comungando do mesmo quadro. Ali, diferente de uma certa tendência contemporânea que abole a idéia dos pares e que lança-se sobre as imagens da vivência individual, Pintar ou Fazer Amor prova que cinema se faz mesmo é aos quartetos.


Rodrigo de Oliveira

 

 





O exercício de composição dos irmãos Larrieu