Fazer
amor, é claro! Uma vez tocados pela descoberta quase
adolescente do sexo como uma possibilidade de novos
começos num momento em que tudo parece caminhar para
os velhos fins (a aposentadoria, a distração com os
quadros de paisagem, a monotonia dos jantares com os
amigos de sempre), William e Madeleine estarão definitivamente
transformados em seu modo de reagir aos traços do mundo
que os cerca – e também daquele que eventualmente se
farão cercar, com a mudança para o campo. Haverá, a
partir da experiência decisiva com Adam e Eva, uma suscetibilidade
muito maior às inconstâncias desse novo tempo. “Adolescente”
é exatamente o termo, e toda a sobriedade e segurança
na qual se sustentavam será prazerosamente abandonada
em nome da errância pura e simples, irracional apenas
no que isso possa significar o mergulho irrestrito na
busca de uma satisfação que não é outra senão a de descobrir-se
incompleto quando tudo levava a crer que já se estava
devidamente preenchido e aguardando apenas o momento
do encerramento. Há uma graça indisfarçável no modo
como William rapidamente atribui aos parceiros de swing
uma periculosidade absoluta, após a primeira transa,
manipulados que teriam sido por um casal cheio de más
intenções, ou na birra primária de Madeleine ao ter
seu convite de passeio a um chalé nas montanhas negado
em nome de um compromisso já assumido por Adam e Eva
com outros amigos. Passar da previsão, cada vez mais
acertada por todo o aparato tecnológico-sentimental
de que se dispõe (como na profissão de meteorologista,
abandonada depois de anos), para a disposição ao acaso,
ao imponderável, para as possibilidades de combinação
que a vida oferece, chuva no outono, neve no verão,
um casal de compradores de um imóvel como mais um casal
com quem se relacionar sexualmente, e assim por diante.
Ou não seria melhor pintar? Ao mesmo tempo em que a
chegada do jovem casal provoca em William e Madeleine
esta revolução no trato com a experiência física (ser
adolescente é, antes de tudo, ter um corpo de adolescente,
ou readquirir um, no caso), também um outro modo de
contato será alterado. Quando conhece Adam, logo na
primeira seqüência do filme, Madeleine está diante de
um campo arborizado, tentando transporta-lo para um
quadro sem prejuízo de todas as qualidades naturais
ali presentes. Seu papel como pintora é o de uma atravessadora
imparcial entre o ambiente e o pano da tela. Da cegueira
de Adam, e de seu compartilhamento temporário, numa
caminhada às escuras entre uma casa e outra, Madeleine
e seu marido serão apresentados a um novo universo sensível,
que se vale muito menos da apreensão de uma idéia de
realidade do que da projeção de estados de natureza
e de espírito, imaginados ou não, mas que se efetivam
unicamente sobre o terreno da vulnerabilidade. Não mais
transportar o mundo, mas deixar-se atingir por ele,
e fazer dessa falta de guarda a grande mola da experiência
artística, mas também e, sobretudo, da experiência humana.
Nunca o vemos, mas podemos ter certeza que o retrato
nu que Madeleine pinta de Eva, dado o jogo de sensibilidades
vulneráveis estabelecido no ateliê, não será nunca uma
pintura realista, mas um quadro abstrato, testemunha
visceral da troca de projeções de uma à outra.
Posto que a oposição entre uma coisa e outra mostra
apenas que ambas são complementares, e que para Arnaud
e Jean-Marie Larrieu, pintar, fazer amor – e fazer cinema
– tem muito mais proximidades do que distâncias e que,
no fundo, trata-se nos três casos de uma coisa fundamental:
da composição de elementos dentro de um quadro. Quando
não estamos no pano de uma tela propriamente dito, temos
a casa, ela mesma a moldura que não se contenta apenas
em proteger o interior daquilo que cerca, mas que quer
também provocar, ser ativa na conjugação dos sentimentos
que nascem ali dentro. Na primeira vez que visitam o
casebre abandonado, William e Madeleine são instantaneamente
atraídos pelo sexo, que não faziam há tempos, e ali
já podemos ter uma idéia do poder que este quadro tem
em compor harmonicamente os elementos que nele se colocam.
É a destruição de uma outra, concorrente, que tornará
esta casa o lugar privilegiado da realização do amor,
atraindo Adam e Eva, e também os desconhecidos, sendo
percebida até pela filha do casal, que quer se casar
ali, porque sente que o lugar tem algo a contribuir
para essa fórmula do envolvimento. Os irmãos Larrieu
já haviam mantido esse mesmo tipo de relação com um
determinado ambiente em seu filme anterior, Um Homem
de Verdade, onde cada lugar diferente por onde a
narrativa passava acabava impregnando ela própria de
novas considerações até então insuspeitas nos espaços
pregressos. Em Pintar ou Fazer Amor, no entanto,
isso se concentra, e se exacerba.
E se o quadro de uma tela de pintura se relaciona com
o quadro em que se transforma a própria casa onde o
filme se realiza, o que dizer dos limites desse último,
o quadro da câmera, a superfície do plano, as possibilidades
de disposição do cenário, das locações, dos atores,
de sua encenação? São raríssimos no cinema contemporâneo
os bons diretores que se devotam de maneira tão honesta
e aberta às simbologias e metáforas, elas mesmas uma
forma de composição com aquilo que já conhecemos antes
de nos depararmos com a novidade de uma história sendo
iniciada (a profissão de William, a deficiência de Adam,
os próprios nomes “Adam” e “Eva”, sua situação de profanadores
de uma ordem estabelecida, a expulsão do paraíso através
do incêndio de sua casa). E assim, também preenchendo
espaços, William colocará uma velha carroça azul no
centro de sua propriedade, e o que havia de estranhamente
incompleto naquela paisagem será imediatamente inundado
de equilíbrio. Essa incompletude, que acompanha a experiência
sexual e a experiência sensível de William e Madeleine,
será, por fim, eclipsada pelo plano-síntese de Pintar
ou Fazer Amor. Se os Larrieu já vinham conseguindo
opor seus dois atores principais de maneira bastante
interessante, a tradução em imagem da grande transformação
pela qual passam suas vidas mostrará que faltava ali
alguma coisa, faltavam exatamente mais dois outros atores,
dois outros corpos. Na manhã seguinte ao casamento da
filha, depois de uma noite de sexo em que, pela primeira
vez, os casais não se trocaram e se dividiram, mas sim
permaneceram todos juntos, os quatro se encontram na
varanda da casa, o sol nascendo no fundo, e passam a
se combinar de todos os modos possíveis através de beijos
e abraços, comungando do mesmo quadro. Ali, diferente
de uma certa tendência contemporânea que abole a idéia
dos pares e que lança-se sobre as imagens da vivência
individual, Pintar ou Fazer Amor prova que cinema
se faz mesmo é aos quartetos.
Rodrigo de Oliveira
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