O
diabo veste Prada, mas não é ele quem controla o universo
da moda, no fim das contas. Ele nem ninguém. Pode parecer
meio clichê, pode até mesmo parecer raso, mas se há
uma instância superior e controladora nesse universo
da moda abordado pelo filme de David Frankel, esta não
deve ser procurada na figura desgastada do grande manipulador
de destinos, o mastermind, o vilão que maquina
seus planos e exerce seu poder sobre um determinado
grupo. O que controla o mundo da moda é sua imagem,
a imagem que esse mundo produz e que tem vida própria:
a moda, uma vez criada, seja ela um tipo de vestido
ou um corte de cabelo, vive seu ciclo (cresce, se espalha,
desaparece, retorna) independentemente de quem a criou.
É claro que o filme joga com o estereótipo da poderosa
chefona através da personagem de Meryl Streep, Miranda
Priestly, editora chefe da revista Runaway, algo como
uma bíblia da alta costura. Joga de forma inteligente,
mostrando como também ela está em alguma medida subjugada
por um sistema sem freios morais ou limites financeiros.
Temida e respeitada por todos com quem trabalha, Miranda
parece reinar absoluta no seu métier. Mas não
precisamos esperar pela moral da história: desde o início
assistimos ao filme confrontando essa figura anacrônica
– de um sistema que possui centro estável, intocável,
ao redor do qual todos flutuam ao sacrifício de suas
individualidades e mesmo de seus anseios – com a dinâmica
dos grandes sistemas multimilionários de hoje, onde
tudo é provisório e nenhuma chefia está protegida dos
vendavais da lógica de mercado, e onde o “bom emprego”
é comumente confundido com uma espécie de escravatura
de prestígio (“muitas garotas matariam para estar onde
você está”, dizem à nova assistente de Miranda).
Se O Diabo Veste Prada fala de um universo regido
por imagens, nada mais justo do que ter uma falsa vilã,
Miranda, que precisa sustentar sua fama de predadora
porque isso faz parte do jogo. A humanização da personagem,
mais que previsível, clichê dos clichês, acaba acontecendo
de maneira muito interessante, sem que ela abandone
a imagem (o look fatal de Miranda já no
finzinho do filme, antes de entrar no carro, é daqueles
planos que, de tão codificados e saturados, só podem
funcionar com determinadas atrizes, e Meryl Streep definitivamente
é uma delas). Ela se descortina na nossa frente como
“pessoa comum” na cena do hotel, quando fala de seu
iminente divórcio, mas isso ocorre sem que ela deixe
de ser a personagem que é no dia-a-dia, o diabo que
aterroriza um prédio inteiro em Nova York. Uma coisa
está emaranhada na outra, não há como separar e fazer
Miranda mudar da água pro vinho, pois o filme trata
de transformação, claro, mas não dela, e sim de Andy
Sachs, a personagem de Anne Hathaway, a jovem jornalista
que vai trabalhar como sua assistente.
Andy é a personagem principal do filme, que nos permite
entrar naquele universo mesmo sem pertencer a ele. Ela,
que nunca ligara para moda, se vestia mal, nada tinha
a ver com aquilo, pouco a pouco entra na dança, aprende
a se vestir, torna-se uma super-assistente. O olhar
parcialmente distanciado, contudo, permanece no filme,
e há sempre uma tensão de escape, de fuga daquele espaço
límpido e reluzente. David Frankel, de currículo considerável
em séries de TV (Sex and the City, por exemplo,
com quem o filme guarda paralelos que não chegam a incomodar),
não tomou o caminho fácil da glamourização excessiva
das imagens. Ele sabe que o mundo que filma é uma imagem
a priori, sabe que a Nova York e a Paris que filma estão
pré-estilizadas pelo filtro fashion, então prefere
não pesar uma segunda mão de verniz, e apenas transita
por esse mundo, age como quem está de passagem, tentando
acompanhar sua velocidade e volúpia. Com isso, com essa
dinâmica que nada mais é que a adesão ao ponto de vista
da apaixonante Andy, O Diabo Veste Prada consegue
ao mesmo tempo estar dentro e fora do universo da moda.
Andy muda ao longo do filme, passa por seu rito de iniciação
profissional, cativa as pessoas que estão a seu redor.
Mas ela precisa sair dali e seguir em frente, porque
o sistema, ao contrário dela, não mudará. Cada um com
seu cada um.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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