INTERVALO CLANDESTINO
Erik Rocha, Brasil, 2006

ntervalo Clandestino não é um filme sobre o povo. É um filme sobre o pixel. Fica claro desde o primeiro plano (fechado, muito fechado) que o objetivo da filmagem – escreveria aqui “do documentário”, mas a esta altura faz-se necessário redefinir este termo, para não se correr riscos; o que farei mais abaixo – é o apagamento da singularidade. Em digital e em close, rugas, poros, reentrâncias, luminosidades à mostra, todos os falantes são revelados em sua dimensão puntiforme: ninguém ali é uma unidade discreta, todos são grãos, tijolos da construção de uma mesma imagem. De uma certa noção de social. Nesse sentido, a noção tradicional de “tecido social” é cara à semiologia do que se vê na tela. É a revelação de uma trama, de uma tecitura ­– como se se olhasse um pedaço de tecido com uma lupa – o que acontece diante dos olhos.

Nessa operação, o povo vira massa. De manobra. Mas não no sentido fascista do termo. Eryk Rocha está preocupado com a formação de um continuum de vozes, um todo social complexo. Mas é uma operação antes de tudo estética. Antes de ser sociológica e antes de ser documental.

Por isso mesmo, quero propor um modelo, um sistema de observação para o documentário, necessário, parece-me, diante de Intervalo Clandestino – e, mostrarei, de outros filmes brasileiros recentes.

O termo documentário, aliás, diante do filme, vira, até para se falar de outros filmes, um adjetivo. Não funciona como uma definição substantiva, uma coisa em si. O trabalho de Eryk Rocha, em face a um hábito formado pelo documentarismo mais recente, traz para essa atividade uma noção de atribuição: um filme pode ser chamado de documentário não porque tenha sido filmado para tal, mas porque tenha operacionalizado uma estratégia de conversação com aquilo que filma. Ou seja, quero propor que “documentário” é uma representação, algo de que se chama alguma coisa, não uma coisa em si. Ser documentário é como ser feio ou ser verde: pode-se ser mais ou menos.

E nesse sentido, é uma operação antagônica à da singularização humanizante do cinema de um Eduardo Coutinho – perseguida também habitualmente pelo documentarismo brasileiro recente. Não estão em jogo ali a originalidade ou a unicidade das vozes e nem a observação de uma regularidade entre elas, caso de filmes como Edifício Master, Peões ou O Fim e o Princípio, os três últimos de Coutinho. O que importa é o mosaico. Um mosaico formado de vozes e de espaços entre seus elementos.

O que não permite muita dúvida: o grande personagem do filme é a montagem. Para o bem e para o mal. Para o mal porque para produzir esse sistema, paga-se o preço de produzir alguma dialética simplificadora em sua mecânica – ao, por exemplo, mostrar um operário a quebrar pedras e, logo depois, o presidente Lula, o "ex-operário" a discursar. O mesmo ocorre com a opção por condensar as falas em blocos temáticos – pessoas definindo "política", pessoas falando sobre o voto, pessoas falando sobre Getúlio Vargas, pessoas falando sobre a ditadura etc. Cria-se com ela uma organização episódica que impõe uma temporalidade e, com isso, impõe sentidos. Limita-se, assim, à informação. De uma série de teses. Falta caos à composição de falas. Para o bem justamente pela pulverização que promove.

O filtro ideológico de Intervalo Clandestino, então, limitará a operação de apagamento. Em vez de um todo-fluxo, o filme estabelecerá bolsões, espaços de concentração de sentidos que, tivesse a operação central da montagem sido levada à radicalidade, à exemplo de um Signo do Caos, seriam desnecessário, como aliás já o são e esses bolsões demarcarão pontos de estagnação.

Mas descontados um claro conjunto de discursos políticos estabelecidos pela própria edição, discursos esses constituídos segundo uma lógica moral do gênero posicionar-se-contra-os-poderosos-é-uma-questão-de-ética e uma óbvia vontade de uma síntese de uma noção de brasilidade, é justamente no pontilhismo dessingularizante que o filme se singulariza. O "grão da voz" – no sentido do semiólogo francês Roland Barthes – é redefinido visualmente. O grão da imagem – e do som, que no filme se cola e se descola do visual e produz momentos de confusão imprescindíveis para a vontade de potencializar a totalidade – traz a noção de social a ser pensada na atualidade. Ele não filma relações e nem ações, filma apenas a rede e ela é montada plano a plano, ruído a ruído, discurso a discurso, com ou sem conteúdo.

E é nesse sentido que o filme acontece na montagem. Porque Intervalo Clandestino claramente traz tanto na montagem externa quanto na externa uma estrutura rizomática. Ele quer ser ao mesmo tempo todos os filmes que é e todos os que poderia ser. Ele traz em cada imagem uma idéia de que aquele plano poderia estar envolvido em uma outra rede de confusões, e o termo confusão é estratégico para o filme. É ela sua lógica, a da produção de uma equivocidade pelo ruído, de uma polifonia pela sobreposição. Em sua quase-confusão, em sua caminhada cuidadosa, ele estabelece um estatuto outro para a imagem, sobretudo para a imagem estabelecida a partir de uma certa noção de real.

Intervalo Clandestino não é um documentário. É um filme de ficção. Um tenso drama. Entre planos e falas.


Alexandre Werneck