ntervalo
Clandestino não é um filme sobre o povo. É um filme
sobre o pixel. Fica claro desde o primeiro plano (fechado,
muito fechado) que o objetivo da filmagem – escreveria
aqui “do documentário”, mas a esta altura faz-se necessário
redefinir este termo, para não se correr riscos; o que
farei mais abaixo – é o apagamento da singularidade.
Em digital e em close, rugas, poros, reentrâncias, luminosidades
à mostra, todos os falantes são revelados em sua dimensão
puntiforme: ninguém ali é uma unidade discreta, todos
são grãos, tijolos da construção de uma mesma imagem.
De uma certa noção de social. Nesse sentido, a noção
tradicional de “tecido social” é cara à semiologia do
que se vê na tela. É a revelação de uma trama, de uma
tecitura – como se se olhasse um pedaço de tecido com
uma lupa – o que acontece diante dos olhos.
Nessa operação, o povo vira massa. De manobra. Mas não
no sentido fascista do termo. Eryk Rocha está preocupado
com a formação de um continuum de vozes, um todo
social complexo. Mas é uma operação antes de tudo estética.
Antes de ser sociológica e antes de ser documental.
Por isso mesmo, quero propor um modelo, um sistema de
observação para o documentário, necessário, parece-me,
diante de Intervalo Clandestino – e, mostrarei,
de outros filmes brasileiros recentes.
O termo documentário, aliás, diante do filme, vira,
até para se falar de outros filmes, um adjetivo. Não
funciona como uma definição substantiva, uma coisa em
si. O trabalho de Eryk Rocha, em face a um hábito formado
pelo documentarismo mais recente, traz para essa atividade
uma noção de atribuição: um filme pode ser chamado de
documentário não porque tenha sido filmado para tal,
mas porque tenha operacionalizado uma estratégia de
conversação com aquilo que filma. Ou seja, quero propor
que “documentário” é uma representação, algo de que
se chama alguma coisa, não uma coisa em si. Ser documentário
é como ser feio ou ser verde: pode-se ser mais ou menos.
E nesse sentido, é uma operação antagônica à da singularização
humanizante do cinema de um Eduardo Coutinho – perseguida
também habitualmente pelo documentarismo brasileiro
recente. Não estão em jogo ali a originalidade ou a
unicidade das vozes e nem a observação de uma regularidade
entre elas, caso de filmes como Edifício Master,
Peões ou O Fim e o Princípio, os três
últimos de Coutinho. O que importa é o mosaico. Um mosaico
formado de vozes e de espaços entre seus elementos.
O que não permite muita dúvida: o grande personagem
do filme é a montagem. Para o bem e para o mal. Para
o mal porque para produzir esse sistema, paga-se o preço
de produzir alguma dialética simplificadora em sua mecânica
– ao, por exemplo, mostrar um operário a quebrar pedras
e, logo depois, o presidente Lula, o "ex-operário" a
discursar. O mesmo ocorre com a opção por condensar
as falas em blocos temáticos – pessoas definindo "política",
pessoas falando sobre o voto, pessoas falando sobre
Getúlio Vargas, pessoas falando sobre a ditadura etc.
Cria-se com ela uma organização episódica que impõe
uma temporalidade e, com isso, impõe sentidos. Limita-se,
assim, à informação. De uma série de teses. Falta caos
à composição de falas. Para o bem justamente pela pulverização
que promove.
O filtro ideológico de Intervalo Clandestino, então,
limitará a operação de apagamento. Em vez de um todo-fluxo,
o filme estabelecerá bolsões, espaços de concentração
de sentidos que, tivesse a operação central da montagem
sido levada à radicalidade, à exemplo de um Signo do
Caos, seriam desnecessário, como aliás já o são e esses
bolsões demarcarão pontos de estagnação.
Mas descontados um claro conjunto de discursos políticos
estabelecidos pela própria edição, discursos esses constituídos
segundo uma lógica moral do gênero posicionar-se-contra-os-poderosos-é-uma-questão-de-ética
e uma óbvia vontade de uma síntese de uma noção de brasilidade,
é justamente no pontilhismo dessingularizante que o
filme se singulariza. O "grão da voz" – no sentido do
semiólogo francês Roland Barthes – é redefinido visualmente.
O grão da imagem – e do som, que no filme se cola e
se descola do visual e produz momentos de confusão imprescindíveis
para a vontade de potencializar a totalidade – traz
a noção de social a ser pensada na atualidade. Ele não
filma relações e nem ações, filma apenas a rede e ela
é montada plano a plano, ruído a ruído, discurso a discurso,
com ou sem conteúdo.
E é nesse sentido que o filme acontece na montagem.
Porque Intervalo Clandestino claramente traz tanto na
montagem externa quanto na externa uma estrutura rizomática.
Ele quer ser ao mesmo tempo todos os filmes que é e
todos os que poderia ser. Ele traz em cada imagem uma
idéia de que aquele plano poderia estar envolvido em
uma outra rede de confusões, e o termo confusão é estratégico
para o filme. É ela sua lógica, a da produção de uma
equivocidade pelo ruído, de uma polifonia pela sobreposição.
Em sua quase-confusão, em sua caminhada cuidadosa, ele
estabelece um estatuto outro para a imagem, sobretudo
para a imagem estabelecida a partir de uma certa noção
de real.
Intervalo Clandestino não é um documentário.
É um filme de ficção. Um tenso drama. Entre planos e
falas.
Alexandre Werneck
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