INCURÁVEIS
Gustavo Acioli, Brasil, 2006

Incuráveis é a surpreendente estréia de Gustavo Acioli em longa-metragem. Surpreendente porque, apesar de seus curtas demonstrarem algum talento, eles são irregulares. Parece que Acioli, diretor que demonstrava muito talento nas composições visuais, não conseguia realizar com a câmera seu ponto de vista audacioso e confrontador e, em certo aspecto, pessimista.

Incuráveis retrata uma situação terminal, com um boêmio sendo abordado por uma moça em uma mesa de um bar decadente. Ele, Fernando Eiras, sublime, parece desesperançado, tem a voz lenta e suave de alguém que já cansou de se desesperar. Ela, Dira Paes, não menos sublime, parece querer apenas driblar a solidão. Como ele, ela se abraça a essa oportunidade de cuidar de alguém, e receber cuidados desse mesmo alguém. Ele é um personagem suicida, mas fraco. Pois antes de querer se matar, precisa que alguém saiba que ele quer se matar, e que esse alguém tente salvá-lo de se dar um tiro na cabeça. Sim, ele tem um revolver, e o mostra logo que entra no quarto com a moça (prostituta ou alguém se fazendo de prostituta?). O filme passa a acontecer todo dentro do quarto, a não ser no final, que volta para o mesmo bar decadente do início.

Mas voltemos ao quarto. Nele, a luz parece sempre insuficiente, uma luz que parece dar conta do desespero dos dois boêmios. Uma luz decadentista e urbana, muito bem trabalhada por Lula Carvalho, também estreante em longa-metragem. Essa luz parece envolver os personagens como uma espécie de líquido amniótico. Eles renascem naquele quarto, não sem antes passar por crises de insegurança, motivados pela falta de percepção da reciprocidade do outro. Essas crises se dão com uma enormidade de diálogos cheios de frases feitas, o que não é um problema aqui, pois os personagens mundanos parecem ter nascido falando daquele jeito – palmas para a caracterização desses extraordinários atores. O que está em jogo é uma representação do decadentismo urbano que passa bem longe do decadentismo intelectual, que parece ser o único que o cinema tem interesse de representar. São pessoas que podem ser encontradas em qualquer pulgueiro de nossas ruas mais boêmias.

Pessoas, antes de serem personagens, ainda que em alguns momentos eles caiam na esteriotipagem. Nesses momentos, que acontecem durante o filme inteiro, mas duram poucos minutos, às vezes segundos, o filme ameaça patinar – e ameaça forte. Mas quando percebemos que os estereótipos existem, e estão ali como representativos da construção daquelas personagens como pessoas, ou, melhor explicando, servem para dar uma dimensão mais real às pessoas (afinal, quantas pessoas fora da tela são sempre pessoas, sem deixar um resquício de personagem, de artificialismo de frases feitas, transparecer?). Em suma: é perdoável, e até compreensível, que o casal decadentista do filme transpire esse artificialismo em alguns momentos. São pessoas atuando, antes de serem atores atuando, pessoas tentando entender o outro antes de se abrir, antes de se entregar com todas as forças. Há cálculo, como tem que haver. São caracterizações que, em sua imperfeição, soam muito mais realistas do que se poderia esperar desse tipo de escolha. E esse realismo é um trunfo de direção. Acioli parecia saber os pontos fracos de seus curtas, e isso lhe deu uma força incomum. Força para contornar, abraçar todos esses elementos de risco e tirar deles a razão de ser de seu filme.

Não podemos esquecer do trabalho de câmera, com o corpo dos atores sendo explorados por ela sem que haja uma preocupação em deixar tudo em foco, em enquadrar com rigor as situações. É uma câmera que parece vagar com eles, se perder na escuridão de um quarto que cheira a sexo, sendo que esse cheiro quase pode ser sentido pelo espectador. Um filme que, com todos os senões à monotonia de seu conjunto, reflete um tesão pelo cinema que vai muito além de sua premissa teatral.


Sérgio Alpendre