Incuráveis
é a surpreendente estréia de Gustavo Acioli em longa-metragem.
Surpreendente porque, apesar de seus curtas demonstrarem
algum talento, eles são irregulares. Parece que Acioli,
diretor que demonstrava muito talento nas composições
visuais, não conseguia realizar com a câmera seu ponto
de vista audacioso e confrontador e, em certo aspecto,
pessimista.
Incuráveis retrata uma situação terminal, com
um boêmio sendo abordado por uma moça em uma mesa de
um bar decadente. Ele, Fernando Eiras, sublime, parece
desesperançado, tem a voz lenta e suave de alguém que
já cansou de se desesperar. Ela, Dira Paes, não menos
sublime, parece querer apenas driblar a solidão. Como
ele, ela se abraça a essa oportunidade de cuidar de
alguém, e receber cuidados desse mesmo alguém. Ele é
um personagem suicida, mas fraco. Pois antes de querer
se matar, precisa que alguém saiba que ele quer se matar,
e que esse alguém tente salvá-lo de se dar um tiro na
cabeça. Sim, ele tem um revolver, e o mostra logo que
entra no quarto com a moça (prostituta ou alguém se
fazendo de prostituta?). O filme passa a acontecer todo
dentro do quarto, a não ser no final, que volta para
o mesmo bar decadente do início.
Mas voltemos ao quarto. Nele, a luz parece sempre insuficiente,
uma luz que parece dar conta do desespero dos dois boêmios.
Uma luz decadentista e urbana, muito bem trabalhada
por Lula Carvalho, também estreante em longa-metragem.
Essa luz parece envolver os personagens como uma espécie
de líquido amniótico. Eles renascem naquele quarto,
não sem antes passar por crises de insegurança, motivados
pela falta de percepção da reciprocidade do outro. Essas
crises se dão com uma enormidade de diálogos cheios
de frases feitas, o que não é um problema aqui, pois
os personagens mundanos parecem ter nascido falando
daquele jeito – palmas para a caracterização desses
extraordinários atores. O que está em jogo é uma representação
do decadentismo urbano que passa bem longe do decadentismo
intelectual, que parece ser o único que o cinema tem
interesse de representar. São pessoas que podem ser
encontradas em qualquer pulgueiro de nossas ruas mais
boêmias.
Pessoas, antes de serem personagens, ainda que em alguns
momentos eles caiam na esteriotipagem. Nesses momentos,
que acontecem durante o filme inteiro, mas duram poucos
minutos, às vezes segundos, o filme ameaça patinar –
e ameaça forte. Mas quando percebemos que os estereótipos
existem, e estão ali como representativos da construção
daquelas personagens como pessoas, ou, melhor explicando,
servem para dar uma dimensão mais real às pessoas (afinal,
quantas pessoas fora da tela são sempre pessoas, sem
deixar um resquício de personagem, de artificialismo
de frases feitas, transparecer?). Em suma: é perdoável,
e até compreensível, que o casal decadentista do filme
transpire esse artificialismo em alguns momentos. São
pessoas atuando, antes de serem atores atuando, pessoas
tentando entender o outro antes de se abrir, antes de
se entregar com todas as forças. Há cálculo, como tem
que haver. São caracterizações que, em sua imperfeição,
soam muito mais realistas do que se poderia esperar
desse tipo de escolha. E esse realismo é um trunfo de
direção. Acioli parecia saber os pontos fracos de seus
curtas, e isso lhe deu uma força incomum. Força para
contornar, abraçar todos esses elementos de risco e
tirar deles a razão de ser de seu filme.
Não podemos esquecer do trabalho de câmera, com o corpo
dos atores sendo explorados por ela sem que haja uma
preocupação em deixar tudo em foco, em enquadrar com
rigor as situações. É uma câmera que parece vagar com
eles, se perder na escuridão de um quarto que cheira
a sexo, sendo que esse cheiro quase pode ser sentido
pelo espectador. Um filme que, com todos os senões à
monotonia de seu conjunto, reflete um tesão pelo cinema
que vai muito além de sua premissa teatral.
Sérgio Alpendre
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