Entramos
nas primeiras imagens de Fica Comigo Esta Noite
convidados pela voz over de um personagem-narrador,
que logo na sua primeira fala nos revela não pertencer
mais ao mundo dos vivos. Assim, João Falcão, precisamente
no primeiro minuto de seu segundo longa-metragem, constrói
a ponte que o levará a uma certa tradição narrativa,
que nascida na arte literária, também já foi fartamente
utilizada no cinema. Desde Machado de Assis a Billy
Wilder (para ficarmos nos exemplos literário e cinematográfico
mais lembrados), o recurso estilístico do narrador-morto
se relaciona intimamente com a intenção de proporcionar
um distanciamento crítico aos eventos narrados. Ao mesmo
tempo em que esse narrador representa um olhar externo,
uma vez que ele não está mais pisando o mesmo palco
transitado pelos demais personagens, sua peculiar posição
indica uma irremediável impotência. A sua condição o
impossibilita de entrar novamente na estória e assim
de tentar modificá-la. Ele não é mais capaz de alterar
nada, cabe apenas a esse narrador a lembrança do que
ele vivenciou, a reinterpretação distanciada dos fatos
e o arrependimento de não ter agido de modo diferente.
O arrependimento e a angústia de não ter resolvido certas
questões enquanto estava vivo são os combustíveis que
movem o narrador-morto de João Falcão. “O que eu faria
nos meus últimos momentos de vida se eu soubesse que
aqueles seriam os últimos?”. Ele quer ser mais que o
narrador da estória, ele quer, mesmo estando morto,
entrar no mundo dos vivos e dar prosseguimento de maneira
ativa à estória que começou a narrar, atuando como componente
apto a mudar o seu desfecho. Um narrador-morto que almeja
se converter, nem que seja por uma única noite, em ator
vivo. Ao invés de destilar um comentário irônico ou
fazer uma reelaboração sarcástica em cima dos momentos
lembrados, Edu (Vladimir Brichta) começa lembrando melancolicamente
o momento que viu Laura (Alinne Moraes) pela primeira
vez.
Esse flasback inicial, além de nos narrar o principio
da estória de amor do casal, exerce a função de revelar
o referencial e o universo pop de Edu, que é
incorporado, articulado e estrategicamente trabalhado
pelo filme. Respiramos então o ar de uma livraria e
nela encontramos uma prateleira repleta de histórias
em quadrinhos de Frank Miller e de outros grandes nomes
do mundo dos quadrinhos. Edu está localizado nesse ponto
da loja (ele além de ser desenhista e cartunista, é
guitarrista de uma banda de rock) e Laura, que estava
em outro ponto folheando um livro de Fernando Pessoa,
vai por curiosidade até ao “departamento”, o “setor”
ou ao “habitat” do rapaz. Encontramos aqui a representação
de dois jovens pertencentes à mesma classe social, mas
que possuem gostos e hábitos de consumo cultural diferentes.
Esses hábitos, se diferentes porque se articulam com
diferentes materiais, não são vistos como opostos ou
conflitantes entre si. O referencial pop de Edu
e o mais “erudito” de Laura podem ser encontrados e
comprados na mesma livraria. Além dos dois carregarem
a mesma classificação de produtos e de mercadorias vendáveis,
eles ainda fazem parte de um mesmo mercado, o que imediatamente
lhes confere uma certa paridade. Se a arte “erudita”
ainda possui ressalvas em assimilar o referencial pop
e ainda insiste na permanência de sua “pureza”, a cultura
pop deglute e absorve tudo, inclusive Fernando
Pessoa, fato que já aconteceu há muito tempo. Para impressionar
a sua conquista, Edu fecha o show de sua banda declamando
versos do poeta português. O intuito de se aproximar
do referencial de sua amada o fez decorar e repetir
versos de um autor e de uma arte (a poesia) que não
fazia parte de seu repertório cultural. Da mesma forma,
para atrair e seduzir espectadores que consomem e interagem
com repertórios diferentes (não conflitantes e excludentes),
João Falcão acrescenta em Fica Comigo Esta Noite
elementos que não foram manuseados no seu trabalho cinematográfico
anterior. A grande voltagem pop de A Máquina
é aqui reduzida e dosada. Isso se revela tanto no uso
e na diluição de novos referenciais quanto na construção
das imagens. Sai a interferência exacerbada da televisão,
a sonoridade pop-regional, o clip, os
cenários propositadamente fakes e o artificialismo
mágico-fabular construído. Entram citações de sonetos,
anjos da guarda, clichês de comédias de enredos sobrenaturais,
quadrinhos, fantasmas e a música pop urbana de
bandas de garagem.
A coesão da identidade pop (sonora e imagética)
escolhida pelo filme permanece da seqüência dos créditos
de abertura até mais ou menos o término de sua primeira
parte. A cena do show, onde vemos a feliz opção de escrever
os créditos à maneira dos quadrinhos, também é o momento
de uma outra operação: a famosa canção “Fica Comigo
Essa Noite”, composta por Adelino Moreira e imortalizada
pela voz de Nelson Gonçalves, adquire aqui uma roupagem
moderna. O guitarrista Robertinho do Recife, responsável
pela trilha sonora, amplifica e homenageia a antiga
canção. Assim, além de termos a inclusão de novas informações
absorvidas pelo pop atual, encontramos também
a “atualização” e a homenagem a um referencial popular
de 50 anos atrás. Essa mesma melodia é tocada ao piano
por Laura no dia do velório de Edu e é também tocada
pelo acordeão de dona Mariana (Laura Cardoso) quando
Edu era criança. A mesma canção pop que sonorizava
no passado a estória de amor de Mariana e o Fantasma
do Coração de Pedra (Gustavo Falcão) faz pano de fundo
para o romance de Laura e Edu. Ouvimos a mesma melodia,
só que tocada com diferentes instrumentos. O mesmo conteúdo,
só que com pequenas mudanças na sua execução. É assim
que Fica Comigo Esta Noite se relaciona com o
eterno tema do amor e a sua atual aplicação. Um tema
tão antigo quanto a arte de se contar estórias, uma
vez que “todas as estórias são estórias de amor”. Um
tema atemporal, mas que precisa estar coerente com os
códigos do tempo atual e que por isso necessita formalmente
receber algumas pequenas modificações na sua execução.
Porém, no filme, essa imbatível e incansável temática
está unida a um determinado gênero cinematográfico:
a comédia romântica. E é justamente nesse quesito que
Fica Comigo Esta Noite se depara com as suas
limitações.
O filme se vê obrigado em condensar certas resoluções
dramáticas e a dar um ritmo mais acelerado do meio para
o final. As seqüências de maior humor, como a do velório,
tiveram que apresentar um tom mais dinâmico e ligeiro
para que o encontro amoroso final ganhasse uma maior
atenção. A revelação de que o anjo da guarda (Clarisse
Falcão) é de fato a dona Mariana foi apressadamente
articulada. O desfecho é totalmente mal resolvido. Esses
e outros fatores fazem de Fica Comigo Esta Noite,
um filme que tem bons momentos, mas que desanda pela
obrigação em seguir determinados padrões de comédia
romântica.
Estevão Garcia
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