FICA COMIGO ESTA NOITE
João Falcão, Brasil, 2006

Entramos nas primeiras imagens de Fica Comigo Esta Noite convidados pela voz over de um personagem-narrador, que logo na sua primeira fala nos revela não pertencer mais ao mundo dos vivos. Assim, João Falcão, precisamente no primeiro minuto de seu segundo longa-metragem, constrói a ponte que o levará a uma certa tradição narrativa, que nascida na arte literária, também já foi fartamente utilizada no cinema. Desde Machado de Assis a Billy Wilder (para ficarmos nos exemplos literário e cinematográfico mais lembrados), o recurso estilístico do narrador-morto se relaciona intimamente com a intenção de proporcionar um distanciamento crítico aos eventos narrados. Ao mesmo tempo em que esse narrador representa um olhar externo, uma vez que ele não está mais pisando o mesmo palco transitado pelos demais personagens, sua peculiar posição indica uma irremediável impotência. A sua condição o impossibilita de entrar novamente na estória e assim de tentar modificá-la. Ele não é mais capaz de alterar nada, cabe apenas a esse narrador a lembrança do que ele vivenciou, a reinterpretação distanciada dos fatos e o arrependimento de não ter agido de modo diferente. O arrependimento e a angústia de não ter resolvido certas questões enquanto estava vivo são os combustíveis que movem o narrador-morto de João Falcão. “O que eu faria nos meus últimos momentos de vida se eu soubesse que aqueles seriam os últimos?”. Ele quer ser mais que o narrador da estória, ele quer, mesmo estando morto, entrar no mundo dos vivos e dar prosseguimento de maneira ativa à estória que começou a narrar, atuando como componente apto a mudar o seu desfecho. Um narrador-morto que almeja se converter, nem que seja por uma única noite, em ator vivo. Ao invés de destilar um comentário irônico ou fazer uma reelaboração sarcástica em cima dos momentos lembrados, Edu (Vladimir Brichta) começa lembrando melancolicamente o momento que viu Laura (Alinne Moraes) pela primeira vez.

Esse flasback inicial, além de nos narrar o principio da estória de amor do casal, exerce a função de revelar o referencial e o universo pop de Edu, que é incorporado, articulado e estrategicamente trabalhado pelo filme. Respiramos então o ar de uma livraria e nela encontramos uma prateleira repleta de histórias em quadrinhos de Frank Miller e de outros grandes nomes do mundo dos quadrinhos. Edu está localizado nesse ponto da loja (ele além de ser desenhista e cartunista, é guitarrista de uma banda de rock) e Laura, que estava em outro ponto folheando um livro de Fernando Pessoa, vai por curiosidade até ao “departamento”, o “setor” ou ao “habitat” do rapaz. Encontramos aqui a representação de dois jovens pertencentes à mesma classe social, mas que possuem gostos e hábitos de consumo cultural diferentes. Esses hábitos, se diferentes porque se articulam com diferentes materiais, não são vistos como opostos ou conflitantes entre si. O referencial pop de Edu e o mais “erudito” de Laura podem ser encontrados e comprados na mesma livraria. Além dos dois carregarem a mesma classificação de produtos e de mercadorias vendáveis, eles ainda fazem parte de um mesmo mercado, o que imediatamente lhes confere uma certa paridade. Se a arte “erudita” ainda possui ressalvas em assimilar o referencial pop e ainda insiste na permanência de sua “pureza”, a cultura pop deglute e absorve tudo, inclusive Fernando Pessoa, fato que já aconteceu há muito tempo. Para impressionar a sua conquista, Edu fecha o show de sua banda declamando versos do poeta português. O intuito de se aproximar do referencial de sua amada o fez decorar e repetir versos de um autor e de uma arte (a poesia) que não fazia parte de seu repertório cultural. Da mesma forma, para atrair e seduzir espectadores que consomem e interagem com repertórios diferentes (não conflitantes e excludentes), João Falcão acrescenta em Fica Comigo Esta Noite elementos que não foram manuseados no seu trabalho cinematográfico anterior. A grande voltagem pop de A Máquina é aqui reduzida e dosada. Isso se revela tanto no uso e na diluição de novos referenciais quanto na construção das imagens. Sai a interferência exacerbada da televisão, a sonoridade pop-regional, o clip, os cenários propositadamente fakes e o artificialismo mágico-fabular construído. Entram citações de sonetos, anjos da guarda, clichês de comédias de enredos sobrenaturais, quadrinhos, fantasmas e a música pop urbana de bandas de garagem.

A coesão da identidade pop (sonora e imagética) escolhida pelo filme permanece da seqüência dos créditos de abertura até mais ou menos o término de sua primeira parte. A cena do show, onde vemos a feliz opção de escrever os créditos à maneira dos quadrinhos, também é o momento de uma outra operação: a famosa canção “Fica Comigo Essa Noite”, composta por Adelino Moreira e imortalizada pela voz de Nelson Gonçalves, adquire aqui uma roupagem moderna. O guitarrista Robertinho do Recife, responsável pela trilha sonora, amplifica e homenageia a antiga canção. Assim, além de termos a inclusão de novas informações absorvidas pelo pop atual, encontramos também a “atualização” e a homenagem a um referencial popular de 50 anos atrás. Essa mesma melodia é tocada ao piano por Laura no dia do velório de Edu e é também tocada pelo acordeão de dona Mariana (Laura Cardoso) quando Edu era criança. A mesma canção pop que sonorizava no passado a estória de amor de Mariana e o Fantasma do Coração de Pedra (Gustavo Falcão) faz pano de fundo para o romance de Laura e Edu. Ouvimos a mesma melodia, só que tocada com diferentes instrumentos. O mesmo conteúdo, só que com pequenas mudanças na sua execução. É assim que Fica Comigo Esta Noite se relaciona com o eterno tema do amor e a sua atual aplicação. Um tema tão antigo quanto a arte de se contar estórias, uma vez que “todas as estórias são estórias de amor”. Um tema atemporal, mas que precisa estar coerente com os códigos do tempo atual e que por isso necessita formalmente receber algumas pequenas modificações na sua execução. Porém, no filme, essa imbatível e incansável temática está unida a um determinado gênero cinematográfico: a comédia romântica. E é justamente nesse quesito que Fica Comigo Esta Noite se depara com as suas limitações.

O filme se vê obrigado em condensar certas resoluções dramáticas e a dar um ritmo mais acelerado do meio para o final. As seqüências de maior humor, como a do velório, tiveram que apresentar um tom mais dinâmico e ligeiro para que o encontro amoroso final ganhasse uma maior atenção. A revelação de que o anjo da guarda (Clarisse Falcão) é de fato a dona Mariana foi apressadamente articulada. O desfecho é totalmente mal resolvido. Esses e outros fatores fazem de Fica Comigo Esta Noite, um filme que tem bons momentos, mas que desanda pela obrigação em seguir determinados padrões de comédia romântica.


Estevão Garcia