Se
a Lilie de Chotilde Hesme estiver mesmo certa ao dizer
que a manhã é italiana e a noite alemã, muita dúvida
não restaria na afirmação conseqüente de que a tarde
sempre foi francesa. E como sabemos desde Eric Rohmer,
é a tarde o espaço preferencial do amor. Entre a agitação
ostensiva do trabalho e o apagar das luzes no fim do
expediente, entre a pilha de papéis a analisar e a simples
conferência aborrecida de datas e assinaturas, entre
a efervescência e o esgotamento, neste período em que
o ordinário o é tão completamente que qualquer atividade
que escape dele se torna, de imediato, um momento de
suspensão, elevação de um acontecimento à categoria
de ato revelador (certamente ajudado pela luminosidade
que o sol ainda tem nesse horário), ali o amor encontra
privilégios para se realizar. O título destaca os agentes,
mas é bom não se enganar. Os amantes são apenas os recipientes
temporários do sentimento, apaixonados por procuração
– um dos papéis que nosso trabalhador imaginário analisou
e assinou anteriormente haveria certamente de ser uma
dessas certidões de compartilhamento do coração. Sim,
temporários, porque existe uma relação de regularidade,
de constância, que supera o caso de Gauthier e Antoine,
de Jean-Christophe e a mocinha a quem ensina a roubar
livros de um sebo, de Jerome e sua musa inspiradora,
que supera mesmo a de François e Lilie: os verdadeiros
amantes constantes aqui são o cinema e a própria idéia
de amar.
“Você não viu nada em 68”
Porque o cinema aconteceria mesmo que não existissem
personagens, mesmo que não existissem histórias, mesmo
que tudo o que houvesse diante de uma lente fosse o
vazio absoluto, desapercebido de qualquer traço distintivo,
aconteceria desde que nos dispuséssemos a estabelecer
alguma ligação com esse vazio (nossa única referência
de mundo), e esta ligação se daria, eventualmente, pela
força amorosa. E que sorte a nossa, por existirem tantos
personagens e tantas histórias acontecendo a cada minuto,
e que “mundo” seja um conceito tão palpável, porque
a soma desses dois elementos fundamentais, e assim também
o amor, que não é mais do que a disposição em tomar
parte desse mundo de maneira íntegra e plena. Amamos,
portanto, personagens e suas histórias, e se são estes
também os constituintes do mundo, e do cinema que se
faz dele, “cinema”, “amor” e “mundo” são apenas três
variações de algo que, na pré-história do vocabulário,
era uma coisa só. Philippe Garrel restabelece essa ligação
original com seus Amantes Constantes.
A certa altura dos debates imediatamente posteriores
aos enfrentamentos no Quartier Latin, um dos personagens
mais ativos nas ruas se pergunta “como é possível fazer
uma revolução pelo proletariado, apesar do proletariado”,
e os ecos dessa fórmula de ação tão complexa se espalham
para muito além do caráter de problema-chave das esquerdas
da época. Trazida para a linha de frente da imagem:
como falar por 1968, apesar de 1968? Ou melhor dizendo,
como filmar 1968 apesar do que dele já se pôde saber
e dizer até agora, apesar dos anos 2000? Até aqui, o
que guiou os cineastas que se aventuraram na resposta
a essa pergunta foi sempre uma idéia de restituição
memorial dos eventos: não bastava estar diante de uma
geração passada, era preciso inventariá-la. O peso das
palavras era maximizado, e assim falar “pela” época
significava falar em lugar dela, calando-a; ao mesmo
tempo fazer isso “apesar” do agora servia como disfarce
para toda uma carga de recalque revisionista e uma certa
frouxidão de princípios (Garrel é mais incisivo do que
nós por contar com um recurso de ratificação extremamente
eficiente e corajoso, e faz sua protagonista se dirigir
diretamente à câmera para, enfaticamente, nomear o boi,
coisa que aqui só poderemos destacar por esses míseros
parênteses: Bernardo Bertolucci – não o de Antes
da Revolução, filme honesto em sua confusão de sentidos,
mas Os Sonhadores, seu oposto completo).
Num artigo chamado Morte todas as tardes, André
Bazin sugere que a suprema perversão cinematográfica
seria projetar inversamente uma execução, como nos esquetes
cômicos de um ator que “salta” da água de volta para
o trampolim, e há perversidade muito parecida na decisão
de reviver uma época a partir de um simples truque de
ordenação. Ou talvez até pior: um homem levando uma
bala na cabeça, o crânio explodindo após o disparo,
isso se vê, e voltar o negativo para que o crânio
se recomponha e que a bala retorne ao tambor da arma
é tentar controlar a vida na imagem, o que é
cruel, mas justificado pelo poder real sobre o tempo.
Mas como fazer com a geração de 68, sobre cujo tempo
não temos controle nenhum, porque não os filmamos lá,
em seu espaço e época? Pier Paolo Pasolini imaginava
um experimento de totalização da realidade, partindo
do evento central do assassinato do presidente americano
John Kennedy. Se lá, durante o desfile em carro aberto,
cada um dos que tomavam parte daquele momento dispusesse
de uma câmera, inclusive a vítima e o assassino, e se
esses registros de milhares de pontos de vista fossem
unidos posteriormente pela montagem, assim teríamos
uma imagem total que realmente daria conta do acontecido:
a morte do presidente seria visível. Mas essa
experiência é apenas imaginada, e de certo modo impossível,
posto que qualquer idéia de totalidade, sobretudo quando
diante de um evento da História, sobretudo quando diante
da possibilidade de traze-lo para o cinema, será sempre
frustrada. O cinema, que é a arte de tantas coisas,
por vezes também é a arte do invisível.
Sim, porque se não vemos Maio de 68 isso não significa
que ele não esteja lá, disponível à nossa vontade de
aproximação. Em Hiroshima Mon Amour, a francesa
Elle insistia em ter visto corredores de hospitais cheios
de vítimas da bomba, museus expondo restos de objetos
destruídos e escombros gerados pela explosão, e ainda
que Alain Resnais acompanhe essas afirmativas com imagens
em movimento contínuo desses mesmos lugares, atualizados
na memória da personagem, Lui, seu amante japonês, responde
categoricamente: “Você não viu nada em Hiroshima”. Estamos
diante da impossibilidade do relato, porque qualquer
olhar sobre a História (e, portanto, o olhar do cinema)
é sempre retardatário; ela acontece quando lá não estamos,
não enquanto observadores, não enquanto cineastas, não
enquanto espectadores de um filme. Diante dela, diante
de Hiroshima ou do Quartier Latin, mesmo àqueles que
estiveram no front de batalha, que foram também seus
agentes, como Garrel e Bertolucci, só resta a ilusão.
Ilusão diante da História, exatamente como a ilusão
do amor.
“Seu nome é 68, 68 na França”
Ainda de acordo com aquele mesmo artigo de Bazin, “como
a morte, o amor se vive, mas não se representa (...)
pelo menos não se representa sem violentar a sua natureza”.
Há em Garrel um respeito profundo pela natureza daquilo
sobre o qual se debruça, e se a violência é uma obscenidade,
como quer o teórico francês, seu oposto só pode ser
o êxtase purificado da paixão. Realiza-se um pacto de
honra entre a câmera e aquilo que ela registra: tão
logo a primeira assuma os riscos e os desafios de se
dispor irrestritamente à sua vivência plena, a segunda
permitirá que se contamine, e que eventualmente até
tome parte de toda porção de mundo pulsante e vertiginoso
da qual está investida, em uma palavra, de todo seu
amor por tudo o que se envolve nela. Longe a representação,
longe a imagem, Amantes Constantes é a própria
apresentação, anti-imagem de uma época.
Nesse mundo nada se vê, tudo se vive. Garrel não faz
um filme sobre uma geração, quer na verdade estar
com ela. Identificar-se com esses personagens
de maneira completa, assumir seus nomes, sujar a mão
com o querosene do coquetel molotov e se orgulhar ao
oferecer o cheiro a um amigo, dividir um quarto na república
de artistas, eventualmente equilibrar-se numa cama embutida
enquanto Lilie mostra a foto de seu pai, personagem
pasoliniano. Estamos aqui muito distantes do cinema
comedor-de-dross, aquele que se contenta com os restos
miseráveis de uma memória entorpecida e que faz dela
o caminho de uma viagem de nostalgia. Talvez seja culpa
do ópio, mas em Amantes Constantes nossa experiência
no tempo é vertical, quântica. Vivemos sempre numa espécie
de agora-fílmico, que é a mistura de tudo o que se passava
em 68 com tudo o mais que poderíamos lembrar da revolução
iluminista, com mais uma parte do temível, mas necessário,
século XXI, responsável por toda tristeza indisfarsável
que nos acompanha sempre (foi Serge Daney quem disse
que, sendo produto do presente, o cinema não poderia
nunca ser um exercício de saudade, mas tão somente um
depositário de melancolias). Ao mesmo tempo estamos
numa França tão evidente quanto subterrânea, que acontece
em becos escuros, telhados de prédios e interiores de
quartos, mas que é vasta e descampada como a praça de
guerra na qual nos vemos rapidamente metidos no começo
do filme. O passado, no que tange sua construção fotográfica,
é apenas uma maneira de enquadrar e compor no presente.
William Lubtchansky filma uma barricada com a mesma
panorâmica lateral que um dia usara para apresentar
um certo vale na Sicília, e como lá, ao mesmo tempo
em que somos introduzidos espacialmente nas idéias atribuídas
aquele ambiente, ainda assim qualquer tentativa de captura
nos escapa completamente. No meio um manifestante comanda
o ataque à polícia, até que o movimento revele no lado
esquerdo um casal se beijando apaixonadamente, com os
carros em chamas servindo de fundo, para que então no
lado direito vejamos nosso François agachado, ferido,
e mais um grupo se preparando para lançar pedras contra
o inimigo. Eis a possibilidade de painel que Amantes
Constantes nos apresenta: o quadro rigorosamente
composto, e ainda assim tudo resta a ser colocado ali.
Um tempo, um espaço, e nossa ilusão se completa com
estes pequenos revolucionários de si mesmos. Necessário
que seja o pudor ao se destacar como valor automático
o carinho que se tenha por seus próprios personagens,
Amantes Constantes estabelece um outro parâmetro
para sua relação: o amor é sim um mandamento, e não
importa que melhore ou piore o tratamento dado a quem
quer que seja. Mesmo aqueles que não o mereçam, mesmo
aqueles que não o elejam como sentimento fundamental
de suas existências, que vivam de ódio ou de desprezo,
e que por isso repilam qualquer tentativa de aproximação,
ainda assim estes desgarrados só podem existir porque
existe no horizonte a possibilidade de seu oposto. Se
é um problema de amar ou deixar, nós fazemos aqui fazemos
questão de amá-los.
Só assim, cuidando para equilibrar perfeitamente as
porções componentes desse mundo invisível, regido pelo
amor e embalado pelo cinema, é possível viver inclusive
seus ruídos, sem nunca parecer soberano sobre eles,
mas se confrontando honestamente com suas incongruências,
deixando-as evidentes sem nunca permitir que fiquem
desprotegidas. Somos tão amantes e tão constantes quanto
todos ali, seus medos e seus erros, como seus corações,
também são os nossos. Assim, ouviremos a já mencionada
frase “como fazer a revolução pelo proletariado, apesar
do proletariado?” logo após uma seqüência curta, de
dois planos apenas, onde vemos François e três de seus
amigos voltando dos confrontos no Quartier Latin, já
na manhã do dia seguinte, e no modo como carregam seus
corpos cansados pela rua, os rostos negros de fuligem
e a roupa como um uniforme desgastado, há muito da expressão
de um operário na saída de uma fábrica, voltando para
casa. Em outros dois planos isolados, mas complementares,
veremos uma foice jogada no chão da rua, sem nada em
volta, para algum tempo depois voltarmos à mesma composição,
só que agora com um martelo no centro da imagem, acompanhado
de duas pequenas manchas de sangue. No símbolo dividido
da luta socialista e na aproximação entre os jovens
intelectuais e os trabalhadores de quem pareciam, naquele
momento, tão divorciados, o encontro com um ruído, nem
de frente nem de cima, mas por dentro.
É ali dentro que estamos, já completamente embriagados
de Amantes Constantes, quando os primeiros sinais
de sua fraqueza começam a aparecer. Diante da confiança
de alguém como Lilie, que se permite enquadrar em close
por longos minutos, exatamente no momento em que percebe
que sua vida com François já não pode seguir, porque
passara a considerar seriamente a possibilidade de se
mudar para a América, diante daqueles olhos mareados
e perdidos no fora-de-quadro, não há outra atitude possível
senão o abraço. Do mesmo modo, depois de todo o trajeto
cumprido por François, depois de toda acolhida, se ele
decide abandonar o claro-escuro em que fora envolvido
para tomar partido apenas do escuro, se é sobre o preto
que terminaremos ouvindo as palavras de Lilie sobre
sua morte, e se, do lado de cá, temos à disposição a
tela branca e alguns letreiros, não é menos que uma
obrigação atribuir à este momento final o título
de “O Sono dos Justos”.
E, ainda assim, Amantes Constantes não acaba,
pelo contrário. É bem possível que o mundo, o amor e
o cinema, contra tudo o que já ouvimos há bilhões de
anos, apenas tenham começado de fato aqui.
Rodrigo de Oliveira
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