007 - CASSINO ROYALE
Martin Campbell, Casino Royale, EUA, 2006

Os fãs de James Bond e os fãs de Iron Maiden têm algo em comum: o extremo conservadorismo. Eles querem ver sempre o mesmo filme, ouvir sempre o mesmo disco. É por isso que, embora tenha lá seu aspecto retrô em alguns momentos, e embora encene o verdadeiro retorno de uma mitologia, 007 – Cassino Royale possivelmente desagrada aos bondmaníacos mais tradicionalistas. Porque, de fato, se há uma tradição em jogo no filme de Martin Campbell, ela é posta em crise dentro do próprio imaginário da série e dentro da própria noção de action hero. E ir ao cinema para ver seu herói sendo submetido a uma reavaliação clínica não é bem a maior diversão dos admiradores da saga inventada por Ian Fleming.

Mas Cassino Royale também não se deixa parasitar por uma trilha de comentários sobre a série 007. Essa reflexão existe e acompanha o filme, porém não a ponto de transformá-lo em mera piscada de olho – a fase Roger Moore continua imbatível no quesito piadinhas internas. A frase reveladora na primeira parte do filme vem de M (Judy Dench), a chefona/protetora de Bond: “Que saudade da Guerra Fria”. A frase resume o anacronismo dos filmes recentes da série – no mínimo de toda a era Pierce Brosnan. Cassino Royale, entretanto, se abre à possibilidade de um verdadeiro renascimento. Há uma gag que perfaz o desenho narrativo do filme: Bond dá a volta num canteiro e pára o carro no mesmo lugar de onde tinha saído, a entrada do hotel. O filme inteiro é isso, o percurso de uma volta: James precisa fazer o contorno até se tornar Bond. O drama político que permite esse renascimento é o terrorismo internacional. Bond realmente voltou a ter o que combater – há novos inimigos no front, sem precisar forçar a barra. Saindo do confronto entre duas partes predefinidas e focando o combate a um inimigo mais sofisticado, mais espalhado pelo mundo, e cuja infiltração é mais incontrolável que nunca, a ficção paranóica se reinventa em termos tanto de enredo quanto de espaço-tempo. E o herói, este precisa achar um novo posto, uma nova forma de agir e de sobreviver. Para James Bond, isso significa um aprendizado às duras penas: não se pode confiar em ninguém.

Cassino Royale tem uma dezena de cenas iniciáticas. A começar pelo prólogo em preto e branco, marcado por uma violência que se repetirá em muitas partes do filme. O primeiro recado fica dado: o gesto inaugural do novo 007 é de uma violência suja, sem glamour algum, um homem sendo afogado por Bond na pia de um banheiro imundo. Nenhuma morte no filme – à exceção do suicídio da bondgirl, cena de sacrifício humano – se dará sem essa sujeira, essa crueza. Outras cenas de retorno serão marcantes: Bond emergindo das águas, saindo do mar e vindo pra terra (cena originária dos mitos por excelência), Bond sendo ressuscitado após um enfarto por envenenamento, Bond se dando conta da armadilha em que havia caído depois de convalescer no hospital.

Nos anos 90, uma crise do herói acompanhou os estremecimentos técnicos que seriam acentuados por Matrix. O homem-máquina dos anos 80 – com suas carcaças de aço em franca decadência (Stallone, Schwarzenegger) – foi sumindo do cinema de ação até que chegou a vez, nos anos 2000, de heróis menos corpulentos, menos adultos, mais sentimentais, quiçá delicados (Identidade Bourne, Homem-Aranha... nem o Hulk escapou disso). O 007 interpretado por Daniel Craig traz toda essa crise na espessura de seu tórax. Se nos primeiros minutos de filme ele fica entregue ao cinema de ação em sua expressão mais simples (perseguições e afrontamentos físicos), ao chegar no cassino ele precisará provar, e isso toma uma boa parte da intriga, sua desenvoltura em um outro contorcionismo, dessa vez cerebral. As habilidades físicas e as psicológicas do herói buscam se reconciliar, enquanto uma carga emocional se faz cada vez mais dominante. A pista está já na primeira grande seqüência de ação do filme: em meio à perseguição ao fazedor de bombas em Madagascar, temperada pelas aguardadas hipérboles comuns na série 007, uma sucessão de planos feitos do ponto de vista de Bond interfere na decupagem, que até então tinha sido puramente mecânica. Entre uma e outra gag de ação, o filme nos põe então em contato com o raciocínio e com o estado mental de James Bond. Para alcançar o fugitivo, que definitivamente era mais rápido e mais dinâmico que ele nas corridas, nos saltos e nas quedas, Bond lança mão da esperteza, e avista o guindaste que o fará tomar um atalho. É assim que sabemos do que se compõe o esquema narrativo de Cassino Royale: alternância entre momentos de absoluta truculência e de imersão psicológica.

As cenas de pôquer, cujos participantes parecem figuras de videogame, tal é o nível de abstração e de tipificação que o filme assume através deles, apenas confirmam o que as cenas de violência antes já falavam, ou seja, que o filme está ali para exigir muito de Bond, colocá-lo à prova. Seu corpo é posto à prova (ferimentos acompanham Bond o filme todo), seu cérebro idem. Nem seu coração escapa, sendo desafiado duplamente (o veneno ingerido e a decepção amorosa). Para quem estava acostumado ao galante conquistador, o Bond monógamo e genuinamente apaixonado de Cassino Royale deve ser uma aberração. Ele tira férias de amor – melodrama dentro do filme, a seqüência em Veneza é das coisas que faz desse novo 007 não apenas um bom filme, mas uma mostra de que a série tem para onde se expandir e se reconstruir. Se a escolha de Eva Green como a bondgirl mais delicada de todas, para contrastar com o 007 mais musculoso de todos, parecia fórmula fácil no começo da relação, o jogo que se desenvolve entre os dois tem uma fineza que um ou outro campo-contracampo consegue permitir (o encontro deles no trem é muito feliz nesse sentido).

Essa entrega do personagem, que depois deságua em ingenuidade, estimula uma passagem dos jogos teóricos e das engenharias narrativas mais complexas a uma forma mais naïf e mesmo arcaica do gênero. Existe aí uma dialética interessante, prolongada por outros aspectos do filme. É, por exemplo, ao arriscar a virilidade – a hiper-significativa cena da tortura – que Bond “desperta” de vez para o amor: fade out, ele acorda no hospital e começa o idílio romântico, onde a principal cena de sexo é recatada e, acima de tudo, desprovida de sensualidade (eles chegam no quarto molhados de chuva, clichê mor, mas despencam da cama de forma pastelão). O filme cria, também, um desequilíbrio entre a potência tecnológica que cerca e cerceia Bond (singularizada no micro-chip que lhe introduzem no antebraço) e a maneira demasiadamente simples com que ele responde às situações que enfrenta – força física nas perseguições, intuição no pôquer. 007 jamais esteve tão exposto em sua humanidade; o filme parece feito para enumerar os pontos de fragilidade do herói e anunciar sua capacidade de recuperação. Qual será o destino desse retorno?

Luiz Carlos Oliveira Jr.

 

 






O mar ao fundo e as feridas no rosto de James Bond,
que retorna como mito e não apenas como personagem