Os fãs de James Bond e os fãs
de Iron Maiden têm algo em comum: o extremo conservadorismo.
Eles querem ver sempre o mesmo filme, ouvir sempre o
mesmo disco. É por isso que, embora tenha lá seu aspecto
retrô em alguns momentos, e embora encene o verdadeiro
retorno de uma mitologia, 007 – Cassino Royale
possivelmente desagrada aos bondmaníacos mais tradicionalistas.
Porque, de fato, se há uma tradição em jogo no filme
de Martin Campbell, ela é posta em crise dentro do próprio
imaginário da série e dentro da própria noção de action
hero. E ir ao cinema para ver seu herói sendo submetido
a uma reavaliação clínica não é bem a maior diversão
dos admiradores da saga inventada por Ian Fleming.
Mas Cassino Royale também não se deixa parasitar
por uma trilha de comentários sobre a série 007. Essa
reflexão existe e acompanha o filme, porém não a ponto
de transformá-lo em mera piscada de olho – a fase Roger
Moore continua imbatível no quesito piadinhas internas.
A frase reveladora na primeira parte do filme vem de
M (Judy Dench), a chefona/protetora de Bond: “Que saudade
da Guerra Fria”. A frase resume o anacronismo dos filmes
recentes da série – no mínimo de toda a era Pierce Brosnan.
Cassino Royale, entretanto, se abre à possibilidade
de um verdadeiro renascimento. Há uma gag que
perfaz o desenho narrativo do filme: Bond dá a volta
num canteiro e pára o carro no mesmo lugar de onde tinha
saído, a entrada do hotel. O filme inteiro é isso, o
percurso de uma volta: James precisa fazer o contorno
até se tornar Bond. O drama político que permite esse
renascimento é o terrorismo internacional. Bond realmente
voltou a ter o que combater – há novos inimigos no front,
sem precisar forçar a barra. Saindo do confronto entre
duas partes predefinidas e focando o combate a um inimigo
mais sofisticado, mais espalhado pelo mundo, e cuja
infiltração é mais incontrolável que nunca, a ficção
paranóica se reinventa em termos tanto de enredo quanto
de espaço-tempo. E o herói, este precisa achar um novo
posto, uma nova forma de agir e de sobreviver. Para
James Bond, isso significa um aprendizado às duras penas:
não se pode confiar em ninguém.
Cassino Royale tem uma dezena de cenas iniciáticas.
A começar pelo prólogo em preto e branco, marcado por
uma violência que se repetirá em muitas partes do filme.
O primeiro recado fica dado: o gesto inaugural do novo
007 é de uma violência suja, sem glamour algum, um homem
sendo afogado por Bond na pia de um banheiro imundo.
Nenhuma morte no filme – à exceção do suicídio da bondgirl,
cena de sacrifício humano – se dará sem essa sujeira,
essa crueza. Outras cenas de retorno serão marcantes:
Bond emergindo das águas, saindo do mar e vindo pra
terra (cena originária dos mitos por excelência), Bond
sendo ressuscitado após um enfarto por envenenamento,
Bond se dando conta da armadilha em que havia caído
depois de convalescer no hospital.
Nos anos 90, uma crise do herói acompanhou os estremecimentos
técnicos que seriam acentuados por Matrix. O
homem-máquina dos anos 80 – com suas carcaças de aço
em franca decadência (Stallone, Schwarzenegger) – foi
sumindo do cinema de ação até que chegou a vez, nos
anos 2000, de heróis menos corpulentos, menos adultos,
mais sentimentais, quiçá delicados (Identidade Bourne,
Homem-Aranha... nem o Hulk escapou disso).
O 007 interpretado por Daniel Craig traz toda essa crise
na espessura de seu tórax. Se nos primeiros minutos
de filme ele fica entregue ao cinema de ação em sua
expressão mais simples (perseguições e afrontamentos
físicos), ao chegar no cassino ele precisará provar,
e isso toma uma boa parte da intriga, sua desenvoltura
em um outro contorcionismo, dessa vez cerebral. As habilidades
físicas e as psicológicas do herói buscam se reconciliar,
enquanto uma carga emocional se faz cada vez mais dominante.
A pista está já na primeira grande seqüência de ação
do filme: em meio à perseguição ao fazedor de bombas
em Madagascar, temperada pelas aguardadas hipérboles
comuns na série 007, uma sucessão de planos feitos do
ponto de vista de Bond interfere na decupagem, que até
então tinha sido puramente mecânica. Entre uma e outra
gag de ação, o filme nos põe então em contato
com o raciocínio e com o estado mental de James Bond.
Para alcançar o fugitivo, que definitivamente era mais
rápido e mais dinâmico que ele nas corridas, nos saltos
e nas quedas, Bond lança mão da esperteza, e avista
o guindaste que o fará tomar um atalho. É assim que
sabemos do que se compõe o esquema narrativo de Cassino
Royale: alternância entre momentos de absoluta truculência
e de imersão psicológica.
As cenas de pôquer, cujos participantes parecem figuras
de videogame, tal é o nível de abstração e de tipificação
que o filme assume através deles, apenas confirmam o
que as cenas de violência antes já falavam, ou seja,
que o filme está ali para exigir muito de Bond, colocá-lo
à prova. Seu corpo é posto à prova (ferimentos acompanham
Bond o filme todo), seu cérebro idem. Nem seu coração
escapa, sendo desafiado duplamente (o veneno ingerido
e a decepção amorosa). Para quem estava acostumado ao
galante conquistador, o Bond monógamo e genuinamente
apaixonado de Cassino Royale deve ser uma aberração.
Ele tira férias de amor – melodrama dentro do filme,
a seqüência em Veneza é das coisas que faz desse novo
007 não apenas um bom filme, mas uma mostra de que a
série tem para onde se expandir e se reconstruir. Se
a escolha de Eva Green como a bondgirl mais delicada
de todas, para contrastar com o 007 mais musculoso de
todos, parecia fórmula fácil no começo da relação, o
jogo que se desenvolve entre os dois tem uma fineza
que um ou outro campo-contracampo consegue permitir
(o encontro deles no trem é muito feliz nesse sentido).
Essa entrega do personagem, que depois deságua em ingenuidade,
estimula uma passagem dos jogos teóricos e das engenharias
narrativas mais complexas a uma forma mais naïf
e mesmo arcaica do gênero. Existe aí uma dialética interessante,
prolongada por outros aspectos do filme. É, por exemplo,
ao arriscar a virilidade – a hiper-significativa cena
da tortura – que Bond “desperta” de vez para o amor:
fade out, ele acorda no hospital e começa o idílio
romântico, onde a principal cena de sexo é recatada
e, acima de tudo, desprovida de sensualidade (eles chegam
no quarto molhados de chuva, clichê mor, mas despencam
da cama de forma pastelão). O filme cria, também, um
desequilíbrio entre a potência tecnológica que cerca
e cerceia Bond (singularizada no micro-chip que lhe
introduzem no antebraço) e a maneira demasiadamente
simples com que ele responde às situações que enfrenta
– força física nas perseguições, intuição no pôquer.
007 jamais esteve tão exposto em sua humanidade; o filme
parece feito para enumerar os pontos de fragilidade
do herói e anunciar sua capacidade de recuperação. Qual
será o destino desse retorno?
Luiz Carlos Oliveira Jr.
|