Diante
de uma imagem, pode-se escolher aquilo que se quer ver.
Uma imagem não precisa ser entendida exclusivamente
como um universo já dado, mas sobretudo
como um espaço a ser recriado pelo seu
receptor. Travelling interno sobre a superfície
da imagem, o olhar filtra, colhe, retém, deseja,
desloca, adiciona e recompõe os elementos visuais
anteriormente dispostos pelo artista. Sempre que solicitado,
o espectador é um co-realizador.
Essa parece ser a perspectiva a partir da qual Agnès
Varda procurou trabalhar com seus curtas-metragens sobre
a fotografia, numa série de três filmes
à qual a cineasta deu o nome sugestivo de Cinevardafoto.
Ydessa, os Ursos e Etc., realizado em 2004, é
talvez o mais sutil da trilogia, que inclui ainda o
premiado Ulisses (Ulysse, 1982), e o ágil
Saudações, Cubanos! (Salut les
cubains, 1963).
Ulisses detém-se no mergulho em torno
de uma foto central e nos envolve em um movimento centrífugo.
Saudações, Cubanos! põe
em evidência não tanto as imagens, mas
sobretudo a montagem, já que se trata de um ensaio
de virtuosismo em table-top. Mas com Ydessa,
os Ursos e Etc. caímos numa chave de abordagem
bastante diversa, ao meu ver, mais complexa.
A começar pelo fato de que não estamos
circunscritos ao universo de uma imagem principal (caso
de Ulisses), mas de uma infinidade delas. Por
outro lado, as inúmeras fotos que desfilam em
Ydessa... são tratadas com uma sobriedade
e um distanciamento que não lembra em nada as
experiências rítmicas de Saudações,
Cubanos!. Ydessa... equilibra-se entre a
contemplação madura de Ulisses
e a inquietação juvenil de Saudações...,
para encontrar talvez um porto seguro, ao mesmo tempo
além e aquém do objeto fotográfico:
o próprio universo interior da artista e colecionadora
Ydessa Hendeles. Mas, ainda aqui, não estamos
no confortável território da objetividade:
o filme não é um "retrato" da
artista, muito menos um "portifólio"
refinado. Agnès Varda interessa-se pelo trabalho
de Ydessa justamente pelo que ambas têm em comum,
isto é, uma verdadeira atração
vertiginosa pela profusão das imagens e pelo
seu poder de evocação. Na gigantesca exposição
de fotos antigas em que aparecem ursinhos de pelúcia
(os chamados "teddy bears"), opera-se uma
síntese ambiciosa: é como se Varda e Ydessa
quisessem fotografar/expôr em um só gesto,
de um só golpe, todo o século XX.
Há outros pontos que diferenciam e tornam Ydessa...
um filme bastante particular em relação
aos outros dois curtas que integram a série Cinevardafoto.
A sensação paradoxal de que a fotografia,
afinal de contas, não ocupa um lugar central
nesse documentário repleto de imagens fotográficas
é apenas um deles. De fato, dos três filmes
da série, Ydessa... é aquele que
mais organicamente integra o objeto fotográfico
em seu conjunto. Trata-se de um filme sobre fotos, ou
sobre uma exposição de fotos?
Varda interessa-se tanto pelas cenas captadas pelas
fotografias antigas em que figuram anônimos e
ursinhos de pelúcia, quanto pelo próprio
espaço da exposição – que ultrapassa
a mera disposição de quadros na parede
– e pela reação dos visitantes. A própria
Ydessa Hendeles ganha especial relevo. Cercada dos ursos
que adquire em caríssimos leilões, a impactante
figura de Ydessa é tão necessária
ao entendimento do documentário quanto as próprias
fotos que expõe. Afinal, o centro de toda a discussão
é a imagem. Sendo assim, um rosto humano,
o espaço de uma exposição ou uma
foto familiar antiga recebem a mesma atenção
da realizadora.
Ao percorrermos a exposição de Ydessa
Hendeles, somos levados a mergulhar em uma reflexão
sobre o século passado, pautada por uma palavra-chave:
a monstruosidade. Ydessa... é, à
sua maneira, um filme expressionista sobre o horror.
Vestida inteiramente de negro, com o rosto anguloso
vincado por rugas e emoldurado por longos cabelos vermelhos,
Ydessa é logo no início do curta posta
ao lado de uma de suas obras de arte, uma espécie
de espectro feminino, coberto por um manto de uma alvura
contrastante e agressiva, isolada em uma sala. Negativo/positivo
num mesmo enquadramento, Agnès Varda evidencia
aí uma de suas primeiras imagens sintéticas,
ao mesmo tempo uma chave para entendermos a controvertida
personalidade de Ydessa.
Penetrando na exposição das incontáveis
fotos com os ursinhos de pelúcia, já o
fazemos sabendo que todos os objetos expostos (não
apenas as fotos, mas também alguns dos próprios
ursinhos que aparecem nas fotos) fazem parte do universo
fantasmagórico de Ydessa, ou melhor, são
eles mesmos uma só projeção fantasmagórica.
A memória é, assim, plasmada ao horror:
a avalanche de fotos cai sobre o espectador como testemunhas
de acusação de uma espécie de crime
coletivo, consubstanciado na guerra e, mais particularmente,
no nazismo.
As fotos com os ursinhos – cenas prosaicas de reuniões
familiares, bem como imagens perturbadoras de crianças
apontando armas para os ursos ou um "teddy bear"
vestido com uma faixa nazista – vão sendo aos
poucos apresentadas à medida em que Varda segue
o roteiro da exposição de Ydessa. Esse
roteiro culmina em uma sala quase vazia, onde vemos
a escultura em cera de um homem ajoelhado diante de
uma parede nua e branca. A câmera, reproduzindo
o percurso do espectador da exposição,
revela o rosto desse homem prostrado: é Hitler,
cuja expressão insondável carrega o sentido
maior do horror evocado pelas até então
aparentemente inofensivas fotos familiares. O encontro
com Hitler e a parede branca nos obriga a refazer o
trajeto da exposição e a re-significar
as fotos. Já não mais conseguimos encarar
o "teddy bear" senão como a perfeita
expressão da monstruosidade.
Não se deve, contudo, imaginar que Ydessa...
é um filme de tons carregados, irrespirável
e deprimente. Bem longe disso. O que torna esse curta
ainda mais fascinante é sua desconcertante leveza
(não confundir com leviandade) e seu humor irônico,
aliás característico de toda a obra de
Agnès Varda. Assim como as fotos antigas mostram
bem mais do que pessoas anônimas ao lado de ursinhos
de pelúcia, Varda procura dotar a viagem em torno
da exposição de Ydessa de muitos outros
sentidos.
Se num primeiro momento a presença dos ursinhos
nas fotos catalisa a nossa atenção, na
medida em que se torna um jogo divertido identificar
na foto onde está o ursinho, logo depois esse
jogo adquire um significado um pouco mais instigante
e que consiste em perceber como os ursinhos acabam por
revelar o que há de inquietante naquelas cenas
tão cotidianas. É como se os ursos captassem
e absorvessem o "não dito" da imagem,
aquilo que se esconde por trás do imediatamente
visível. É então que passamos a
dar mais importância aos olhares das pessoas que
estão na foto, à maneira como esses olhares
conduzem os nossos próprios olhos para as personagens
imobilizadas naqueles instantes e, claro, para os próprios
ursinhos. Passamos a examinar o modo como tais personagens
se posicionam diante da câmera e o olhar que eles
lançam para além da moldura do quadro.
A sucessão das fotos chega a provocar até
mesmo uma espécie de inversão do ato de
olhar, quando passa a ser mais importante tudo aquilo
que não está na foto. A imagem
torna-se a senha para um sentimento aflitivo, certa
angústia difícil de verbalizar. No fim,
acabamos por nos voltar novamente para os ursinhos.
Pode-se então arriscar uma definição
para tamanha angústia. O que nos horroriza é
a passividade. Produtos de uma verdadeira indústria
criada para tornar a vida e a morte suportáveis,
os ursinhos de pelúcia são as testemunhas
ideais de uma história que se constrói
a partir de silêncios. Na verdade, simbolizam
o seu lado mais monstruoso: olhos abertos que não
enxergam, braços em abraço inerte, sorriso
inalterável, ouvidos surdos. Os ursinhos estão
ali como símbolos de um medo coletivo, que se
conforta com sonhos empalhados.
A imagem do rosto de Hitler sobre-impressa aos rostos
dos espectadores da exposição que falam
à câmera sobre o trabalho de Ydessa sela
esse acordo entre a memória e o horror. Há
um pouco do rosto de Hitler no rosto de cada um de nós,
e se essa mancha é persistente o bastante para
não ser totalmente apagada, torna-se necessário
avivá-la, ao menos como denúncia.
Por um lado, os "teddy bear" são, digamos
assim, versões em miniatura dessas manchas. Por
outro, compartilham da memória afetiva de gerações
e gerações, a guardar e a sintetizar laços
familiares e "épocas de ouro". Evitando
dar aos ursinhos uma leitura excessivamente direcionada
ao nazismo, Varda amplia a discussão em torno
da memória e busca refletir sobre outro aspecto
igualmente perturbador, presente na monumental coleção
de fotos de Ydessa, isto é, de que maneira naquelas
imagens que evocam tão facilmente a idéia
de morte, sentimos, aqui e ali, a vida pulsando em toda
a sua intensidade.
Evidencia-se assim uma outra característica típica
da obra de Agnès Varda, que é o amor
destinado aos seus personagens. Varda ama em seus personagens
a imagem que eles produzem (e que deles ela consegue
extrair). No caso de Ydessa, os Ursos e Etc.
Varda só tem a louvar o gesto da artista/colecionadora.
Antes de inventariar ursinhos, Ydessa de certa forma
mantém vivos todos aqueles homens e mulheres
(a maior parte anônimos) através de suas
imagens fixadas num certo instante de uma determinada
época. A exposição concebida por
Ydessa parte da idéia da profusão e da
generosidade, da mesma forma como Varda faz em seu cinema
(profusão e generosidade marcam filmes como Cléo,
de 5 às 7 (Cléo de 5 à 7,
1961), Os Dois Lados da Felicidade (Le Bonheur,
1965) e Daguerreótipos (Daguerréotypes,
1975), para ficarmos em apenas três exemplos evidentes).
Por essa razão, Ydessa se torna, também
ela, uma personagem privilegiada de Agnès Varda.
Ydessa, os Ursos e Etc. mantém correspondência
com o conjunto da obra de Agnès Varda, uma obra
bastante pessoal que parece nos remeter o tempo inteiro
a algo anterior ao próprio cinema (uma espécie
de sentimento-daguerreótipo?). É
possível estabelecer ligações,
sempre arbitrárias, entre os longas e curtas
de Varda e a obra de alguns outros poucos cineastas
contemporâneos (Resnais, Godard, Bresson, Santiago
Álvarez). Para finalizar estas notas a propósito
de Ydessa... – já que falamos de monstros
– ocorre-me a comparação talvez inusitada
desse documentário com um filme inteiramente
diverso: Cidadão Kane (Citizen Kane,
1941).
Não se trata (mais uma vez) de uma relação
direta e objetiva com o filme de Orson Welles. As aproximações
são possíveis desde que não nos
detenhamos nos aspectos imediatos, exteriores das obras
de Welles/Varda. Kane e Ydessa são, cada um a
seu modo, bebês monstruosos. Através do
dinheiro, erguem suas próprias fortalezas. O
castelo de Xanadu e a mansão de Ydessa, ambos
nascidos do delírio expressionista, são
igualmente marcados pela agressiva desproporção,
pela ausência de uma lógica espacial, pela
monstruosidade do cenário revelador de uma psicologia
deformada. Mesmo do ponto de vista da mise-en-scène,
se quase nada aproxima de forma óbvia Cidadão
Kane de Ydessa, os Ursos e Etc., há
no primeiro o uso da profundidade de campo e no segundo
o passeio pelas imagens fotográficas, ambos a
solicitarem do espectador semelhantes posicionamentos
ativos diante do drama. E, por fim, os enigmas: o trenó
"Rosebud" em chamas e o "Teddy Bear"
com a faixa nazista são os símbolos que
nos levam a pensar em Kane e em Ydessa como filhos de
um reincidente circo de horrores.
Luís Alberto Rocha Melo
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