O
cinema de M. Night Shyamalan é um cinema sobre
a crença. Não sobre o que se crê,
mas sobre a simples necessidade de se crer. E até
então, em seu cinema, como funcionava o circuito
da crença? Ele funcionava em duplas, numa cumplicidade
entre diferentes que tornavam-se iguais pela partilha
de um segredo. Uma criança viva e um homem morto
em O Sexto Sentido, um pai e um filho em Corpo
Fechado, novamente pai e filho em Sinais,
um rapaz e uma moça em A Vila. Assim
posto, parecia que o cinema de MNS se desenvolvia a
partir de um circuito familiar da crença, como
uma transmissão que funcionasse em caráter
1:1, um segredo partilhado, mas de forma discreta. O
final de A Vila antevia uma possibilidade de
publicização da descoberta, mas isso ficava
por conta de nossas imaginações. Em A
Dama na Água, surge uma questão que
parece dar continuação ao fora-de-campo
criado pelo fim de A Vila: "E agora, o que
fazer com a comunidade?" Pois é propriamente
de uma comunidade que trata o filme de Shyamalan, e
mais especificamente, de como tomar uma comunidade em
que todos vivem sua vida isolada e indiferentes uns
em relação aos outros e fazer dela um
grupo coeso, que observa as coisas a partir de um mesmo
horizonte e colabora unido para enfrentar os desafios
que a ele se apresentam?
Uma fábula. Um conto de fadas. Um filme. Uma
história. A Dama na Água é
tudo isso, tanto como projeto como dentro da narrativa.
Pois o elemento agregador dessa comunidade de pessoas
evidentemente sem relação qualquer umas
com as outras a não ser o local que habitam
um mesmo condomínio chama-se Story, e
toma materialidade através de uma fada, um ser
de outro mundo, uma mulher deslumbrante de inocência
e fragilidade que precisa ser recolocada de volta em
seu mundo, não sem antes cumprir seu papel no
nosso mundo. E como é o mundo que vemos antes
de sua chegada? Um mundo desaquecido, de encontros protocolares
e comunicação idem, etnias e interesses
diferentes que se cruzam nos corredores do prédio
mas não se permitem um maior contato além
disso. Um mundo desencantado como o de Cleveland (Paul
Giamatti), nosso protagonista, que perdeu sua confiança
no mundo depois que perdeu sua família. Como
reencantar esse mundo, como reaquecê-lo? Com uma
história. Com um conto de fadas, como se aquece
as crianças contando uma história antes
de dormir. E o que Story tem a dizer, qual é
sua missão entre os humanos? Não apenas
servir de inspiração para um homem sábio
que está prestes a escrever algo importante para
o mundo, mas dizer uma verdade básica: "You're
all connected". Por mais que ninguém perceba,
todos estão ligados, e não de forma tão
misteriosa. Basta um pouco de curiosidade, de generosidade,
de imaginação, e todos são capazes
de construir uma história conjunta.
É como evolui a trama de A Dama na Água.
Evolui, inclusive, de forma ingênua pois
é necessário , com uma necessidade
de adesão da parte do espectador que é
incomum a não ser em filmes para crianças.
Como a universitária coreana adere tão
rapidamente ao discurso de Cleveland? Como os irmãos
indianos acreditam tão prontamente nas sandices
acerca de outro mundo que diz esse zelador esquisito
e atabalhoado que chega com uma sereia em seu apartamento?
Como todo o condomínio, de uma hora para outra,
aceita entrar no jogo de adivinhação estapafúrdio
iniciado por esse baixinho gago que procura do nada
um curandeiro, um guardião, um decifrador, um
grupo? A resposta é simples: pela infantil, pela
ingênua, pela simples necessidade de acreditar.
E em A Dama na Água quem não se
predispõe a acreditar vai ter o pior fim possível.
Vamos ao cinema para acreditar, não? Cinema é
um concurso de adivinhação, de tentar
passar o espectador pra trás com novidades gastas
e fórmulas novas que se esgotam em duas ou três
continuações? M. Night Shyamalan nos propõe
com A Dama na Água o anti-Jogos Mortais,
um antídoto contra esse cinema que propõe
ao espectador um enigma que se esgota na esperteza do
quem-engana-quem.
Tanto pior para quem achava que o cinema de MNS funcionava
nesse esquema do susto e das viradas fantásticas
de ponto-de-vista. O importante para ele sempre esteve
em outro lugar. Não na verossimilhança
de um monstro extra-terrestre, mas na possibilidade
de ameaça de extinção do mundo
que uma invasão provocaria. Não na mistificação
de um monstro, mas em sua perspectivação.
Não nos pressupostos retóricos de uma
ligação, mas no próprio elo de
união. Assim, pouco importa que as metáforas
sejam simples, que os objetivos sejam grandiloqüentes
mudar o mundo, acabar com as guerras, fazer as
pessoas voltarem a acreditar , pode tudo. Um casal
que se beija numa chuva torrencial pode ser o sinal
de uma regeneração, como diz Cleveland
ao crítico de cinema desencantado que vem morar
no condomínio e acaba sucumbindo vítima
da própria arrogância de sujeito espertinho.
Esse personagem pode parecer gratuito no filme, mas
é o contrário. Ele dá a chave de
decifração sobre como existir ou não
no mundo de Shyamalan: o pecado não é
decifrar, mas achar que está acima da decifração,
achar que detém o poder absoluto de julgar alguma
coisa de cima. Ora, decifrações
há, o tempo inteiro, juízos idem, clichês
também. O que importa é que eles sejam
usados com intensidade e sentimento, para reaquecer
um mundo. E para isso, vale voltar a ser criança,
babar e se contorcer infantilmente no sofá enquanto
se ouve uma história de outros mundos. Vale crer
em figuras encantadas de outros mundos, em leis de funcionamento
de outras dimensões.
Mas, para que a história valha a pena, ela tem
que ser contada com carinho e dedicação.
Com sutileza e sensibilidade. E, se for com genialidade,
melhor ainda. E nosso M. Night Shyamalan mais uma vez
faz um filme em que tudo comunica de forma impressionante,
recusando veementemente rodar um plano que seja uma
solução óbvia de mise en scène.
Mesmo quando o filme sugere empregar saídas mágicas
através de efeitos especiais o vôo
final de Story, a cura gradual das feridas de suas pernas
, Shyamalan arruma uma maneira imprevista de posicionar
sua câmera, de mostrar o que precisa ser visto.
Se há lugares-comuns na narrativa que o filme
monta e desmonta, no campo visual A Dama na Água
revela a mesma mestria de seus filmes anteriores. Aqui,
MNS conta com o fotógrafo Christopher Doyle para
compor rostos refletidos em azulejos, monstros translúcidos,
planos subaquáticos exuberantes, câmeras
subjetivas precisas, figuras fantasmagóricas
que aparecem na penumbra, que mais se pressentem do
que se observam. Mais uma vez, aquilo que não
vemos é tão importante quanto o que vemos,
e a câmera se mantém discreta, longe da
onisciência, nunca exterior às percepções
dos personagens. Nunca de cima, sempre ao lado.
"You're all connected", diz a fada-sereia
interpretada por Bryce Dallas Howard. E A Dama na
Água é uma fábula de mobilização,
de união de pessoas heterogêneas em nome
de um ideal comum. Fábula política, sem
dúvida, porque toca numa das características
mais fortes do capitalismo à americana, o poder
do individualismo. Em A Dama na Água,
um indivíduo, tomado sozinho, mesmo com todo
poder de ação e decisão está
fadado a fracassar em seu intento. Sozinhos, podemos
assistir passivamente às notícias de guerra
na televisão ou às reportagens de violência
ao redor do mundo. Unidos, podemos utilizar as habilidades
conjuntas de vários companheiros para fazer nossa
princesa encantada voltar a seu mundo sã e salva.
Mas essa união não é pomposa, bélica,
invasiva, autoritária. Ao contrário, é
como um círculo em volta de uma fogueira, enquanto
se conta uma história que nos aquece a alma enquanto
o fogo aquele o corpo. O contador, claro, é M.
Night Shyamalan.
Ruy Gardnier
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