Agnès
Varda faz filmes porque precisa, porque é mais
que um ofício ou uma simples prática artística:
trata-se de uma urgência pulsante. Uma urgência
que gera energia para que até hoje, mesmo senhora
de quase oitenta anos, ela continue a percorrer os trilhos
das imagens, buscando novos meios, investigando e experimentando
caminhos diversos, como filmes feitos inteiros com fotos
still ou mesmo instalações de vídeo-arte.
Talvez, portanto, fosse pouco tratá-la como cineasta
(ou mesmo artista) e mais justo tomá-la como
uma espécie de cúmulo do autor, como guia
de olhares e sensações, poetisa nem nas
folhas de papel nem em películas nem nas telas
dos cinemas, mas nos entretecidos da vida.
Tecendo suas narrativas, sensações e olhares,
Varda realiza filmes que (como pode ser claramente percebido
e já foi dito e reiterado) transbordam generosidade.
Esta, por ser abundante no fazer cinema da cineasta,
poderia facilmente gerar filmes brandos e macios, coisa
que não acontece. Diante de sua obra, presenciamos,
sim, uma enorme gentileza, mas que está presente
em comunhão com uma errância profunda.
Errância que sentimos na personagem peculiar que
é Ydessa (Ydessa, os Ursos e Etc.), no
cotidiano da mãe solteira de Documentira,
nos infortúnios andarilhos da personagem nômade
de Sem Teto, Nem Lei, nas margens de Los Angeles,
arquitetadas em seus muros e imigrantes de Muros
e Murmúrios, nos gritos enérgicos
dos militantes em Os Panteras Negras, no percurso
instável das protagonistas de Uma Canta, a
Outra Não. É claro que me refiro a
uma instabilidade que já está nos temas,
nos personagens, nas trajetórias, nas narrativas,
mas, antes de tudo, está na própria escritura
de Varda.
Muitos de seus filmes existem dentro dessas "imperfeições",
às vezes dotados de uma volubilidade, noutras
permeados pela errância, ou por ambas. Isto se
flagra nas sutilezas extremamente subjetivas, em seus
exageros decorrentes muitas vezes de repetições
e reiterações formais, nos labirintos
que a cineasta cria (ou pelos quais se deixa levar),
nos momentos de concentração excessiva
em determinado elemento ou nos devaneios de sua mente
expostos em narrações em voz over.
Trata-se também de exposição: alma
exposta e peito aberto se mostram presentes na obra
da cineasta e o peito aberto nem sempre é doce
(como é doce em Elsa, a Rosa); corre-se
riscos. Riscos que ela enfrenta e abraça, podendo
também mostrar-se lúcida, enérgica,
consternada ou mesmo ingênua.
Por outro lado, existem filmes aparentemente mais estáveis
na obra de Varda (que seriam, principalmente, Cléo
de 5 às 7, de 1961, e As Duas Faces da
Felicidade/Le Bonheur de 1965). São também
dos mais virtuosos e de esmero estilístico. Partindo
desse virtuosismo, Cléo... parece não
ir muito além e acaba apenas se apoiando na poesia
de belos planos nouvellevaguianos, quase se esvaziando.
Diferente é a importância dada à
aparência em As Duas Faces da Felicidade,
filme no qual a imagem fala muito sobre si mesma,
imagem esta carregada e minuciosamente construída.
Apesar disso, ela é criada de forma a revelar-se
distante de qualquer exatidão, assim como a exatidão
está longe de qualquer filme da obra de Varda.
Em As Duas Faces da Felicidade, características
conflitantes se cruzam, gerando um filme que se utiliza
de sua própria plasticidade para produzir uma
tensão interna latente e, conseqüentemente,
para o espectador, um não saber portar-se diante
do filme. Tamanha é a harmonia na composição
gráfica dos espaços, nas cores, nas relações,
nos rostos, nos gestos, que se torna impossível
conter o transtorno. A complexidade, aí, se dá
na corporificação de uma harmonia que
extrapola, que, por ser aguda, se rompe. A harmonia,
que deveria acalentar, é colocada em excesso,
criando uma contradição. Afinal, excesso
é sempre mais que o necessário, portanto
nunca harmônico.
Essa chave do excesso trabalhada em As Duas Faces
da Felicidade remete a uma noção importante
do melodrama como gênero cinematográfico,
principalmente se observarmos o uso das cores saturadas
no filme de Varda, realizado em Eastmancolor (processo
semelhante ao Technicolor, sistema de cores do
qual Hollywood usou e abusou em seus melodramas e musicais,
principalmente entre meados dos anos 30 e meados dos
anos 50). Também, se nos detemos no curioso título
da tradução brasileira, "As Duas
Faces da Felicidade", encontramos uma revelação
de um momento do filme no qual o próprio protagonista
declara, ao falar sobre as duas mulheres de sua vida
(esposa e amante), polarizando-as, que suas qualidades
distintas se complementam e completam sua felicidade.
Essa noção dicotômica é também
presente na idéia de uma imaginação
melodramática. No caso do gênero em suas
representações canônicas, essa polaridade
é rigorosa e tende a representar bem e mal, valores
exaltados e degradados. No caso do filme em questão,
essa polaridade é colocada ao mesmo tempo em
que é questionada, subvertida. Primeiro, porque
não existe valoração nessa dicotomia.
Depois, porque estes dois opostos, a princípio,
não se anulam, mas, ao coexistirem, se complementam
e completam a existência de um outro ser.
Varda se apropria de elementos de uma determinada forma
cinematográfica que está fora do seu contexto
(França, Nouvelle Vague, anos 60) e ainda
assim mantém de maneira evidente uma forma muito
própria do Cinema Moderno, que é percebida
principalmente através de alguns enquadramentos
e movimentos de câmera e pela montagem. Mantendo
essa forma e uma autoconsciência, não seria
difícil que a cineasta adotasse uma visão
distanciada e analítica dos elementos dos quais
se apropria, manifestando ironia e um quê de amargura
sobre a história que conta. É aí
que se casam a gentileza e a errância anteriormente
citadas, impedindo que Varda manifeste tons de deboche,
permitindo que ela abrace aqueles personagens e aquele
mundo, mesmo cutucando sua suposta harmonia em momentos
angustiados (como o afogamento da esposa) ou dúbios
(o bem-estar familiar estranho, de ar poente, em outono
e cores sóbrias).
É preciso, ainda, defender um filme que talvez
seja um dos mais distantes de As Duas Faces da Felicidade
no que se refere à sua força formal bem
amarrada e a seu esmero estilístico; um filme
que, talvez em decorrência do tal peito aberto
em demasia, da alma exposta demais, é bem mais
frouxo e cheio de "defeitos". Ainda assim,
é possível (e necessário) fazer-lhe
um elogio, inclusive a partir de comparações
(aproximando ou distanciando) com o filme anteriormente
comentado. Assim, retoma-se a questão dos opostos
(ou pólos distintos que completam uma outra existência),
agora em função de um filme que já
em seu título estabelece um ato e sua negação:
Uma Canta, a Outra Não (L’Une chante,
l’autre pas, 1977). Trata-se de duas mulheres de
personalidades diversas que se tornam amigas e traçam
uma longa trajetória. Nesse caso, a existência
única que se completa a partir das duas mulheres
tão diferentes é o próprio filme,
apesar das óbvias diferenças entre as
duas personagens acabarem tendo relevância menos
formal que narrativa. O filme, curiosamente, apesar
de conter uma espécie de militância feminista
e de esquerda, acaba também contendo uma característica
melodramática que desta vez se manifesta, também,
principalmente em aspectos narrativos e de construção
de trajetórias dos personagens. Filme de longas
duas horas, que se detém basicamente nas personalidades
das protagonistas e nos rumos que suas vidas tomam,
assemelhando-se, nesses aspectos, a certos melodramas
que se concentram no trajeto de uma personagem feminina
e em seu percurso de venturas e desventuras, durante
um longo período de sua vida (ou mesmo a vida
inteira). Varda escreve essas trajetórias partindo
dessa estrutura, mas a revolve. Encena como alguém
que entretece algo, percorrendo caminhos que em muitos
momentos se perdem, como se realmente escrevesse uma
história cantarolando, entre devaneios.
Certamente um filme de entrega e, apesar de errante,
doce e passional. É um filme também de
permitir-se ser leve, natural e ingênua. Ingênua,
mas apaixonada, quando, por exemplo, cede a uma das
personagens a seguinte frase: "Somos de esquerda.
Esquerda é o lado do coração".
E é consciente dos meandros da vida, mas cheia
de boas expectativas que, ao fim do trajeto, Agnès
Varda dedica o filme a Rosalie, sua filha e herdeira
de seu lado esquerdo, de seu coração.
Assim como o é sua obra; sua obra esquerda, gauche,
coração...
Luísa Marques
|