Je
préfère idéaliser le réel,
sinon pourquoi aller au cinéma? Jacques
Demy
Agnès Varda se autodefine como "catadora
de imagens" em Os Catadores e Eu quando,
munida de câmera digital, sai à procura
de personagens, pitorescos ou não, que, para
sobreviverem, reaproveitam alimentos ou objetos descartados
pela sociedade de consumo. É apenas em Dois
Anos Depois, no entanto, que a diretora observa
a semelhança entre a filmagem de seu próprio
envelhecimento, na obra anterior, e os planos que esquadrinham
apaixonadamente o corpo moribundo de Jacques Demy em
Jacquot de Nantes, no qual ela homenageia o marido,
ao reconstituir-lhe a infância e a juventude.
Além de se dedicar ao restauro da filmografia
completa de Demy – Os Guarda-Chuvas do Amor,
Duas Garotas Românticas e Pele de Asno
já foram recuperados –, Agnès Varda
realizou As "Garotas Românticas" Fizeram 25
Anos e O Universo de Jacques Demy, em que
seleciona, quase didaticamente, as seqüências
mais representativas registradas pelo cinema "en
chanté" do companheiro de trinta e três
anos: não somente catar imagens, mas preservar
memórias – as de Demy e, através delas,
inclusive as suas –, a fim de escapar da morte.
Jacques Demy e Agnès Varda se conheceram no Festival
Internacional de Curta-Metragem de Tours, em 1958. Ele
apresentou Le Bel Indifférent; ela, Do
Lado da Riviera. Casaram-se em 1962, tiveram dois
filhos – Rosalie e Mathieu – e permaneceram juntos até
a morte do diretor, em 1990. Compartilhavam, como lembra
a cineasta, a mesma paixão pelo cinema norte-americano,
pelas comédias musicais, pelos planos-seqüência
com travellings elegantes e elaborados. Da mesma
forma, ambos foram autodidatas: Varda, sem qualquer
formação técnica ou teórica,
realizou La Pointe Courte, em 1956, enquanto
Demy, ainda adolescente, filmou animações
no sótão da garagem do pai, em Nantes,
com as câmeras 9mm usadas que comprara na Passagem
Pommeraye – onde, mais tarde, descobriria o cineclube
em que assistiu a Robert Bresson, Max Ophüls, Luchino
Visconti, Marcel Carné e Vincente Minnelli, que
lhe influenciaram a carreira (e onde voltaria para filmar
Lola e Os Guarda-Chuvas do Amor – o cenário
pelo qual seu alter-ego, Roland Cassard, sonha as mais
belas histórias de amor e sofre as decepções
impostas pela realidade, sempre em descompasso com a
fantasia idealizada). Porém, enquanto Agnès
Varda foi bem aceita pela nouvelle vague, sobretudo
pela esquerda – Chris Marker e Alain Resnais –, e vista
como precursora do movimento, Jacques Demy, se obteve
reconhecimento com Lola e A Baía dos
Anjos, começou a ser atacado, a partir de
Os Guarda-Chuvas do Amor, por aqueles (Godard
entre eles) que o consideravam frívolo, ideologicamente
vazio, subserviente à fantasia e ao cinema de
gênero americano. Amargando fracassos ao longo
dos anos 70 e dificuldades de financiamento – que o
levaram a aceitar projetos de encomenda, como Lady
Oscar –, Jacques Demy retomou o sucesso com Une
chambre en ville, sobre o amor proibido entre portuário
grevista e burguesa casada em meio aos distúrbios
que convulsionaram Nantes na década de 50 – mistura
de luta de classes com tragédia operística,
eleito pela Cahiers du Cinéma o melhor
filme do ano.
A figura decisiva por trás do ressurgimento de
Jacques Demy, contudo, é Agnès Varda,
que tem se dedicado a recuperar os negativos e a relançar
comercialmente, nos cinemas e em DVD, todos os filmes
do marido. Trata-se da face mais explícita de
intensa relação de trabalho que, embora
presente, continuava discreta, longe dos holofotes.
Demy e Varda não dividiam membros de equipe (fotógrafos,
diretores de arte, assistentes, eletricistas, figurinistas,
músicos, eram completamente diferentes) e, durante
as filmagens, visitavam sem estardalhaços o set
um do outro, mas propunham temas entre si (a gravidez
e o aborto, em O Maior Acontecimento Desde a Chegada
do Homem à Lua, de Demy, e Uma Canta e
a Outra Não, de Varda), preparavam roteiros
juntos e participavam ativamente da pós-produção
das obras do cônjuge (já que possuíam
sala de montagem em casa). Agnès Varda, como
demonstra em Jacquot de Nantes – quando registra
as cenas vistas por Jacques a cores, e as demais em
preto e branco –, acredita no olhar mágico e
repleto de doçura do companheiro, e o propaga
para a legião de fãs (e me incluo entre
os apaixonados incondicionais por Jacques Demy) que
derrubaram os críticos ranzinzas e mal-amados
para colocar o cineasta no panteão dos gênios
da sétima arte. Cinebiografia que extrai sua
força do classicismo da reconstituição
de época, Jacquot de Nantes também
utiliza fragmentos de filmes de Demy, conectando-os
a fatos da infância do diretor, como, por exemplo,
o pai mecânico e a mãe cabeleireira, a
frustração amorosa com a vizinha, os anos
de guerra e a estadia com o tamanqueiro no campo, as
freqüentes idas ao cinema, o carnaval, os passeios
pela Passagem Pommeraye, as brigas com a família
para abandonar a escola técnica e cursar cinema
em Paris. Jacquot de Nantes, As Garotas Românticas
Fazem 25 Anos e O Universo de Jacques Demy,
nos quais a diretora garimpa imagens já filmadas
por Demy, reaproveitando-as para compor as suas próprias,
faz de Varda não apenas "catadora",
como também, e principalmente (conforme indica
o projeto mais amplo de restauração da
filmografia completa do diretor), "mantenedora"
ou "preservadora" da memória afetiva
que os filmes de Demy despertam nos espectadores. Não
por acaso, O Universo de Jacques Demy se estrutura
sobre três "órfãs", três
fãs, que lêem carta póstuma, no
cemitério: o mesmo recurso epistolar é
usado em Dois Anos Depois, quando Varda, sensibilizada
pela recepção do público a Os
Catadores e Eu, decide investigar remetentes das
cartas que recebeu. Fascinante, igualmente, é
o carinho com que a diretora guarda os presentes ofertados,
sejam desenhos, brinquedos ou batatas em forma de coração.
Parafraseando o mestre do jogo em La Ronde, de
Max Ophüls, os filmes de Jacques Demy expressam
"o amor pela arte do amor". O cineasta investiga
o relacionamento amoroso, baseando-se no conflito entre
o amor sonhado, idealizado, romântico, de príncipes
encantados e de princesas virginais que seus personagens
tanto anseiam, e o amor real, possível, com encontros
e desencontros, amarguras e incertezas. Como Carné
e Prévert – aos quais não se cansa de
homenagear pela seqüência final de O Boulevard
do Crime, quando Baptiste é impedido pela
multidão que comemora carnaval de alcançar
sua amada Garance, que lhe dá adeus (o contraste
da tristeza e da melancolia dos amantes com o ambiente
festivo que os envolve) –, Demy, contudo, crê
no conto-de-fada, solidariza-se com os que voltam os
olhos perdidos para a lua, para as estrelas, para o
ideal feminino ou masculino, embora saiba dos obstáculos
que impedem a concretização do amor: as
lembranças do passado em Lola, o vício
do jogo em A Baía dos Anjos, a guerra
da Argélia em Os Guarda-Chuvas do Amor,
o militarismo em Duas Garotas Românticas,
o incesto em Pele de Asno e em Três
Lugares para o 26, a luta de classes em Une chambre
en ville. Da oposição que estrutura
seu cinema "en chanté" (trocadilho
com cantar e encantar), vêm as influências
díspares e contraditórias de Max Ophüls
e de Robert Bresson, que o próprio Demy reconhece
em O Universo de Jacques Demy – Bresson, a gravidade;
Ophüls, a leveza. Do artificialismo, da musicalidade
e do melodrama ophülsiano – nada estranho conjugá-los
aos musicais em technicolor de Minnelli e, como
em Os Guarda-Chuvas do Amor, a Douglas Sirk (a
presença de Tudo o Que o Céu Permite,
na neve, nas escadarias) –, Demy herda a idéia
dramática e narrativa do carrossel, da valsa,
da sociedade de aparências, lúdica, programada,
que vive para satisfazer sua própria necessidade
de diversão, que gira sem sair do lugar – tal
qual Madame De... em Desejos Proibidos, confinada
entre as luxuosas paredes espelhadas que representam
o único mundo existente, que mesmo o amante não
pode quebrar ou arranhar, que se subjuga ao percurso
circular e previsível dos brincos. O carrossel
de La Ronde se metamorfoseia nas roletas do cassino
em A Baía dos Anjos (em que Jackie reza
a "oração do jogador": jogar
não para vencer, mas pelo simples prazer do jogo),
ou na inacreditavelmente bem coordenada série
de "acasos" que ocorrem em Duas Garotas Românticas,
nos quais os casais, aos pares, espelham-se uns nos
outros, embora somente se encontrem ao término
do filme (Maxence e Delphine, o principal, apenas depois
do fim!). Já do cinematógrafo bressoniano,
Demy aproveita a noção de encontro: o
cineasta enquanto mediador, pois não extrai a
verdade do real, mas antes permite que a verdade, através
do filme, surja espontaneamente do real – quebrando,
em conseqüência, o falso cristal em que os
personagens se encontravam aprisionados (momentos de
beleza, de candura, de sinceridade, também existem,
no entanto, em Max Ophüls, quando a rede de jogos
sociais e hierárquicos, por segundos que sejam,
desmorona: o beijo do conde entre os olhos da prostituta
em La Ronde, por exemplo).
O cinema de Jacques Demy é pura magia, apaixonado
e apaixonante. Agnès Varda, ao perpetuar a memória
do marido, restaurando-lhe os filmes, dedicando-lhe
Jacquot de Nantes, As "Garotas Românticas"
Fizeram 25 Anos e O Universo de Jacques Demy,
garante com que ele permaneça vivo, já
que lembrado e amado por todos nós. Como a batata
em forma de coração de Os Catadores
e Eu que, em Dois Anos Depois, cria raízes
e germina.
Paulo Ricardo de Almeida
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