Acompanhamos
nos últimos anos um certo boom dos filmes
baseados em histórias em quadrinhos em Hollywood,
sendo a maior parte deles originadas de histórias
de super-heróis. Inúmeras adaptações
que ganharam importância graças ao "medidor
de orçamento", que mede o tamanho do blockbuster
pela quantidade de dinheiro gasto nele, e pelo sucesso
comercial e crítico de alguns filmes-chave, sobre
os quais um olhar direcionado pode tirar algumas interessantes
conclusões. O motivo do aumento no número
de produções desse que tem sido o mais
prolífico gênero do cinema americano nos
últimos anos pode ser atrelado ao desenvolvimento
de uma tecnologia digital capaz de tornar "real"
tudo que as HQ’s propunham de mais fantástico,
e que, no terreno delas, deveria acontecer na imaginação
do leitor. Embora no cinema, o imaginário dos
gibis possa ganhar um contorno concreto, é difícil
conceber que na tela o mundo dos super-heróis
perca o seu viés fantástico por natureza,
e espera-se dele o máximo que a ficção
e que a "irrealidade" podem oferecer. No filme
Corpo Fechado (Unbreakable), no qual M.
Night Shyamalan não adapta, mas tematiza o mundo
dos quadrinhos, podemos entender o personagem Elijah
Price, interpretado por Samuel L. Jackson, como alguém
que deseja ser um quadrinista da realidade, com um poder
de transformar aquele mundo concreto – tedioso e, principalmente,
sem sentido de acordo com as regras da ficção
que ele conhece tão bem – em fantasia pura; realizar
um salto das folhas para o lugar em que ele vive.
Como seu personagem, Shyamalan também procura
elevar o seu cinema a um grau acentuado de ficção
e, para isso, busca entender os códigos que regem
o "contar de histórias" presentes nas
narrativas dos filmes, para que, uma vez que os tenha
dominado, ele possa fazer essa ponte perfeita entre
um mundo imaginário e a sua obra. Isso porque
Shyamalan é uma criança e, como toda criança,
deseja aspirar fantasia de uma forma infantil, e isso
está claro no seu alter-ego deturpado que habita
o frágil corpo de Elijah Price. Nos inúmeros
planos que esse se encontra isolado no quadro, solitário
e com rosto endurecido, ele demonstra a personalidade
de um homem tomado de assalto pela realidade anti-quadrinesca
do mundo. O processo que cria para achar um super-herói
no meio de multidões é cruel, entretanto,
se mostra a única forma de justificar sua própria
existência. É imprescindível na
sua cabeça que o mundo seja uma grande fantasia:
para a fragilidade dele é necessário que
exista um homem indestrutível, concedendo uma
outra razão para sua condição efêmera
de vida seguindo os preceitos de equilíbrio entre
heróis e vilões das HQ’s. Achando esse
homem, David Dunn (Bruce Willis), ele pode descansar
por ter encontrado um arquiinimigo, alguém a
quem combater e para quem a sua própria existência
seja necessária.
Mesmo que esse não seja um filme de super-heróis
propriamente dito, Shyamalan se mostra devoto ao mundo
da ficção fantástica, típica
do gênero, só que abordando esse universo
de uma forma quase oposta a dos outros filmes. O diretor
não permite que seu filme transpire claramente
gotas de realidade – neles não existem metáforas
óbvias, simbolismos ou referências que
funcionem como um comentário escondido à
nossa realidade política, social ou cultural.
Em sua ficção, o diretor tem como alvo
de questionamentos a própria ficção,
se perguntando o que deve mudar no espaço diegético
para que ele se assemelhe a um conto de fadas. Elijah
Price luta para tornar isso possível, assistindo
ao nascer do diferencial que torna David Dunn super,
com a emoção e expectativa de uma criança
que abre um livro pela primeira vez: a história
está prestes a começar, tudo o que é
necessário para que ela aconteça está
pronto (a existência de um herói, a recém
adquirida consciência desse sobre o seu dever
e a identificação de um vilão para
combater, tudo parte de um plano arquitetado por ele
mesmo), só restando aproveitar a fantasia.
No entanto, são poucos os filmes que, como Corpo
Fechado, se preocupam em pensar a própria
fantasia que foi a base para a sua existência.
O que se vê na maioria das vezes são ficções
feitas sob medida para serem alegorias dos problemas
da humanidade. Homem-Aranha, os três X-Men,
V de Vingança e Batman Begins são
exemplos de filmes que, quer por imposição
dos críticos, quer por direcionamento dos diretores,
ganharam conotações de análise
da situação do mundo. Pode se argumentar
que boa parte dos quadrinhos originais já foram
concebidos e trabalhados sob o prisma de um comentário
em relação aos problemas da humanidade.
Esse seria o caso de V de Vingança ou
mesmo da franquia X-Men; mas estes são
bem diferentes do Super-Homem, ícone midiático
de uma representação nula da realidade,
o herói chapa-branca por excelência, transformado
no último filme da série, de Brian Singer,
em um messias enviado para guiar a humanidade. Em menor
grau, também foi o caso do Homem-Aranha,
personagem cujas histórias se concentravam nos
problemas pessoais do herói e que, quando transposto
para a tela, foi visto por muitos como uma metáfora
do Governo Bush.
No entanto, além do filme de Shyamalan, de 2000
(mais ou menos nos início da enxurrada de adaptações),
outro bem no meio dessa safra desperta um interesse
particular pela forma que esse concebeu a adaptação.
No início da década de 90, Frank Miller
se inspirou no caos de violência que tomava conta
das ruas escuras de NY para criar uma graphic novel
chamada Sin City. A arte dos quadrinhos em preto
e branco criava uma atmosfera noir através
da qual uma cidade habitada unicamente por criminosos
vivia uma lei da selva, sustentada por políticos
corruptos que se aproveitavam do crime para enriquecer.
Os quadrinhos de Miller em questão, apesar de
conterem personagens bizarros, eram, sim, uma visão
particular sua sobre uma determinada realidade. No entanto,
quando o diretor Robert Rodriguez fez a sua adaptação
para o cinema, ao invés de seguir a proposta
do original, buscando uma imagem que lembrasse o espaço
no qual Miller se inspirou, optou por uma estética
alinhada com os quadrinhos, mas que no cinema representa
uma imagem típica da fantasia, apagando os traços
de realidade contidos no original. Ao se assistir Sin
City, fica claro que Rodriguez tomou aquela cidade
como objeto de ficção, pois seu filme
não apresenta uma preocupação com
questões políticas ou sociais de Nova
Iorque ou de qualquer cidade semelhante. Além
de trabalhar o espaço físico daquela cidade
que parece ter influência definitiva sobre os
seus habitantes, o diretor se concentra no aspecto sentimental
dos seus personagens, nos seus amores e aventuras, nos
levando para dentro da mente de cada um dos principais
de cada história a cada vez que assume a voz
deles como narração em off.
A parte estranha de toda essa exposição
é o fato de que Sin City constitui uma
exceção em um grupo crescente de filmes
adaptados dos quadrinhos. A pergunta óbvia que
nos vem é: se o cinema é um dos meios
no qual melhor se pode criar mundos fantásticos,
por que os filmes originados de outro território
que transborda imaginação se apegam tanto
à idéia de alegoria sobre a realidade?
Onde estão os filmes de super-herói que
são apenas de super-heróis, sem possibilidades
de conotações políticas? O problema
parece estar no fato de que o cinema americano parece
não conseguir produzir um filme apolítico
desde o 11 de setembro. O Homem-Aranha foi o
primeiro fruto desse novo cinema político de
Hollywood, pois bastou ele ser filmado em Nova Iorque
no período que coincidiu com o atentado para
ele se transformar, aos olhos do público, em
um filme sobre o povo americano se voltando contra o
terror de Osama Bin Laden. A partir dele se instaurou
uma seriedade nos filmes desse gênero, como se,
após um baque tão grande quanto a queda
das torres gêmeas, os realizadores não
se permitissem fazer um filme que não dissesse
nada sobre a sua sociedade, ou melhor, nem os realizadores
nem o público, pois os filmes que se pretendem
apenas entretenimento (Quarteto Fantástico,
Mulher-Gato, Demolidor, Electra
e outros) foram desconsiderados pelos espectadores e
pela crítica. É preciso afirmar, entretanto,
que boa parte das conotações políticas
que um filme ganha são impostas pelo público
em geral que procura interpretações desse
tipo. Mas, quando o próprio diretor tem a intenção
de criar uma alegoria da realidade, o que exatamente
ele diz?
No caso de um filme como V de Vingança
e os dois primeiros da série X-Men,
o discurso construído se mostra bastante interessante
e coerente ao falar sobre as formas como uma sociedade
lida com as diferenças entre seus membros, lembrando-nos
dos perigos vindos de qualquer proposta de homogeneização.
Tipos de discurso bem diferentes de Batman Begins,
Superman Returns e X-Men 3, que por muitas
vezes parecem se perder na obrigação de
trazer questões sérias para seus filmes
e acabam por não abordar nenhuma. Podemos dizer,
portanto, que o cinema americano criou um paradoxo um
pouco inesperado: o que há de mais fantástico
entre seus filmes de fantasia recentemente – as adaptações
de HQ – agora falam da realidade. Enquanto o trauma
do 11 de setembro não passar, teremos adultos
e crianças dependendo de um Shyamalan ou de um
Robert Rodriguez para não ficarem órfãos
que só se preocupam sobre o universo imaginário
que eles habitam.
Bernardo Barcellos
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