Agnès
Varda é uma cineasta carinhosa. Seus filmes não
têm heróis, nem vilões. Suas histórias
e personagens não são maniqueístas,
mesmo quando comparadas com a vida real.
Documentários que não buscam verdades.
Ficções que retratam a realidade, seu
tempo e sua inscrição na história.
Subjetividade toda.
Mas tamanha gentileza é contrastada (ou complementada)
por uma outra face: a da subversão. Diretora-mulher
em tempos que o cinema era ainda mais restrito aos homens,
começou a fazer seus filmes em pleno despertar
da nouvelle vague – movimento que posteriormente
integrou – mas ao contrário da geração
Cahiers, de cineastas-cinéfilos, Varda
não tinha quase nenhuma prática de assistir
filmes. Começou sua carreira como fotógrafa
do TNP – Théatre National Populaire, mas
desde então, fugia aos hábitos tradicionais.
Deveria apenas retratar os atores em cena, mas não
se sentia apta o bastante para o fazer desta forma.
Assim, reencenava a peça, removendo os atores
de seus locais originais, reacomodando-os em outro espaço.
Acreditava que assim exercia maior domínio sobre
seu objeto. Daí, de um trabalho de fotógrafa
que se restringiria a enquadramentos fixos de um único
ponto, Varda acrescenta a mise-en-scène.
Trabalhava seus atores distribuindo-os no palco e posicionava
sua câmera no melhor local para captura de imagem.
Não é preciso falar que o cinema estava
a um passo.
Essa subversão que acompanhava seu trabalho como
fotógrafa perdurou também no cinema. Subversão
da imagem e dos conceitos. Varda jogou nova luz na concepção
cinematográfica, ideológica e esteticamente.
Ao contrário do comum na época, estréia
no cinema com um longa-metragem, La Pointe courte,
filme que mistura duas histórias que se cruzam
e acontecem no mesmo espaço, mas mantêm
autonomia e desenvoltura própria. Varda cria
duas histórias paralelas - dos pescadores e do
casal que visita a vila (documentário e ficção?)
– que, concomitantemente, funcionam quase sem interferências,
apenas como exposição, uma refletindo
a outra. No filme, há um virtuosismo excessivo
da cineasta que tem pela primeira vez o movimento à
sua disposição. Varda aproveitará
a novidade em todas suas possibilidades: tanto o movimento
de câmera – que percorre longos travellings
– como o movimento interno do plano – com os deslocamentos
dos atores que constantemente percorrem uma ponta a
outra do quadro.
Seria sua primeira ficção e sua entrada
no cinema. Inesperadamente, o passo seguinte foram curtas-metragens
documentários. Num quase reinício de carreira,
uma vez que os primeiros filmes que seguiram La Pointe
courte não dialogavam com este, Varda trabalha
novas possibilidades do cinema, inclusive a de ganhar
dinheiro com ele. Nasce então Oh, Estações!
Oh, Castelos!, seu primeiro curta-metragem e seu
primeiro filme de encomenda. Neste filme, já
é possível notar indícios de como
cada objeto que se coloca na frente das lentes da câmera
de Varda passa por um processo de ressignificação,
e pelo seu filtro subjetivo. Aqueles castelos que apenas
deveriam ser mostrados e contemplados, perdem seu valor
primeiro. Varda quebra uma suposta barreira que os imponentes
castelos abrigam. Os traz para junto de si, olha com
particularidade para cada um que se coloca a sua frente,
e os escolhe com arbitrariedade. É o primeiro
momento em que vemos a apropriação do
objeto por Varda, prática que se tornará
comum em sua carreira e ferramenta subversiva de imagem
e de seu conteúdo.
Mas a trajetória de Varda jamais é uma
linha reta e contínua, e ainda nesta primeira
fase, com Do Lado da Riviera, a cineasta parece
fazer um caminho inverso de Oh, Estações!
Oh Castelos! Se neste primeiro filme ela partia
da objetividade do retrato de encomenda para então
encontrar um universo que a seduzia e encantava, no
filme posterior ela parte de uma pergunta ou de uma
curiosidade particular sobre o comportamento das pessoas
que freqüentam a Côte d´Azur no verão
francês. A resposta, curiosamente, é a
compreensão daquela vida, com práticas
e costumes que Varda talvez não concorde ou defenda,
mas retrata. Há momentos em que os turistas são
motivos de sátira, com seus bronzeados na praia,
ou com seus modismos sempre repetitivos. Mas Varda os
isenta da futilidade que a princípio se acredita,
retirando da Côte d´Azur a aura que nela se coloca.
Aponta que o paraíso não esta ali, mas
sim atrás de muros e portões ou numa ilha
quase deserta, habitada apenas por Adão e Eva.
O paraíso de Agnès Varda não existe
mais ou é ainda mais restrito do que se faz crer.
A Riviera Francesa é lugar de todos: das francesas
de azul e amarelo, das alemãs de verde, dos porteiros
bajuladores e dos simpáticos, das crianças,
da multidão. Mas o Éden é restrito.
Inacessível? Talvez.
Entre idas e vindas, encomenda e interesse próprio,
o cinema de Varda se coloca numa subjetividade assumida.
A Opéra-Mouffe que a princípio
parece um simples painel sobre o bairro Mouffe, ao poucos
revela uma proximidade de Varda com o espaço,
demonstrando intimidade e afeição pelo
lugar e pelo que o compõe - as comidas, as pessoas,
as angústias, o amor. Quando Varda escolhe alguns
(e filma algumas das pessoas do bairro) fica evidente
a escolha do "qualquer", traço comum
na obra da diretora, que muitas vezes parece pouco se
importar com a idéia de totalidade do objeto
que retrata, fazendo escolhas arbitrárias, deixando
de lado elementos representativos de um lugar e uma
cultura. A câmera em zoom que acompanha
os alguns não exerce seu papel fundamental
de investigar e espionar. O distanciamento e o voyeurismo
cedem lugar à espontaneidade. Cientes de que
o filme é o diário de uma grávida,
os espectadores são convidados a compartilhar
aquelas impressões. Os atos (também) musicais
são introduzidos pela narração,
constituindo uma verdadeira ópera vardesca.
Essa imbricação entre documentário
e ficção ganha uma significância
especial na obra de Varda. Se antes ela simplesmente
abstraía essa diferenciação entre
gêneros, praticamente eliminando uma suposta barreira
existente, depois ela toma o assunto como objeto de
estudo. Aparece Documentira. O trocadilho com
as palavras é o questionamento sobre o postulado
do documentário como verdade. Ao longo do filme
aparece a pergunta: "é a vida que imita
a arte ou a arte que imita a vida?". Varda não
responde. Mas, há respostas? E, mais do que isso,
essa resposta realmente é interessante? Documentira
é um filme de ficção. Há
uma história, há personagens. Mas, se
um documentário pode ser mentiroso ou falso,
uma ficção pode ser real. E o filme se
desenrola através da relação mãe
e filho. Pessoal? Pouco importa. Vale dizer que o filme
se concentra numa relação bastante particular,
filmada com cuidado e carinho. Processos de descobrimento
estão presentes. Uma criança que descobre
a adolescência. Uma mulher que descobre uma nova
faceta de mãe. A mesma mulher que se descobre,
se questionando nua em frente ao espelho. A relação
de amor travada entre mãe e filho é agravada
por estes processos naturais e inevitáveis. A
curiosidade do garoto é inocente. Numa das escolhas
arbitrárias de Varda, ela coloca um personagem
que simplesmente digita em uma máquina de escrever.
Não sendo nenhuma metáfora ou elemento
complicador, ele apenas está lá. E sobre
ele, o garoto despertará um interesse especial.
Gosta de observá-lo no seu cotidiano e no seu
ofício. O porquê, Varda não explica.
Mas não é preciso. Varda apenas olha.
Muitas vezes mostra seus medos e anseios. A responsabilidade
de ver um filho crescer e de determinar o momento que
ele deve deixar de dividir a cama dos pais parece ser
também a dificuldade de Varda-mãe. Preocupada
e receosa, traz para o filme suas experiências.
Documentário de sua vida pessoal? Ou mentira
e farsa?
Varda trabalha com livres associações.
Desvirtua a imagem e conseqüentemente os conceitos
(ou serão os conceitos que desvirtuam as imagens?).
Talvez pela referência ao cinema de Buñuel,
que fatalmente a influenciou, ou pelo seu modo "infantil"
de olhar o mundo, Varda estabelece ligações
arbitrárias, fazendo conexões tão
particulares que são quase inviáveis.
É o leão de Leão Volátil
comparado ao seu gato de estimação Zgougou,
cariátides parisienses comparadas a homens e
mulheres (e suas forças), catadores de milho
em quadros impressionistas que se tornam catadores de
batata no campo ou catadores de restos de comida nas
ruas da Paris contemporânea. Os paralelos e as
conexões de Varda são subjetivos, mas
compartilháveis.
Nos painéis de Paris, em Muros e Murmúrios,
personagens se confundem com o fundo, construído
por eles mesmos. Pura brincadeira de manipulação
da imagem? Não. Varda tira e coloca os personagens
num espaço artificialmente construído.
Se confundimos o real com o artificial não é
por acaso. Não sabemos distinguir os personagens
vivos e móveis dos personagens imortalizados
nos painéis. Talvez por Varda acreditar na impossibilidade
de verdade da imagem. Documentários falsos, ficções
reais, imagens quaisquer. Varda questiona, mas domina.
E confunde.
Partindo da teoria da "felicidade a mais",
presente em As Duas Faces da Felicidade, Varda
questiona o que é ser feliz, e o que nos faz
feliz. Sem discursos existenciais explícitos
ou afetações comportamentais, Varda está
no auge de toda imbricação estética
e ideológica que sempre se apresentou na sua
carreira. Comprar a idéia ou não da teoria
que se apresenta, fica a critério de cada um.
O que Varda possibilita é a reflexão sobre
posturas e comportamentos, provocando o pensamento não-limitado
a situações cotidianas, inserindo elementos
de reverberação no todo do filme e na
mente do espectador. Felicidade, morte, substituição.
Aos pouquinhos e de mansinho, Varda revela suas duas
faces. Com belíssimas composições
de quadro e um trabalho preciso de mise-en-scène,
somos envolvidos numa história comovente e questionadora.
Deixamos nos levar e nos perder no espaço e no
tempo. Generosa e subversiva. Muito prazer, Agnès
Varda.
Raphael Mesquita
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