Mais
uma vez cinema americano. A notar, primeiro de tudo,
o curioso uso da expressão, uma vez que sempre
deploramos quando alguém nos vem falar de "cinema
iraniano" como se fosse uma entidade homogênea,
de "cinema argentino" como se O Filho da
Noiva e O Pântano fizessem parte de
um mesmo sopro artístico. No entanto,
estamos aí novamente a pensar sobre filmes industriais
de grande orçamento lançados nesse meio
de ano, no verão hollywoodiano (caso de A
Dama na Água de M. Night Shyamalan e Miami
Vice de Michael Mann), um pouco antes (O Novo
Mundo de Terrence Malick) ou um pouco depois (Os
Infiltrados de Martin Scorsese), e a dar uma atribuição
geral a esses filmes segundo a bandeira nacional sob
a qual eles foram feitos. Naturalmente, mais do que
um ato reflexo, isso tem origem no reconhecimento de
uma dinâmica de funcionamento interno da indústria
hollywoodiana que continuamente produz ao mesmo tempo
o melhor e o pior do cinema. Ao mesmo tempo que colabora
com força para a formatação e falta
de originalidade e ousadia da maioria de seus projetos,
essa usina de sonhos é também o espaço
que alguns cineastas audaciosos aproveitam para transmitir
seus sonhos subversivos em grande escala (de produção,
de distribuição, de divulgação
etc.). Quanto mais pesada uma indústria, mais
a taxa de redundância que sai dela, exato? Ainda
que no geral a resposta seja "sim", Scorsese,
Malick, Shyalaman e Michael Mann se empenham em tentar
negar essa evidência aparente, buscando através
de seus projetos revigorar um imaginário coletivo
(daí a impossibilidade de não pensar nisso
tudo como "cinema americano") que, economicamente
hegemônico, nunca deixou de também ser
um espaço que sempre soube conjugar a contento
e com genialidade, através de seus melhores realizadores,
a negociação entre espetáculo de
massa e invenção.
Mann, Shyamalan, Scorsese, Malick. Não são
exatamente figuras marginalizadas dentro de um sistema
que marginal receberia grossas fatias de dinheiro
para realizar um filme? , mas são figuras
de sensibilidade artística excêntrica dentro
do modelo. Figuras de gerações diferentes,
com projetos e estéticas inteiramente distintas,
e que no momento passam por trajetórias por vezes
contrastantes. Tomemos Michael Mann, que com Miami
Vice deu seu passo mais ousado em busca de um cinema
que desinstala do tempo e do espaço com suas
elipses selvagens, com sua virtuosa utilização
das câmeras digitais de alta definição,
com sua ode ao herói decaído. Um cinema
que sob qualquer aspecto se aproxima muito do sensualismo
e da radicalidade de filmes como O Intruso, de
Claire Denis, um filme que jamais veremos ser lançado
no multiplex mais próximo de nós.
Enquanto Michael Mann radicaliza seu projeto de cinema,
temos no outro patamar Martin Scorsese, que com Os
Infiltrados parece querer esconder sua assinatura
por trás das anônimas regras do gênero
cinematográfico. Como, aliás, faziam seus
ídolos confessos numa Hollywood antiga de cinqüenta
anos, quando a produção se estruturava
em gêneros muito precisos e estilo pessoal era
algo que nem se sonhava dentro das companhias. Superioridade
absoluta da história sobre o estilo, diminuição
das características recorrentes, blockbuster
moldado ao gosto do público, temos o quê?
Uma obra anônima, genérica no meio de tantas
outras? Muito pelo contrário, temos subterraneamente
um verdadeiro filme de Scorsese, que aqui exerce o papel
que tanto louvou em outros cineastas: o de um smuggler,
o contrabandista que carrega sua personalidade por baixo
da narrativa do filme. Pois tudo está lá:
os hábitos grosseiros e o linguajar xulo e preconceituoso
que provocavam uma sensação misturada
de deleite e asco em seus filmes mais famosos, um sentimento
de paranóia urbana que faz lembrar Depois
de Horas ou Vivendo no Limite, os delírios
de megalomania que são levados a pó porque
ninguém pode ter tudo para sempre. Espaço
entre a idealização anacrônica e
a utopia de restabelecimento da linha de produção,
Os Infiltrados encanta tanto por sua realização
quanto pela tarefa que Scorsese se impõe.
Se Os Infiltrados é hoje um grande sucesso
de bilheteria, como o foi também O Plano Perfeito
de Spike Lee no começo do ano outro
filme de autor que tenta trabalhar num registro mais
popular e em produção mais grandiosa suas
mesmas preocupações de sempre ,
isso não significa que todos os projetos mais
ambiciosos de grande diretores recebem acolhida semelhante.
Pelo contrário, aliás. Esse ano, tanto
O Novo Mundo de Terrence Malick quanto A Dama
na Água de M. Night Shyamalan ganharam aquelas
reações típicas de obras que desafiam
as condições mais convencionais de recepção
e propõem ao espectador um modo diferente de
instalação, sensorial no caso de Malick,
infantil no caso de Shyamalan. Incompreensões
à parte, são duas obras vigorosas e estimulantes
pela diferença que propõem mas
não só por isso e pelo talento
com que são construídas. Em O Novo
Mundo, a história de Pocahontas é
pretexto para uma reflexão sobre a continuidade
do tempo, sobre a fluidez do tecido de que é
feito o mundo através da belíssima
estrutura recorrente de jump cuts e movimentos
flutuantes de câmera para a frente , mas
o mais decisivo no filme é sua capacidade imersiva
que remodela o tempo tanto nas sensações
vivas de um presente contínuo quanto nos selvagens
saltos temporais que o filme faz, provocando volta e
meia até uma certa dificuldade de instalação
em relação aos destinos dos personagens,
uma vez que Malick se posiciona a partir dos fluxos
do tempo, e não da vida individual dos três
protagonistas.
Se Malick nos obriga a assumir um ponto-de-vista que
nos desinstala da escala antropomórfica habitual
dos filmes de ficção, M. Night Shyamalan
faz com seu espectador uma operação distinta,
um trabalho de regressão em que precisamos acionar
em sexta marcha nossa suspensão da descrença
(suspension of disbelief) para fazer funcionar
um mundo que só existe a partir de um investimento
forte da parte do espectador, um investimento que faz
parte do projeto do filme. A Dama na Água
é uma dessas obras arriscadas, excessivas na
energia desmesurada que demandam a seu público,
exigentes na forma como se propõem a ser experimentadas.
Mais sobre ele, naturalmente, nos dois textos dessa
seção que trabalham mais longamente a
força expressiva do filme.
Quatro filmes excêntricos em suas propostas, soberbos
em sua realização, totalmente diferentes
entre si, mas que constróem dentro do cinema
americano um panorama que ultrapassa em muito aquilo
que geralmente se pede das produções do
país bons entretenimentos, eficiência
de feitura, altos valores de produção
e inscrevem esse cinema num cenário especulativo
em que se jogam as intrigas principais do cinema contemporâneo.
Como fazer esse senhor de 111 anos dizer ainda coisas
que ainda não disse, como encontrar novos meios
de expressão que consigam escapar das mesmas
armaduras temáticas e formais às quais
estamos tão acostumados? E, ainda mais, como
fazer isso e ainda se alinhar a um determinado modo
de produção industrial, de grande distribuição
mundial? Eis quatro filmes que se empenham na tarefa
de discutir estética ao mesmo tempo em que falam
com muitos, filmes intransigentes em suas propostas
(à exceção do de Scorsese), que
redesenham a face do cinema americano na geopolítica
do cinema de autor mundial e merecidamente ocupam nosso
imaginário junto com outras obras da Tailândia,
da Coréia, de Portugal, da China e, naturalmente,
do Brasil. Pois aqui a língua franca é
a do cinema, e o território é obrigatoriamente
compartilhado.
Ruy Gardnier
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